Comentário Exegético – XXVII Domingo do Tempo Comum – Ano B

EPÍSTOLA AOS HEBREUS 2, 9-11

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

INTRODUÇÃO: O autor de Hebreus tem demonstrado em versículos anteriores a superioridade de Cristo sobre os anjos. Aqui nos diz que, se bem que durante sua vida terrena, foi inferior aos anjos, Ele, e não os anjos, se tornou o único mediador e pontífice, já que o sacerdote deve ser da mesma natureza que o povo; logo os anjos não podiam  mediar entre Deus e os homens em ordem à salvação. O homem e o mundo estavam submetidos às leis dominadas pelos anjos, segundo o sentir da época (Cl 2, 13; Rm 3, 38 e Gl 4, 3-9). Porém, Cristo, vencedor do pecado e da morte, não está sujeito a essas leis e cedo o homem, igual que o Cristo, estará totalmente livre delas.

DIMINUÍDO E EXALTADO: Ao que, pois, um pouco [brachy<1024>=modico| em comparação dos anjos vemos diminuído [ëlattömenon<1632>=minoratus], Jesus, por causa da paixão [pathëma <3804> = passionem] da morte, em glória e honra coroado [estefanömenon<4737>=coronatum], de modo que, pela graça de Deus, no lugar de todos, gostasse a morte (9). Eum autem qui modico quam angeli minoratus est videmus Iesum propter passionem mortis gloria et honore coronatum ut gratia Dei pro omnibus gustaret mortem. DIMINUÍDO: Elattömenon <1632>particípio de Ellattoö: diminuir, tornar-se menor, minguar, decair, como vemos em Jo 3, 30: Ele deve aumentar e eu minguar. UM POUCO: é o advérbio Brachy <1024> que sai em Lc 22, 58 quando no pátio de Caifás, alguém viu (Pedro) um pouco mais tarde. O sentido do meio versículo é de que Jesus se tornou um pouco inferior aos anjos, por causa de sua humanidade, bem no sentido espacial (a terra inferior aos céus) ou no sentido temporal (durante um pouco de tempo) na sua vida temporal, como homem. Mas teve, não obstante um poder que superava o poder dos anjos, especialmente por ressuscitar mortos. PAIXÃO: A palavra Pathema<3804> significa sofrimento, padecimentos, aflições Um exemplo: Convinha que Aquele (Deus)… aperfeiçoasse por meio de sofrimentos o Autor da salvação (Hb 2, 10). E estimo que ossofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória…(Rm 8, 18). Em 1 Pd 4, 13 este fala aos fiéis que devem se alegrar na medida em que são participantes dos sofrimentos de Cristo. [as palavras sublinhadas são da mesma raiz que pathema]. Aqui Tiago envolve a morte de cruz como culminação de uma série de sofrimentos aos quais juntamente chama de Pathema. Por isso, precisamente, o Cristo foi coroado , ESTEFANÖMENON<4737>. O adjetivo sai 3 vezes no NT (2 Tm 2, 5 e Hb 2, 7 e 9). O atleta em Pedro só é corado com o louro da vitória se competir conforme às regras, e Jesus é coroado de glória (doxe a mesma de Deus) e honra (a que os homens apetecem). A glória talvez relembra o resplendor que se manifestava em Moisés quando saia da fala com Deus (Êx 34, 24). PELA GRAÇA DE DEUS: Tiago usa Charis<5485> com tradução da Vulgata por gratia. Das 130 vezes que aparece esta palavra no NT, podemos afirmar que a maioria delas pode ser traduzida por a bondosa benignidade divina para com os homens, especialmente para com os pecadores. Poderíamos, pois, traduzir esta frase pela bondade ou benevolência de Deus. Graça, em singular, refere-se sobretudo a Deus como dom que se comunica de forma múltipla ao homem: Umas vezes, é o próprio Deus, como fonte desse dom e então, é sinônimo de amor, benevolência, fidelidade (Rm 11, 6). Nesse sentido Cristo é a graça de Deus por excelência (Jo 1, 14-18). Outras, designa o dom de Deus enquanto recebido no homem e equivale a favor, bênção, vida, salvação… (Lc 1, 30). Aqui, ambos os sentidos estão unidos de modo que a benevolência divina se transforma em salvação para os homens.  Como? Tiago o explica na continuação. GOSTASSE A MORTE: É a causa de sua promoção como coroado. Pela morte de cruz, Cristo foi exaltado como chefe e salvador (At 5, 31) e em Fp 2, 8:  Tornou-se obediente até a morte e morte de cruz.

