Epístola (Cl 2, 12-14)
O BATISMO SUSTITUTO DA ALIANÇA
(Padre Ignácio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: Preocupado Paulo pela fé dos colossenses usa os últimos argumentos contra os judaizantes, e admite que o manuscrito de nossa condenação foi pregado na cruz, onde todo pecado [dívida] foi pago [resgate] e toda discrepância foi anulada[restituição].
BATISMO COMO MORTE E RESSURREIÇÃO: Sepultados com ele no batismo no qual também ressurgistes por meio da fé da obra de Deus que vos ressuscitou dentre os mortos (12). Consepulti ei in baptismo in quo et resurrexistis per fidem operationis Dei qui suscitavit illum a mortuis. Na preocupação de Paulo pela fé dos colossenses, ele usa diversos argumentos para confortá-los. Ausente na carne, ele diz, mas no espírito no meio deles, é por meio da carta que os anima a não serem enganados com argumentos capciosos e filosofismos falaciosos e vãos, fundadas em tradições humanas e não em Cristo. A circuncisão verdadeira é a recebida no batismo que atinge o espírito e é pelo Espírito divino realizada e não a carnal do corpo, feita por mãos humanas. É neste ponto que Paulo descreve os efeitos dessa circuncisão batismal como vemos no início deste versículo. SEPULTADOS [sintafentes <2916> =consepulti]: do significado da palavra e da ação mesma batismal, Paulo toma seu primeiro argumento. A imersão batismal e a saída posterior da água são como uma morte e uma nova vida ou ressurreição. O batismo é um símbolo de uma morte ao velho homem, penetrado do fermento da maldade e malícia (1 Cor 5, 8) e, no batismo, crucificado com Cristo, destruído o corpo do pecado (Rm 6, 6), para livre do velho fermento, ser imbuído do esmo da sinceridade e da verdade (1 Cor 5, 8). Destes textos deduzimos que os vícios principais que nos apartam de Deus são a maldade definida como a opção de fazer o mal, ou o contrário da opção pelo bem; e a malícia que definiríamos como a intenção de optar pela mentira como forma de pensar e atuar. Também inferimos que a sinceridade e a verdade formam parte do verdadeiro homem que quer viver como autêntico discípulo de Cristo. A opção pela verdade é um requisito fundamental de nossa vida nova, junto com a sinceridade que evita a hipocrisia e falsidade, como filhos da luz, em que as boas obras são vistas para glória do Pai dos céus (Mt 5, 16). OBRA DE DEUS: Na sinergia entre o poder divino e a vontade humana, Paulo atribui o papel principal à força de Deus de modo a considerar tanto a fé como as obras que dela surgem, como é o amor (Gl 5, 6), como feitos principais da ação divina que é realmente a que dá o querer e o poder (Fp 2, 13).Como conclusão, vemos em Paulo a dicotomia humana que divide a mesma entre o homem natural [psikikós] e o homem assumido pelo espírito [pneumatikós], com resultados diferentes nas diversas obras: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias… etc, obras da carne, opostas ao amor; alegria, paz, longanimidade, benignidade ….etc que Paulo diz serem frutos do espírito (Gl 5, 19-23).
VIVIFICADOS: E a vós, mortos sendo nas faltas e no prepúcio da vossa carne, vivificou com Ele perdoando-vos todos os delitos (13). Et vos cum mortui essetis in delictis et praeputio carnis vestrae convivificavit cum illo donans vobis omnia delicta. MORTOS [nekrous<3498>=mortui] segundo Paulo os gálatas estavam mortos, ou seja, sem vida por dois motivos: 1) pelas transgressões [paraptömasin <3900> =delictis], sendo que a palavra paraptöma é a usada em Mt 6, 14: se perdoardes aos homens as suas ofensas, vosso Pai Celeste vos perdoará. 2) pelo prepúcio [akrobystia<203>=praeputio]: para Paulo a circuncisão era a garantia da eleição, segundo o pacto de Jahveh com Abraão, diante de Deus. Quem não entrava dentro desse pacto, estava como morto diante de Deus. Os colossenses, cuja maioria era de origem pagão, estavam mortos por causa dos dois motivos apresentados: os pecados e a falta de circuncisão. VIVIFICOU: na alegoria imersão/saída no batismo e morte/ressurreição em Cristo, esta vida nova do Jesus ressuscitado é causa de nossa ressurreição; pois sua morte foi o resgate pago pelo pecado, que a teologia chama de redenção. Nas palavras da cruz: Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que estão fazendo (Lc 23, 34) encontramos uma atuação da teoria da reconciliação que o próprio Jesus declarava na última ceia: este é o cálice da nova aliança do meu sangue derramado em vosso favor (Lc 22, 20). A cruz foi um sacrifício de perdão e aliança que substituia perfeitamente a feita por meio da circuncisão.