ATRAVÉS DOS SOFRIMENTOS: Já que convinha [eprepen<4241>=decebat] a quem pelo qual todas (as coisas) e do qual todas (as coisas) [existem], o condutor[agagonta<71>=adduxerat] de  muitos filhos para a glória, aperfeiçoar [teleiösai<5048>=consumare] o autor [archëgon <747> =auctorem] da salvação deles, através de sofrimentos (10). Decebat enim eum propter quem omnia et per quem omnia qui multos filios in gloriam adduxerat auctorem salutis eorum per passiones consummare.  Esta é a tradução literal, bastante confusa que para melhor entender, temos que usar parênteses e colchetes. Vamos explicar as palavras e o sentido da frase. O verbo PREPÖ <4241> significa distinguir-se, sobressair; mas, como impessoal, tem o significado de convém, é justo. AGAGONTA<71> é o particípio aoristo do verbo Agö de significado conduzir, levar, liderar, chefiar. Temos optado por um nome que substitui o verbo original: condutor, no lugar daquele que levou. TELEIOÖ<5048> É um verbo que tem vários significados: realizar, cumprir; também chegar à perfeição, tornar-se adulto. ARCHËGOS <747> que significa causa, princípio, autor. O significado da frase é: Deus é Criador de tudo e também o modelo de tudo que existe. É por isso, que Ele rematará o seu trabalho, sendo quem conduziria a muitos, como filhos, ao triunfo da glória definitiva. Por essa razão, através dos sofrimentos de Jesus, aperfeiçoou o chefe deles (Jesus) por meio desses mesmos  sofrimentos. Dessa chefia de Jesus está a palavra do Salmo 8, 6 que diz: Deste-lhe domínio sobre as obras de tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste. Assim, esse Jesus  pode ser chamado autor da salvação deles. A tradução livre mais correta é: era conveniente, com efeito, que aquele por quem e para quem tudo foi feito, querendo levar à glória um grande número de filhos, fizesse perfeito, mediante os sofrimentos, o chefe que devia guiá-los. Consequentemente, se Deus é o autor e modelo da criação, Jesus, não pela palavra, mas pelo sofrimento é o autor e modelo dos redimidos ou salvos.

TODOS IRMÃOS: Pois tanto o santificador [agiazön<37>=sanctificat] como os santificados, de um só todos (provêm): por causa disso não se envergonha[epaischynetai<1870>=confunditur] de chamar irmãos a eles (11). Qui enim sanctificat et qui sanctificantur ex uno omnes propter quam causam non confunditur fratres eos vocare dicens. SANTIFICADOR: Propriamente o que santifica, embora o verbo Agiazö<37> tenha o significado de consagrar, sagrar ou purificar. A ideia é de separar uma coisa ou pessoa para a divindade, pelo qual ela é considerada pura ou santa como pertencente unicamente a Deus. Um exemplo: Mt 23, 17: Qual é maior, o ouro ou o templo que santifica o ouro? Em Jo 17, 17 lemos: Consagra-os na verdade. Em Ef 5, 26 temos uma diferença entre a purificação e a consagração. Aquela precede como purificação, à consagração. Para que uma coisa ou pessoa entre a formar parte do círculo divino, deve primeiro ser purificada e então pode ser consagrada ou dedicada ao culto. Todo cristão, como em Efésios diz Paulo da Igreja a  qual é seu modelo, é purificado por meio da lavagem de água e pela palavra e assim será dedicado ao culto divino. A palavra é a evangelização que é necessária para que uma criatura racional aceite a fé que precede o batismo. DE UM SÓ TODOS PROVÊM: Evidentemente, o santificador é Cristo e os santificados são os membros de sua Igreja e diz o autor que todos provêm como de um mesmo Pai. O resultado é que esse santificador, nosso Senhor Jesus, não tem inconveniente em chamar os santificados de irmãos. Assim os chamou Jesus em Mt 12, 49-50: Estendendo a mão para os discípulos, disse: eis minha mãe e meus irmãos! Porque qualquer um que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, irmã e mãe.

CONCLUSÃO: A humilhação temporal de Cristo não afeta sua grandeza universal sobre toda criatura, de modo especial sobre os anjos. Sua autêntica grandeza está em seu rebaixamento, para poder ser sacerdote, e assim cumprir como vítima a vontade do Pai, por gostar da morte em benefício de todos (9). Porque Cristo é o primogênito, como diz Paulo, de uma nova geração que conduz, mediante o misthós [salário] de seus sofrimentos toda uma plêiade de irmãos para a glória por meio de  seu triunfo na cruz. Filhos de Deus, somos verdadeiramente irmãos de Cristo, de cuja irmandade não só nós nos gloriamos, mas também constituímos a glória de Cristo.

 

 

EVANGELHO (Mc 10, 2-16)

O REPÚDIO DA MULHER

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

A PERGUNTA: E tendo se aproximado [proselthontes <4334>=accedentes] os fariseus [farisaioi <5339> Pharisaei] lhe perguntaram se é lícito [exestin<1832>=licet] a um esposo repudiar [apolusai<630>=dimittere] a mulher, tentando-o [peirazontes<3985>=temptantes] (2). Et accedentes Pharisaei interrogabant eum si licet viro uxorem dimittere temptantes eum. APROXIMADO: O Proselthontes<4334> é próprio de Marcos e constitui uma maneira de iniciar um novo episódio. FARISEUS<5339> pertenciam a uma seita religiosa judaica que tinham como objetivo a perfeição no cumprimento escrupuloso da Lei e das Tradições. Junto com os Grammateis [escribas] eram os mestres da Lei (Mt23,2): Os escribas e os fariseus estão sentados na cátedra de Moisés. Eram escrupulosos ao interpretar a Lei, tanto escrita como falada. Em Lc 11,38: O fariseu se admirou ao ver que não tinha lavado as mãos. É LÍCITO: Exestin<1832> cujo significado é: É lícito, ou moralmente válido, um marido repudiar sua esposa? REPUDIAR em gregoApolusai <630> palavra própria para repudiar ou se divorciar de uma esposa. Mateus acrescenta um inciso a esta  pergunta, de suma importância: por qualquer motivo, causa ou acusação, que são as acepções da palavra Aitia. Era uma armadilha, mais do que uma pergunta sincera na boca de um discípulo, que carece de critérios para julgar uma situação, ou não entendeu a exposição do mestre. Era um problema discutido: Os três grandes mestres ou rabis, não discutiam a licitude do divórcio, mas a razão ou motivo do mesmo.  Desde o mais restrito, Shammai, que só admitia o divórcio em caso de adultério, Hillel que admitia o repúdio por falhas no cozimento dos alimentos, queimados ou salgados demais, até Akiba que permitia a separação por ser a mulher velha e encontrar outra mais formosa. É lógico que o adultério não podia ser provado, pois do contrário a mulher seria lapidada. No caso de suspeita, segundo Nm 5, 12-24 a mulher era submetida ao rito de beber as águas amargas. Era neste caso que o marido podia dar o libelo de divórcio, em público, ou como no caso de José com Maria, em particular, que Shammai chama de libelo de divórcio antigo (Mishna, Git 8,4). No libelo público a parte essencial era: “ficas livre para te casar com qualquer homem”. O libelo público devia ser firmado por duas testemunhas e entregue nas mãos da divorciada, tendo testemunhas. Nodivórcio antigo, o libelo era entregue quando o marido ficasse a sós com ela após ter escrito o mesmo e sem testemunhas. A principal razão contra o divórcio era o pagamento da Ketubá, ou dote, por ter rejeitado a mulher, correspondente em geral a duzentos denários ou dias de trabalho, suficientes para um ano de vida independente.

A RESPOSTA: Ele, porém, tendo respondido, disse-lhes: que vos ordenou Moisés? (3). At ille respondens dixit eis quid vobis praecepit Moses. MOISÉS: Que vos ordenou Moisés? Jesus não responde diretamente, mas leva os interrogadores a dar uma resposta segundo a sua própria interpretação dos fatos. Daí o apelativo VÓS. Eles devem ser os que respondam, uma vez discernidas as palavras e interpretadas as circunstâncias.