1.O QUIRÓGRAFO:Tendo cancelado o manuscrito com os mandatos contra nós, o qual estava contrário a nós, e o retirou do meio, cravando-o na cruz (14). Delens quod adversum nos erat chirografum decretis quod erat contrarium nobis et ipsum tulit de medio adfigens illud cruci .MANUSCRITO [cheiroyrafon <5498> =chirografum]: Cheirografon, que temos traduzido por quirógrafo, é um manuscrito concernente a uma obrigação contratual sem tabelião nem outro testemunho público, mas válido pela palavra nele escrita de punho e mão do devedor. O sentido original da palavra era manuscrito, mas legalmente era uma espécie de bilhete comprovante de uma dívida que o devedor se compromete em data determinada a pagar. A palavra só sai neste versículo no NT. A pergunta è: existiu esse documento; e se a sua existência foi real, por que Paulo fala de que foi cravado na cruz? Qual é o significado de tudo isso? Sobre a existência: o único documento que fala sobre o pecado é a Lei que Jahveh escreveu nas duas tábuas de pedra, segundo Êx 24, 12: Dar-te-ei tábuas de pedra e a lei e os mandamentos que escrevi para os ensinares.. De fato, Moisés tomou o livro da Aliança e o leu ao povo e eles disseram: Tudo o que falou o Senhor faremos e obedeceremos. E tomou Moisés aquele sangue e o aspergiu sobre o povo e disse: Eis aqui o sangue da aliança que o Senhor fez convosco a respeito de todas estas palavras (Êx 24, 7-8). Como os judeus não cumpriram a Lei, e entre eles abundou o pecado, (Rm 3, 9 e 5,20) as tábuas da lei eram um quirógrafo pendente sobre a conduta do povo eleito, que o homem não podia pagar ou rescindir. Existia pois, um compromisso que foi rasgado na cruz, pois a antiga aliança foi substituída pela nova, carimbada com o sangue de Jesus: Tomou o cálice dizendo: Este é o cálice da nova Aliança no meu sangue, derramado em favor de vós (Lc 22, 20). Mateus acrescenta: Para o perdão dos pecados (Mt 26, 28). Logo, Paulo fala de um modo histórico ou real dessa Aliança, escrita e não cumprida, que agora, pelo sangue derramado, foi substituída pela cruz de Cristo. Essa cruz deve ser o novo manuscrito segundo as palavras do próprio Jesus: Quem quiser vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me (Mt 16, 24). Palavras que repetem quase literalmente os outros dois sinóticos. De modo que as tábuas ou o livro da Lei é agora substituído pela cruz de Cristo. CRAVADO NA CRUZ: O título da cruz era o motivo da morte do réu e estava bem visível para denunciar quem nele se achava cravado ou suspenso. Cravar na cruz era, pois um ato de justiça em que o réu era condenado. Assim, como condena e anulação da validez do AT foi a cruz para Paulo. Pois na cruz foram perdoados os pecados em raiz [resgate] e foi feita uma Nova Aliança que não admite distinção de raça ou condição social [reconciliação]. O único pecado que não será perdoado é o cometido como blasfêmia contra o Espírito Santo; ou seja, o daquele que não quer admitir o bem e a verdade e publicamente rejeita ambas realidades.
Evangelho (LC 11, 1-13)
O PAI NOSSO – CONSTÂNCIA NA ORAÇÃO
(Pe Ignácio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: Duas partes temos no evangelho de hoje: Um modelo de oração que hoje é nossa prece universal; e em segundo lugar, um ensinamento sobre como deve ser a constância e a confiança na mesma. Na primeira parte, encontramos o que temos chamado com o nome geral de Pai Nosso. A fórmula que recebe o nome de Pai Nosso sai três vezes nos escritos primitivos antes do final do século I: Mateus 6, 9-12; Lc 11, 2-3 e Dídaque 8, 2. A formulação mais antiga é a de Lucas. Mateus e a Dídaque são praticamente iguais, acrescentando esta última a doxologia final e o preceito de recitar a oração três vezes ao dia.
ENSINA-NOS A ORAR: Então sucedeu que ao estar Ele em certo lugar orando, como terminasse, lhe disse um dos seus discípulos: Senhor, ensina-nos a rezar como também João ensinou seus discípulos (1). Et factum est cum esset in loco quodam orans ut cessavit dixit unus ex discipulis eius ad eum Domine doce nos orare sicut et Iohannes docuit discipulos suos. ORAÇÃO DE JESUS: Lucas circunscreve o momento da apresentação do Pai Nosso a uma circunstância que podemos chamar de fórmula literária: Porque sucedeu que estando ele [Jesus] em oração num certo lugar, quando acabou, um de seus discípulos perguntou-lhe: Ensina-nos a orar como João ensinou os seus discípulos. Evidentemente que o exemplo de Jesus era fundamental para que a petição fosse formulada. Mas o dito discípulo também apela para o exemplo de João, que nas orações se afastava da Keriat Shemá [leitura da Shemá], a reza diária dos israelitas adultos, duas vezes por dia. Vejamos, pois, quais eram os modos e fórmulas de oração em uso entre os judeus da época para compará-los com os que Jesus escolheu como fórmula própria de seus discípulos.
EXCURSO: ORAÇÃO ENTRE OS JUDEUS
TEFILÁ: É a palavra que significa oração entre os judeus. Como encontrei um artigo claramente esclarecedor do que é a oração entre os hebreus, vou resumir o mesmo, pois é como se tivéssemos encontrado as formas de orar de Jesus, verdadeiro judeu em hábitos e costumes religiosos. A palavra inicial do parágrafo [TEFILÁ] provém do verbo Palal [julgar ou meditar] na forma reflexiva: é um ato de introspecção e auto-análise pelo qual o Mitpael [orante] medita sobre si mesmo e julga a si mesmo. O homem ora para compreender a vontade de Deus, a fim de que possa distinguir entre o que deve e o que não deve; que possa saber o que esperar e o que Deus espera dele (não o que ele espera de Deus), a fim de que ele possa perceber o propósito divino e servi-lo. A oração, do ponto de vista judaico, é a conversa do homem com Deus acerca das suas esperanças. É também a forma pela qual o homem descobre, cada dia, que a vida tem sentido. A oração é o processo pelo qual o homem atinge o que há de melhor em si mesmo. A maioria das orações é um comprometimento dos nossos recursos para cumprir nossos deveres para com Deus, meditação sobre a sabedoria das nossas escrituras sagradas, expressões de louvor e de gratidão pelas maravilhas da vida e declarações de segurança e confiança no poder de Deus. A oração é parte integral da fé judaica e um fator indispensável do ponto de vista teológico. Todas estas posturas entram dentro das orações de Jesus que encontramos narradas nos evangelhos. Para falar só de Lucas: Jesus acostumava se retirar a lugares desabitados (5,16) ou ao alto das montanhas (9,18) para orar passando a noite inteira (6,12). O tipo de oração era uma reflexão sobre a sua missão (9, 30) e a conformidade com a vontade do Pai (22, 42). Mas vejamos como os judeus descrevem as diversas orações de sua tradição. CLASSES DE ORAÇÃO: A) Adoração: Considera-se o poder, a majestade, a grandeza e o mistério de Deus. Deus não necessita da nossa adoração, mas nós necessitamos adorá-lo. As orações de adoração protegem o homem, evitando que se apegue ao que é falso e degradante; o propósito da oração é encontrar nossa relação com o Deus vivo. Essa oração é expressa em palavras que entoam louvores a Deus. O louvor a Deus é uma resposta à sua majestade e glória. À medida que enunciamos esses louvores somos levados a um plano mais alto de sentimento e pensamento. B) Agradecimento [berahá]: Tem como objetivo tornar-nos conscientes das bênçãos que nos cercam e das quais recebemos benefícios diariamente. Só após louvar e agradecer, o judeu, nas suas orações, chega às preces nas quais exprime o seu pedido. C) Suplicatórias: Suplicamos a Deus em favor daqueles que estão enfermos e encorajamos mesmo o agonizante a orar pela restauração da saúde para o serviço útil a Deus. As orações suplicatórias exigem que o adorador se concentre na vontade de Deus em vez da própria vontade. Nossa súplica (pedindo a bênção para a vida) deve ser motivada pelo desejo de usar essa bênção para a glória de Deus. As orações judaicas de súplica são feitas no plural em vez do singular a fim de aguçar a consciência a respeito dos outros. D) Penitenciais: O homem confessa seu erro e pede perdão. Essas preces recebem o nome de SELIHOT. O judeu pede ajuda a Deus a fim de que possa superar seus maus desejos. Apela por outra oportunidade tendo intenção de agir diferentemente e confia no misericordioso perdão de Deus. Se estudarmos o Pai Nosso veremos como ele se conforma com o dito: Pai[adoração]. Santificado teu nome [berahá]. Venha teu reino e dá-nos o pão [suplicatórios]. Perdoa [penitencial]. E) SHEMÁ: Porém existe uma oração própria de todo judeu que deve ser recitada duas vezes por dia: o Shemá. A recitação do mesmo recebe o nome de Keriat Shemá [leitura do Shemá] pois, era semicantada, em voz alta. Dados do segundo Beit Mikdash [ casa sagrada ou templo], dizem que se recitava diariamente, entoada pelos sacerdotes após o Korban Tamid Saharit [sacrifício ao alvorecer]. O povo reunido no Mikdash [santuário] respondia: Abençoado seu nome, cujo Reino [é] glorioso para sempre, como forma de adesão ao culto e cumprimento das Mitzvoth Torá [preceitos da lei]. A Mishná [repetição ou lei falada] estabelece que uma pessoa deve esmerar-se em ler o Shemá e recitar a Amidá [principal oração suplicatória da liturgia judaica]. Os judeus têm três momentos de oração marcados por lei: Tefilat-sakarit [oração da manhã] Tefilat- Minká [oração da tarde] e Tefilat-Arvit [oração da noite]. Segundo a Mishná, o Shemá deve ser recitado na oração da manhã e na oração da noite, seguindo o preceito [mitzvá] da Torá: Estas palavras as inculcarás aos teus filhos e delas falarás …ao deitar-te e ao levantar-te ( Dt 6, 7).