A LICENÇA: Eles, pois, disseram: Moisés permitiu [epetrepsen<2010>=permisit] escrever um libelo [biblion<975>=libellum] de divórcio [apostasiou<64>=repudii] e repudiar [apolusai<630>=dimittere] (4). Qui dixerunt Moses permisit libellum repudii scribere et dimittere. PERMITIU: E os fariseus respondem, dizendo que Moisés permitiu, deu licença, para escrever um libelo de divórcio [Sefer <05612> kerituth <03748>] que é chamado de guet e então repudiar a mulher (Dt 24 ,1). LIBELO DE DIVÓRCIO: Não é uma ordem, mas uma licença; e Moisés exige um mandato: sem libelo não há divórcio. Existem, pois, limites e a lei não é totalmente permissiva. Na vida matrimonial a mulher tinha o direito de ser mantida pelo marido, podendo exigir sua aplicação pelos tribunais. O marido tinha que oferecer alimentação, vestido e casa e o dever conjugal. Devia cuidar dos remédios em caso de doença e do enterro, com pelo menos dois tocadores de flauta e uma carpideira. A mulher estava obrigada a obedecer ao marido como o seu dono, e o chamava de RAB: grande, mestre ou senhor. O direito ao divórcio era exclusivo da parte do varão, com raríssimas exceções. O libelo [guet] era um documento que segundo a Halaká [lei judaica] descrevia com todos os nomes conhecidos tanto os esposos como os seus parentes; e assim não existia motivo de adulteração na separação de ambos e dos deveres dos familiares. Atualmente o rabino [se considera como um ato religioso] escreve o Guet manualmente e o apresenta ao esposo. Caso coincida este nos pontos especificados, ele o entrega  a sua mulher na presença do tribunal e quando o documento chega às mãos da mulher, estão considerados divorciados.

UM MAIOR APROFUNDAMENTO: E tendo respondido Jesus lhes disse: Por causa da dureza de vosso coração [sklerokardian<4641>=duritiam cordis] vos escreveu este mandato [entolën<1785>=praeceptum] (5). Quibus respondens Iesus ait ad duritiam cordis vestri scripsit vobis praeceptum istud. Jesus explica então as causas que motivaram Moisés a permitir semelhante licença e encontra unicamente uma: a visão estreita da mente dos judeus na época do legislador, a ESKLEROCARDIA<4641>, traduzida geralmente por dureza de coração e pertinácia. No lugar de coração hoje diríamos mente ou inteligência. Isto significa que, como os judeus da época não podiam entender o fato de não ser possível repudiar sua mulher, Moisés permitiu o divórcio; mas com a condição prévia de encontrar uma conduta indecente ou reprovável na mulher, que o texto dos setenta traduz por Askhemon Pragma. Esta concessão deu lugar à relaxação na interpretação nos tempos de Jesus. Em Mateus, no lugar paralelo, parece que este interpretou a “conduta sexualmente reprovável” com a palavra porneia (ver Mt 5, 32 e 19, 9), traduzida por fornicação ou relação sexual com uma prostituta (porné em grego), que, por extensão e figurativamente, se estendia à idolatria. Assim, Jesus afirma que, segundo Moisés, o libelo de repúdio só poderia ser dado quando a mulher se prostituísse, caso que as bíblias evangélicas traduzem por adultério e que poderíamos definir como conduta sexual imprópria, pois isto acarretaria também uma impureza legal que a tornava intocável. Pois a fornicação era uma infâmia que profanava a terra de Israel (Lv 18, 22-28), e a mulher repudiada era considerada contaminada para seu anterior marido (Dt 24, 4). A lei Julia romana também obriga ao repúdio da esposa adúltera. S. José (homem justo, cumpridor da Lei) devia repudiar Maria como esposa, porque o que aparecia no ventre dela não era seu. E a Lei considerava contaminada, impura, uma mulher adúltera. Como existia um adultério, Maria era impura. Ele não podia conviver com uma contaminada como vemos por Dt 24 e como não sabia como tinha acontecido, pensou em dar o libelo de divórcio, não de uma maneira formal, diante do tribunal, mas do modo antigo, em particular, entregando o guet em silêncio, sem testemunhas, mas válido como documento de separação. MANDATO: Entolë: Por ordem de prioridade distingue-seNomos<3551> [lei], Entolë <1785> [mandato] e Dogma <1378>[decreto]. O nomos procede de Deus, o entolë do legislador e o dogma do soberano imperante. Nomos era a Lei ou Torah (Mt 5, 17).  Entolë os mandamentos (Mt 19, 17 e Jo 14, 15). Dogma como em Lc 2, 1  decreto do César, no caso.