AS TRÊS PARTES DO SHEMÁ
A) PRIMEIRA PARASHÁ (Dt 6, 4-9): Parashá, em plural pareshot, é cada um dos parágrafos em que os massoretas [os fixadores do texto através de vogais sublinhares] dividiam o texto da Torá. Os Hahamim (rabinos) deduziram do texto, que fazia referência a certos momentos do dia e nos quais obrigatoriamente deviam ser pronunciadas estas palavras, que pertencem à primeira parashá ou trecho dos três que eram recitados no Shemá: (Dt 6,4-9) Shemá [Ouve] Israel: Jahvé (hoje substituído por Adonai [meu Senhor], ou Hashem [o Nome]) Elohenu [nosso Deus]. Jahvé Ehad [único](4). We [e] ahabeta [amarás] eth [a] Jahvé Eliheika [teu Deus] bekol [com todo] lebabeka [teu coração] we [e] becol [com toda] nefeshka [tua alma] we [e] becol [com todo] meodka [teu poder] (5). Atualmente os judeus substituem Jahvé por H ‘. Devemos ler da esquerda para direita. O ‘ é o Yod, inicial das consoantes do nome de ‘HWH e H [o he], a segunda consoante, ou talvez a última de O Nome que eles traduzem como Hashem. Podemos ler com letras românicas o hebraico original em negrito, ao que acompanha em colchetes a sua tradução. O versículo 4 inicia-se com Shemá cuja última letra é E [y] e a última letra de Ehad é D. Com estas duas letras se forma a palavra ED que significa testemunho. Por isso estão escritas de forma destacada, como letras grandes, no livro da Torá. Porque este versículo era o escolhido pelos mártires judeus para morrerem com estas palavras pronunciadas no último suspiro de sua existência, tal como vemos no filme dos assassinados na olimpíada de Munique (1972). O grande Rabi Akiba, na época das perseguições do Império Romano, ensinava que bekol nefeshka [com todo teu ser] devia significar até o sacrifício da vida. No meio dos suplícios de seu martírio entoava o Shemá. Os discípulos estranharam ao ver o gozo com que ele entoava a oração e ele respondeu: Durante toda a minha vida, quando recitava o Shemá, me preocupava de quando poderia entender o que significava amar a Deus sem esperar recompensa. Agora chegou o momento de cumprir esse preceito. O momento da Shemá da manhã [Tefilá sakarit] é quando se colocam os Tefilim [filactérios] caixinhas de couro com rolos de pergaminho contendo quatro trechos ou parashot da Torá (ver figura), que eram obrigatórios para recitar o Keriat [leitura] da manhã. A tradição afirma que o versículo 4 foi dito pela primeira vez pelos filhos de Jacó/ Israel ao pai moribundo, quando este perguntou: Meus filhos, estais bem firmes na vossa crença num único Deus? Em resposta, os filhos levantaram as mãos ao céu e disseram: Shemá Israel [ouve Israel ou Jacó], o Eterno é nosso Deus; o Eterno é um. Então Israel pronunciou de forma apenas audível o berahá [bênção] que também os judeus recitam em voz baixa: Bendito seu nome cujo Reino glorioso, para sempre. Como anedota contam que os Judeus hindus foram reconhecidos muitos séculos após sua diáspora porque recitavam esta primeira parte do shemá em hebraico, tendo esquecido por outra parte a língua de seus antepassados. O Tefilá da noite [Tefilá Arvit] era recitado ao se acostar. Finalmente o Tefilá da tarde [Tefilá Minká] era só recitado aos sábados, no dia de Yom Kippur [dia da expiação] e nos dias de jejum geral de todo o povo. Esta última recitação não era obrigatória por lei.
B) SEGUNDA PARASHÁ: Corresponde a Dt 11, 13-21. Se a primeira se dirige ao indivíduo, a segunda é para o coletivo. A primeira é o amor sublime em estado puro. A segunda é o amor prático. A primeira é o compromisso com o Eterno, a segunda é a compenetração com suas palavras e ações, pela qual se deve cumprir com certas prescrições: os tefilim [filactérios], os tzitzit [franjas], e o mezuzá [pergaminho] que consistia em escrever com as palavras do Shemá as jambas e os umbrais das casas. Atualmente o Mezuzá é um estojo que contém as duas parashás do Shemá e numa abertura se distingue a palavra Shadai [todo-poderoso] que dizem foi um composto das palavras Shomer[guardião] Delaot [portas] Israel. Além desses símbolos a serem usados na roupa, ou nas portas das casas, o judeu deve ensinar seus filhos, quer seja na casa ou no caminho fora da mesma, o significado do Shemá (ver os desenhos).
C) TERCEIRA PARASHÁ: Nm 15, 37-41. O preceito do Tzitzit é determinado com os números correspondentes às letras pelo nome [tzitzit] representados. Na recitação do Shemá, além do kipá ou solidéu, cobrem seus ombros com o talit, em forma de toalha, o manto ritual com as famosas listas azuis ou pretas paralelas aos lados mais curtos e que os fariseus ampliavam como distinção de sua piedade, segundo Mt 23, 5. Na parte superior que rodeia o pescoço tem um galão de prata ou ouro. E nos quatro cantos do retângulo pendem as borlas do Tzitzit como vemos na figura. O valor numérico da palavra TZITZIT é 600 junto com os 8 fios e 5 nós em cada canto chega a 613, o número total das mitvás [preceitos]da Torá, justo para se lembrar dos mesmos no momento da reza. Olhar para o tzitzit significa lembrar-se de toda a lei de Moisés.
Vemos nas figuras acima da esquerda para direita o Talit com os tzitzit correspondentes, os filactérios em forma de caixas com os cordões de couro para atá-los na fronte e no braço esquerdo e a mezuzá das casas.
O PAI NOSSO (1ª PARTE)
O PAI E O REINO: Disse-lhes, pois: Pai, o dos céus! Santificado seja o teu nome, venha o teu Reino (2). Et ait illis cum oratis dicite Pater sanctificetur nomen tuum adveniat regnum tuum. Voltemos à oração que Jesus ensinou. Lucas une num conjunto, que forma uma série à parte, três passagens dedicadas à oração: a fórmula do Pai Nosso, a parábola do amigo impertinente e algumas máximas sobre a eficácia da oração. Na antiguidade cristã temos três diferentes fórmulas sobre o Pai Nosso: Esta de Lucas, considerada a mais antiga pela brevidade; a de Mateus 6, 9-13 com três explicações de tipo catequético, e a da Dídaque que é igual a de Mateus mas com uma doxologia no final. PAI: Como início da oração temos um vocativo: Pai. A Ele nos dirigimos como filhos. É uma invocação que não só atrai a atenção divina como próxima de nossas vidas, mas também nos coloca em disposição de aceitar suas ordens e cumprir sua vontade. Esperamos seu carinho e sua bondade e oferecemos nossa debilidade e nossa confiança. Mateus acrescenta: Nosso, o dos céus (9, 6). Na concepção tripartida do mundo, os céus eram do domínio absoluto de Deus, onde nada nem ninguém impedia a realização de seus planos. No AT também Javé era considerado como Pai, pois se fala de que o povo de Israel era filho de Deus e até seu primogênito (Êx 4, 22), como também o rei (2 Sm 7, 14). É pai como criador (Dt 32, 6), como ofendido pelo pecado de Israel (Jr 3, 4), como fonte de misericórdia e perdão (Sl 103, 13). Mas o emprego deste apelativo na oração individual é raro, por não dizer fora do comum. O início das orações judaicas era o de reconhecimento da Majestade e Transcendência de Deus. Os títulos de Rei, Senhor, são os mais usados. Um exemplo é o de Ester: Ó meu Senhor, nosso Rei, tu és Único (4,17) Na oração do Kadish [oração falsamente atribuída aos velórios], lemos: Seja louvado e santificado o nome do Senhor, no mundo criado por Ele segundo sua vontade. Faça reinar seu reino na vossa vida e na vida de toda a estirpe de Israel agora e sempre Amém. Na oração Shemoné esré [das dezoito bênçãos], recitamos: Bendito sejas, Eterno [Jahweh], Deus nosso e de nossos pais , Deus grande, esforçado e terrível, Deus altíssimo. Bendito sejas, Eterno, Rei que ajuda, liberta e defende, defensor de Abraão. Como vemos pelos exemplos, os atributos que se invocam de Deus são o seu poder e senhorio e as suas ligações com o povo de sua escolha como defensor do mesmo contra seus inimigos. Nestas orações encontramos muito de retórica, exclusivismos e desejos de vingança contra inimigos, longe da simplicidade do Pai a quem nos dirigimos todos como filhos sem distinção. Como nota curiosa podemos trazer as citações em que o Pai Nosso era considerado por Tertuliano breviarium Totius Evangelii [resumo de todo o evangelho] e por S. Cipriano coelestis doctrinae compendium [compêndio da doutrina celeste]. Por isso, na Igreja antiga, era transmitido solenemente ao batizando antes do batismo, submetido à disciplina do arcano [das verdades que não podiam ser reveladas aos não-cristãos]. Revelar que Deus era Pai dos novos batizados, os gerados de novo no Batismo, o Abbá, do qual é a tradução literal grega Pater, era, segundo Paulo, a base do sentimento cristão. O termo ABBÁ [no original], recebido pelo espírito de adoção pelo qual clamamos: O Pai (Rm 8, 15). Da mesma forma, com as mesmas palavras temos Gl 4,15 em que o ABBÁ é traduzido por O PAI. O que significa ABBÁ? Contrariando J. Jeremias, que diz significava papai, os modernos dizem que o Abbá era utilizado como tratamento dado por pequenos e adolescentes ao seu pai e também como tratamento a pessoas maiores (Mt 23, 9). No nosso caso, é uma nova relação íntima com o ser, que os judeus não ousavam de chamar pelo seu nome e até nem o escreviam, e que na língua vernácula representam pela grafia H’ de Yahveh [Hevha’] [ler de esquerda direita], ou HÁ SHEM [o nome]. SANTIFICADO SEJA TEU NOME: Tanto Mateus como Lucas têm a mesma súplica. É uma exclamação ou uma prece? Judeus e árabes, imediatamente após o nome de Deus, exclamam: Seja ele bendito. Será também um louvor do orante e não, como temos aprendido, uma súplica para que Deus mostre sua presença transcendente? De fato o Kadish [traduzido por santificação] inicia-se com Seja seu nome exaltado e santificado. Evidentemente é um desejo este do Kadish ou uma exclamação como quando os árabes após o nome de Alá exclamam, Bendito seja para sempre! De modo que esta que comentamos é uma exclamação e não uma petição de que Deus mostre a transcendência de seu nome, que, por outra parte, não é mais Jahweh [ou Hashem traduzido por Eterno] mas Pai? A tradição vê, nesta que temos chamado de invocação exclamatória, uma petição que, por estar na passiva, parece ser súplica de que Deus atue de forma a demonstrar sua grandeza e realeza, como Daniel pede que sejam vistos seu poder e sabedoria de eternidade em eternidade (2, 20). No Kadish, recitado ao fim da homilia na sinagoga, junto com O Nome justapunha-se a petição de que fosse exaltado, engrandecido e santificado, e que fizesse dominar sua realeza em nossas vidas e em nossos dias. Sem dúvida, que temos duas ações simultâneas: a divina, como absoluto domínio e a humana, como submetimento à vontade dos planos de Deus. Por isso na Shemoné lemos: Tu és santo [o agathos grego] e santo é teu nome e os santos te louvarão sempre e cada dia. Bendito sejas, Eterno, Deus santo! E na oração do Kadish temos esta bênção: Seja bendito e santificado o nome do Senhor no mundo, por Ele criado segundo sua vontade. (…) Seja bendito, louvado, honrado, engrandecido e glorificado o nome do Santo. Seja ele bendito sobre toda bênção e todo canto, sobre todo louvor e toda consolação que se pronunciam neste mundo. Amém. O REINO: Tanto no Kadish como na Shemoné Esré temos alusões claras ao reino. Vamos citá-las. Kadish: No mundo que Ele criou segundo a sua vontade, seja estabelecido seu reino na vossa vida e nos vossos dias e na vida de toda a estirpe de Israel agora e sempre. Amém. E na Shemoné : Bendito sejas Eterno, Rei que ajuda, liberta e defende, defensor de Abraão (…) Faze que voltemos à Torá e aproxima-nos a teu serviço, Rei nosso, e faze que voltemos o rosto para a frente com íntegro arrependimento. Como podemos ver, o reino era uma aspiração constante nas orações do tempo entre os judeus. O simples adveniat regnum tuum [venha o teu reino] de Lucas é explicado por Mateus de forma breve, mas magistral: que tua vontade se cumpra na terra do modo que ela é acatada no céu. A universalidade do Reino é oposta à estrita e reduzida ideologia das orações judaicas em que o reino está fundado no triunfo político de Israel.