NO INÍCIO: Mas desde (o) início [archës<746>=initio] da criação [ktiseös<2937>=creaturae] varão [arsen <730>=masculum] e fêmea [thëlu<2338>feminam] os fez o Deus(6). Por causa disso, abandonará [katalepsei<2641>=relinquet] o homem o seu pai e a mãe e juntar-se-á [proskollëthëtai<4347>=adherebit] a sua mulher (7). Portanto o que o Deus ajuntou o homem não separe (9). Ab initio autem creaturae masculum et feminam fecit eos Deus. Propter hoc relinquet homo patrem suum et matrem et adherebit ad uxo orem suam. quod ergo Deus iunxit homo non separet. INÍCIO: Jesus começa dizendo as mesmas palavras gregas do Gn 1, 1: em archë epoiesen o Theos [no início fez Deus]. Marcos acrescenta da criação [ktiseos]. Na realidade, ktisis é fundação, criação, criatura. Jesus cita, pois, o Gênese e o capítulo primeiro, onde encontramos as primeiras normas dos planos divinos. E, logicamente, contrapõe  a lei de Moisés à lei divina, esta conhecida no Gênese, onde se podia ler que Deus os criou macho e fêmea (1, 27) para depois acrescentar: por isso deixará o homem seu pai e sua mãe e serão os dois numa única carne (eis sarka mian) (2, 24). Esta é a base para Jesus argumentar sobre a vontade de Deus que quer fazer no matrimônio de dois uma só carne, um único ser de dois, entre um homem e uma mulher e, portanto, a separação não é possível. Termina, pois, Jesus, afirmando que o que Deus uniu, o homem não pode separar. O matrimônio tem uma origem divina e, portanto, no NT é restituído a sua antiga vivência, ele é sacramento (mistérion) como afirma Paulo em Ef 5, 30-33.

POSTERIOR EXPLICAÇÃO: E em casa, de novo, os seus discípulos lhe perguntaram sobre o mesmo (10). E lhes diz: quem quer que repudie a sua mulher e casar[gamësë<1060>=duxerit] com outra, adultera [moichatai<3429>=moechatur] contra ela (11). E se a mulher repudiar seu homem e casar com outro, adultera (12). Et dicit illis quicumque dimiserit uxorem suam et aliam duxerit adulterium committit super eam. Et si uxor dimiserit virum suum et alii nupserit moechatur.Temos que explicar unicamente dois termos: GAMEÖ<1060> cujo significado é tomar como esposa, casar. Quando é a mulher, usa-se o verbo na passiva e  a tradução seria   ser dar em matrimônio, pois o sujeito ativo era unicamente o varão. A mulher era praticamente vendida como escrava. De fato, existe para a mulher o verbo gamizö cujo significado é dar em matrimônio. A outra palavra é MOICHAÖ <3429> termo técnico, usado para adulterar ou cometer adultério. Verbo muito diferente de porneuö<4203>com o significado de fornicar. Propriamente porneö era ter relações com uma prostituta, cujo nome em grego era pornë e o ato porneia, com porneion como prostíbulo. Já de moichaö temos moicheiacomo adultério, e moichalis ou moichetria como adúltera. Uma prostituta, não constituía impureza, caso fosse mulher israelita. Porém a prostituição estava ligada às prostitutas sagradas dos templos e, por isso, também porneia tinha o significado de idolatria. Por isso, em Ap 17, 1 Roma [a idólatra] é chamada de grande meretriz. Paulo em 1 Cor 6, 15 usa Gn 2, 24 para argumentar que o trato com uma prostituta é se unir a ela como uma só carne e que é usar o corpo, membro de Cristo, como membro de uma prostituta. Ospublicanos e as prostitutas estavam mais próximos do reino do que os escrupulosos fariseus observantes da Torah (Mt 21, 31). Nota: Mateus (19, 9) em passagem paralela tem uma exceção a esta regra que em Marcos e Lucas (5, 31) não encontramos: a não ser o caso de fornicação [porneia]. Qual o significado desta frase? A) uma prostituta é comparada com uma esposa (Paulo em 1 Cor 6, 15), portanto este caso não entra dentro da insolubilidade do matrimônio. B) Era costume entre os orientais o matrimônio entre parentes que era considerado matrimônio de porneia. Para maior inteligência ver a Nota final. ENSINO FINAL: Em casa, Jesus explica a seus discípulos a situação. Não é possível repudiar um esposo a sua mulher ou uma esposa o seu marido, pois do novo casamento se deduz adultério contra os antigos parceiros. O adúltero não é só a mulher, mas o marido também, coisa inaudita entre os judeus. Deduz-se desta lição de Jesus que no matrimônio homem e mulher têm os mesmos deveres, e que o matrimônio foi planejado por Deus como único e indivisível.