O PAI NOSSO (2ª PARTE)
O PÃO: O pão nosso, o necessário, dá-nos cada dia (3). Panem nostrum cotidianum da nobis cotidie O PÃO: As petições em Lucas e Mateus sobre o pão coincidem com as mesmas palavras; só que Lucas usa o verbo em presente [dá contínuo] e Mateus em aoristo [dá aqui e agora]. A palavra que tem dado a diversas interpretações é epiousios <1967>. A opinião mais provável é que seu significado é seguinte como corresponde adjetivamente ao emera [dia] epiousia [seguinte]. Assim em At 7,26: No dia seguinte, apareceu Moisés [të te epiouse ëmera öfthe; sequenti vero die latino]]. Também a noite é seguida por epiousia At 23, 11: [Të de epiousë nyhti. Sequénti autem nocte latino]. A tradução, pois, do texto seria: o pão nosso o de amanhã, dá-nos a cada dia. Esta tradução é confirmada pela versão antiga do evangelho dos nazarenos ou dos hebreus que usa a palavra MAHAR [prontamente] para traduzir: dá-nos [continua a dar-nos] hoje o pão do amanhã, ou seja, o pão que nos darás no teu reino. Com o presente imperativo de Lucas poderíamos traduzir: Continua a dar-nos (como sempre) o pão, o de amanhã, que vamos necessitar a cada dia. Uma outra tradução seria dar a epiousios o significado de necessário em que ousia não significa substância, mas existência e, portanto, epiousios significaria vital. A tradução seria: dá-nos o pão necessário a cada dia. Esta é a tradução preferida hoje em dia. A tradução incorreta de Mateus 6,11 do epiousios, como supersubstantialis [supersubstancial], pela Vulgata, dando origem a de que se pedia o pão eucarístico, está hoje descartada, já que a mesma Vulgata traduz a mesma palavra epiousios em Lucas por cotidianus [de cada dia], como temos visto no versículo que comentamos. É a tradução literal de Green: Give us our needed bread. Como nota curiosa damos as traduções da versão King James: Give us this day our daily bread (Mt 6, 11) e Give us day by day our daily bread (Lc 11, 3).
O PERDÃO: E remite-nos os nossos pecados, já que também nós remitimos todo devedor nosso; e não nos leves dentro (da) tentação, [mas livra-nos do maligno] (4). Et dimitte nobis peccata nostra siquidem et ipsi dimittimus omni debenti nobis et ne nos inducas in temptationem. OS PECADOS: Lucas fala de amartia [pecado]/ofeilontes [os que estão devendo]; a tradução de amartia por pecado acontece uma única vez das 148 vezes que ela é traduzida como ofensa, enquanto Mateus usa ofeilema [dívida] [chobim] debita latino / ofeiletas [devedores, como substantivo]. Já Lucas identifica dívidas com pecado quando o devedor é o homem e o sujeito da dívida, o próprio Deus. O tema do perdão também é típico do judaísmo da época. Rei nosso faz que voltemos o rosto para a frente com íntegro arrependimento (Shemoné ). Perdoa ao teu próximo a injustiça, e então ao rezares ser-te-ão perdoados os teus pecados (Eclo 28,2). Mas não atinge os inimigos, nem os não pertencentes a povos diferentes de Israel. Pelo contrário, o perdão é básico na literatura cristã (Lc 6, 37). Perdão de Deus para nós, e perdão dos inimigos por parte dos homens que desejam se comportar como o Pai, segundo afirma Mateus no versículo seguinte (6, 14-15). Em Mt 5, 23 s Jesus fala sobre a importância de se reconciliar antes de oferecer o sacrifício ou de levar o contencioso ao juiz. E como norma de vida não devemos condenar para não sermos condenados (Mt 7,1). O cristão se compromete a atuar como o Pai e propõe sua conduta como filho para que o Pai atue realmente como tal Pai. Sem dúvida que esta proposição não é muito bem aceita pelos que só propõem a fé como base da salvação. Aqui temos uma proposta baseada nos méritos, nas obras boas do homem, e não na fé confidencial. Jesus não afirma que não seremos perdoados se não perdoamos, mas oferece uma boa razão para Deus cumprir suas promessas: perdoar aqueles que demonstram misericórdia com o próximo. Além do texto anterior do Eclesiástico temos: Pela misericórdia e pela verdade se expia a culpa (Pr 16, 2). Ou mais claramente como afirma Tiago o juízo é sem misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o juízo (2, 13). A TENTAÇÃO: Lucas e Mateus usam a dupla eisfero/peirasmós [levar/prova]. Tudo depende de que classe de prova ou tentação é a referida no versículo. Peirasmós significa