AS CRIANÇAS: E (naquela hora) lhe trouxeram criancinhas [paidia<3813>=parvulos] para que as tocasse. Mas os discípulos repreendiam os que as levavam (13). Tendo, pois, visto Jesus,  indignou-se e disse-lhes: deixai os infantes vinde a mim e não os impeçais, pois dos semelhantes é o Reino de(o) Deus (14). Amém vos digo: se alguém não receber o Reino de(o) Deus como uma criancinha certamente não entrará nele (15). E tomando-as nos braços impondo-lhes as mãos as abençoava (16). Et offerebant illi parvulos ut tangeret illos discipuli autem comminabantur offerentibus. Quos cum videret Iesus indigne tulit et ait illis sinite parvulos venire ad me et ne prohibueritis eos talium est enim regnum Dei. Amen dico vobis quisque non receperit regnum Dei velut parvulus non intrabit in illud. Et conplexans eos et inponens manus super illos benedicebat eos.PAIDION<3813>: Diminutivo de Pais, este com o significado de menino ou criança. Segundo Lucas eram infantes (bréfe). É um contraste interessante ver como os discípulos que acabavam de receber uma lição de quem era o maior no Reino (Mc 9, 35-37), agora desprezam as crianças, que eram paradigma de tal ensinamento. A IMPOSIÇÃO DAS MÃOS era  um dever antes do sacrifício de um animal pelos pecados, transferindo os mesmos a ele (Lv 4, 13-21 e 16,21), um gesto para curar (Mc 6, 5), ou para transmitir um poder (Nm 8, 10), ou uma consagração (Nm 8, 12). Como no caso de Mc 9, 35 eram crianças muito pequenas e devemos acreditar que eram as mães que as levaram a Jesus. Toda a realidade descrita pelo evangelista relembra a cena de Jacó com os filhos de José (Gn 48, 1-18). Primeiramente Jacó os toma como filhos próprios e logo os abençoa. Jesus toma as crianças como se fossem seus próprios discípulos [chamados filhos pelos rabinos] e as abençoa, dizendo que é próprio do Reino ter semelhantes súditos, e que todo aquele que deseja entrar no Reino terá que se tornar semelhante a uma dessas crianças que em seu seio Jesus acolheu (ser discípulo de Cristo). Evidentemente não é a fragilidade física o termo de comparação, mas a fragilidade espiritual, a sua insignificância  e total dependência, que excitam a misericórdia do Pai porque este é quem finalmente entrega os discípulos a seu Filho (Lc 10, 21-22 e Jo 6, 37). A este pequeno rebanho, que se torna discípulo de Jesus, foi dado o Reino, por agrado do Pai (Lc 12, 12).

PISTAS: 1 Às vezes nos identificamos com os fariseus: criticamos a Igreja atual, fazendo da crítica uma Teologia totalizante, para optar por uma Igreja modelada e de acordo com a maioria, optando por uma verdade consensual, como se estivéssemos num parlamento escolhido por votos populares. Nos novos fariseus a Torá e a Mishná (tradição) são substituídas por uma maioria totalmente manipulada pelos sofismas de liberdade e igualdade, como normas supremas e evangélicas, esquecendo-nos do que o Papa chamava de estrutura moral da liberdade.

2) Acredito em Jesus, mas não posso acreditar na Igreja. E até seus santos são vituperados porque não se entende a cruz nos tempos modernos de hedonismo e prazer sem limites. E assim nos afastamos da fonte de santidade e da doutrina da cruz, essenciais para seguir o Cristo (Mt 10, 38). Sem sacrifício não pode existir verdadeiro amor, dizia S. Genoveva Torres, a santa aleijada desde os quinze anos.

3) No matrimônio atual pretende-se viver o prazer como fim supremo e último. A procriação está subordinada às circunstâncias econômicas, sociais e hedonísticas, de tal maneira que praticamente resulta ser um acidente na união sexual, da maneira como acontece com uma amante. Por isso se pretende igualar uniões homossexuais às heterossexuais. Que diria Jesus aos jovens que hoje querem se unir e não casar?

4) Dedicação, entrega, sacrifício, responsabilidade são palavras tabu.  Por isso, o amor some quando a paixão declina.

5) Os povos envelhecem porque negam o direito à vida aos novos seres e, em forma de fetos, até os suprimimos já que um filho é um castigo e não uma benção divina. O reino deve ser aceito e recebido, como uma criança aceita sua vida: confiamos na bondade do Pai e como seres indefesos, a ele entregamos nosso presente e dele esperamos nosso futuro. Como crianças, esperamos ser perdoados porque nossa fragilidade supera nossos desejos de boa vontade. Como crianças, que nada sabem, aos pés de Jesus aprendemos o verdadeiro significado de seu Reino.

NOTA: O divórcio  é  tratado por Jesus em quatro passagens do evangelho: Mt 5, 31-32; e 19, 3-12. Mc 10, 2-12; Lc 16, 18. De todas as passagens, deduz-se uma ideia comum: não é licito moralmente, ou seja, é pecado, repudiar a esposa. Esse pecado existe quando se toma outra mulher pelo repudiante ou outro homem toma a mulher repudiada. Essa conclusão é tão evidente que os discípulos declaram, e precisamente em Mateus, que é o único que oferece dúvidas como veremos: “Se tal é a condição (aitia)do homem com a mulher, não é conveniente se casar” (19,10). Como é Mateus o único que nas duas passagens oferece dificuldades, vamos tentar explicá-las. A dificuldade está na palavra porneia, derivada de pórne, prostituta, ou pórnos, prostituto. O dicionário define porneia como coito com prostitutas ou prostitutos. Somente tem um significado figurado quando representa a idolatria. A palavra sai 10 vezes nos evangelhos. A mais clara é de Jo 8, 41: “Nós não temos nascido da prostituição. Um pai temos, o Deus (único)”. O sentido de porneia pode resultar um tanto escuro ao afirmar Jesus que do fundo do coração nascem as prostituições (porneias) que pode ser lido em Mt 15, 9 e Mc 7, 21. Em ambos os casos porneia é acompanhada pela palavra moicheiai, que é o termo técnico para adultério. A primeira conclusão é, pois, que porneia não pode ser confundida com adultério.

A palavra moixeia, a vemos em 5 versículos dos evangelhos e todos eles com um único significado: adultério, ou seja, como encontramos em Lv 20, 10, dar o coito do esperma à mulher do vizinho.

O texto base que servia de referência  é o texto Massorético de Dt 24, 1. Ele emprega as palavras “tserwath dabar” que podem ser traduzidas literalmente por “palavra de nudez”. O texto dos setenta traduz por “áskhemon pragma” que poderíamos traduzir por conduta indecorosa. As diversas traduções das bíblias modernas são: Propter aliquam foeditatem da Vulgata, (alguma coisa torpe), algo indecente (E), qualcose di sconveniente(I), qualche coisa di vergonhoso (CEI), coisa indecente (RA), algo inconveniente (Jerus), alguma coisa indecente (Lei, do Rabino Meir) e finalmente some uncleannes in her( J. K).