também tribulação e sofrimento. A causa da diversa interpretação deste parágrafo é o verbo com o qual se determina a ação divina: eisferö, significa introduzir, transportar, arrastar. Como Deus pode ser causa de uma tentação em que o homem não tem força para superá-la? Os termos em que está formulada a petição são os mesmos em que Jesus pede aos discípulos que orem para não entrar em tentação (Lc 22, 40.46). Qual era a tentação a que estavam os discípulos propensos a cair nesse momento? Sem dúvida a de desertar de seu seguimento, ou por covardia, ou pelas dúvidas que a paixão de Jesus suscitaria neles ( Lc 24, 21). Deus no AT é visto como tentando o seu povo (Êx 16, 4 e 20, 20 entre outros). Ou seja, pondo o povo à prova. Ainda não existia a diferença entre vontade absoluta e vontade permissiva divina. Em Rm 9, 18 Deus endurece o coração de quem quer. Por isso suscitou e endureceu o coração do faraó para mostrar nele o seu poder, e assim seu Nome pudesse ser celebrado em toda a terra (Rm 9, 17). Foram as disputas teológicas sobre a predestinação que fizeram a distinção entre absoluto e permissivas. Deus não quer o mal em absoluto, mas o permite porque de sua permissão resulta maior benefício para as criaturas e maior glória para sua divina Providência. Já o apóstolo Tiago afirma claramente: Quando alguém está tentado não diga que é Deus quem o tenta, porque Ele não tenta ninguém (Tg 1, 13). Temos o caso de Jesus no deserto. Ele foi levado pelo Espírito para ser tentado pelo diabo (Mt 4,1). E as tentações de Jesus eram sobre a sua missão salvífica para desviá-lo da mesma, e assim se render às sugestões do maligno. Por isso muitos afirmam que a tentação da qual os discípulos pedem para serem liberados seria a da apostasia em relação a Jesus. O MALIGNO: apo tou ponëros <4190> que a vulgata traduz por a malo. Evidentemente o ponerós não é um adjetivo, mas um nome e pode ser traduzido por maligno ou mal. Se optamos por maligno o personagem seria o diabo. Se optamos pelo mal pode ser até o sofrimento ou a enfermidade. O texto grego inclina-se pelo maligno ou malvado. O Malum latino, pelo contrário, significa mal físico ou moral, com um segundo sentido com significado de o maligno. Em Lucas, o ponerós é quase sempre adjetivo significando mau ou perverso, sendo o adjetivo que acompanha os espíritos malignos expulsos por Jesus. Maligno e inimigo é o que semeia o joio pois os filhos do maligno são o joio (Mt 13, 25+).O Maligno é o Diabo, que trabalha, arrebatando a semente do coração, para que os ouvintes não creiam e se salvem (Lc 11, 12). Precisamente esta é provavelmente a natureza do pedido desta última parte do Pai Nosso. Como final, devemos dizer que esta parte B do versículo falta na maioria dos códices e por isso o encerramos entre colchetes. É uma transposição do texto paralelo de Mateus 6, 13. Tudo indica que o Pai Nosso de Mateus era a oração comum das comunidades eclesiais e por isso o versículo foi acrescentado em diversos códices mais modernos.
SEGUNDA PARTE: PARÁBOLAS
A) DO AMIGO
O AMIGO: E disse-lhes: Quem dentre vós terá um amigo e vier a ele à meia-noite e lhe disser: amigo, presta-me três pães (5), já que agora um meu amigo veio de caminho a mim e não tenho o que oferecêr-lhe (6). Et ait ad illos quis vestrum habebit amicum et ibit ad illum media nocte et dicit illi amice commoda mihi tres panes quoniam amicus meus venit de via ad me et non habeo quod ponam ante illum. Lucas prossegue este discurso sobre a oração, da qual ele tanto gosta, com outras duas narrações típicas dele: A parábola do amigo inoportuno e uma série de conselhos sobre como é respondida a oração pelo melhor dos pais. A parábola é melhor compreendida quando estudamos os costumes da época na Palestina. O pão era a comida praticamente única dos menos ricos. Três pães respondiam à comida de um dia. O pão era cozido de manhã cedo, após a dona-de-casa moer o trigo com um moinho de mão. Logo a farinha assim obtida, era misturada com água e em forma de grandes hóstias, como é o pão sírio atual, e era colocado sobre uma prancha quente até ser assado. O amigo chega de noite. Na realidade, as viagens, devido ao calor do dia, muitas vezes eram realizadas à noite, daí que fossem essas horas as da chegada do vizinho.