Mas vejamos os dois textos de difícil interpretação. Mt 5, 31 e 19, 9. Ambos respondem aos costumes da época, que Jesus repudia: No 1(Mt 5, 31-32) Jesus se põe contrário ao que “foi dito: Qualquer que repudia sua mulher dê-lhe libelo de repúdio”. Precisamente esse libelo garantia que a mulher estava disponível e, portanto, não cometia adultério ao casar de novo; e assim o novo marido não estava sujeito à impureza (Lv 18, 20). A questão era qual era a causa suficiente para dar o libelo [guet] de modo que o primeiro marido não fosse causa de fazer com que a mulher adulterasse. Aqui, como no segundo texto, aparece a palavra porneia, que logo explicamos. O texto grego diz“parektós lógou porneías”. O logou porneia, comparado com o hebraico de Dt 24, 1 parece uma tradução literal. Podemos traduzir o parektós como “exceto no caso de”. Logos é palavra, razão, mandato; portanto a tradução seria: fora do caso de uma conduta sexualmente perversa. Nesse caso o esposo poderia dar o libelo de divórcio. Esta é a interpretação que Jesus dá ao texto de Dt 24, 1. Desse texto se serviam os escribas e fariseus para conceder o divórcio. O motivo para tal divórcio legal foi, pois, explicado por Jesus como tendo unicamente uma razão de conduta sexual imprópria por parte da mulher.

No 2o texto (Mt 19, 3-9) temos no grego as mesmas razões, sendo que parektós logou porneias, é substituído por “me epi porneia” (não sobre (a) fornicação). Ambos os textos querem dizer: quando se despede uma mulher que se comportou ou era na realidade  prostituta, não se comete adultério ao dar o libelo de repúdio.

As traduções modernas de porneia em ambos os casos (Mt 5 e 19) segundo as diversas bíblias são: concubinato (E), impudicizia (I), concubinato (CEI), fornicatio (Vul), fornicação (Jerus), relações sexuais ilícitas (RA), e fornication (J K).

Vejamos as interpretações: O termo hebraico  zenuth é traduzido ao grego por porneía e por fornicatio ao latim. Existiam os matrimônios chamados de fornicação(matrimônios zenuth) É o caso dos matrimônios assim chamados porque eram considerados inválidos segundo a lei e as uniões eram como as que se mantinham com uma prostituta.  Por isso eram chamados de matrimônios de fornicação. Alguns deles eram nulos pela lei natural, como o efetuado entre irmãos. Eram, pois, verdadeiros concubinatos, ou incestos nalguns dos casos. Dos três casos de Zanuth admitidos pelos legistas, somente o zanuth por erro ou inadvertência é o que admite a anulação. Oshem zenuth, ou zanuth por malícia, e o derek zenuth ou por via de fornicação, eram inválidos em raiz. Os rabinos chamavam-nos derek zenuth  ou caminho de fornicaçãopelo modo incorreto de realizar-se. Parece que esta é a solução mais correta. Poderia haver alguns casos em que o repúdio era lícito segundo a antiga lei?

Que coisa transforma uma mulher casada em prostituta, e o matrimônio pode ser chamado de Zenuth, para poder assim repudiá-la? 1o) Não querer ter filhos. É o caso de Onan (Gn 38, 1-11), mas do ponto de vista feminino. A conduta dessa mulher é como a das prostitutas. De fato, atualmente na lei canônica essa determinação invalida o matrimônio. 2o) Vemos um outro caso em que um homem correto e cumpridor da lei (justo) está resolvido a dar libelo de repúdio a sua esposada: é o caso de José quando descobre que Maria está grávida. Não pode provar o adultério, mas sabe perfeitamente que ele não é o pai da criatura e que segundo a lei seria um ato de impureza contínua seguir com sua prometida esposa (ver Lv 18, 20). 3o) Uma terceira causa seria ter uma outra mulher como concubina ou amante. Possivelmente, admitida a poligamia, eles eram legais; mas diante da restituição à origem, ordenada por Jesus, outras esposas eram simplesmente prostitutas.

Facebook
Twitter
LinkedIn

Biblioteca Presbíteros