A RESPOSTA: E aquele, de dentro, tendo respondido, disse: Não me tragas moléstias agora; a porta está fechada e os filhos estão comigo no leito; não posso, levantando-me, te dar (7). Et ille de intus respondens dicat noli mihi molestus esse iam ostium clausum est et pueri mei mecum sunt in cubili non possum surgere et dare tibi. As casas humildes tinham unicamente uma habitação, separando nela por um cortinado o himeneu [lugar dos esposos] que ficava no fundo da habitação em que dormiam os outros membros da família; e durante a noite todos dormiam sobre esteiras, de modo que para passar do fundo até a porta deviam se levantar todos os membros da família. Compreende-se a resposta do dono da casa: a porta esta trancada e meus filhos estão deitados.
CONCLUSÃO: Digo-vos: Se por acaso não dará a ele, levantando-se por ser ele um amigo, porém pela “cara-de-pau” dele, levantando-se dará a ele o quanto necessita(8). Porque todo o que pede recebe e o que busca encontra e a quem bate se abrirá (9). Dico vobis et si non dabit illi surgens eo quod amicus eius sit propter improbitatem tamen eius surget et dabit illi quotquot habet necessarios. Omnis enim qui petit accipit et qui quaerit invenit et pulsanti aperietur. A palavra chave é anaideia <335>[anaideia] que o latim traduz por falta de vergonha ou como diz Green pela sua desavergonhada insistência, que hoje chamaríamos melhor de inoportuna. Diante, pois, da insistência do inoportuno amigo, Jesus se atreve a concluir que certamente conseguirá os pães, mesmo que seja pela insistência se não for suficiente a amizade. E Jesus termina talvez com o que era provérbio na época que recalca a insistência na oração até de um ponto de vista meramente humano: Pedi e vos será dado. Buscai e encontrareis. Batei e abrir-se-vos-á (9). Mateus traz em lugar paralelo as mesmas palavras que parecem formar parte de um poema ou um aforismo: Pedi e vos será dado. Buscai e encontrareis. Batei e vos será aberto (Mt 7, 7). E ambos terminam com as mesmas palavras: Todo aquele que pede, recebe. E o que busca, encontra e ao que bate, abre-se. Não existe melhor trilogia para indicar que grande parte de nossas conquistas em todos os âmbitos têm como fundamento a oração e a constância.
B) DO PAI
O PÃO E O PEIXE: Pois a quem de vós, pai, pedirá pão o filho, jamais lhe dará uma pedra. E se um peixe, nunca dará no lugar do peixe uma serpente(11). Ou se lhe pedisse um ovo, jamais dará a ele um escorpião(12). Quis autem ex vobis patrem petet panem numquid lapidem dabit illi aut piscem numquid pro pisce serpentem dabit illi. Aut si petierit ovum numquid porriget illi scorpionem. Jesus, à parte essa conclusão que mais parece uma coleção de ditos populares anima seus discípulos a fundar sua vida na oração como base de confiança num Deus que é, desde a primeira invocação, apelidado de Pai. E compara esta paternidade divina com a humana: se um pai humano trata da melhor maneira possível seus filhos em necessidade, como o Pai verdadeiro deverá falhar com os que o invocam com tal título e nele depositam sua confiança e deixam em suas mãos suas esperanças? As antíteses são também clássicas ou populares como o demonstra o lugar paralelo de Mateus. Em Lucas, temos as antíteses pão/pedra, peixe/serpente e ovo/escorpião (ver 11-12). E Mateus de pão/pedra, peixe/serpente (7,9-10). O peixe e a serpente d’água têm certa afinidade, especialmente se se trata de moreias, na época comida esquisita entre os romanos. O escorpião, quando se enrola parece uma espécie de ovo. E a pedra pode ter forma de pão. Mais importante do que a semelhança entre os termos é a qualidade dos produtos enumerados. O primeiro termo é bom; o segundo é um veneno ou um mal. A serpente e o escorpião eram modelos do mal ou do maligno. (ver comentário em Presbíteros.com.br, exegese, do Domingo XIV sobre poderes dos enviados).
CONCLUSÃO FINAL
ESPÍRITO SANTO: Se, pois, vós sendo malvados sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais o Pai, o do céu, dará Espírito Divino aos que o pedem(13). Si ergo vos cum sitis mali nostis bona data dare filiis vestris quanto magis Pater vester de caelo dabit spiritum bonum petentibus se. No lugar do espírito divino de Lucas, Mateus fala de dar coisas boas (7, 11). A Vulgata traduz spiritum bonum [espírito de bem]. Falta o artigo O diante do espírito, de modo que a versão da Vulgata é correta. Para Lucas, esse espírito era a paz com todas as qualidades e atributos que semelhante expressão abrangia. Que devemos dizer? Tertuliano tinha toda a razão quando afirmava ser o Pai Nosso o resumo de todo o evangelho: A oração de Jesus nos coloca frente à frente a um Pai, que é a revelação que Jesus veio anunciar e propagar a todos os homens. Viver a filiação era viver a oração do Pai Nosso e era viver a essência do Evangelho, na intimidade com a divindade, e na fraternidade com a humanidade. Por isso podemos afirmar que a frase do grande apologista africano é verdadeira e exata.
PISTAS: 1) A oração deve ser a forma usual de vida com Deus. É como uma conversa com um ser superior que Teresa chamava de Majestade; mas viver a familiaridade com Deus na intimidade do sentimento e do coração. Como temos visto nas múltiplas orações dos judeus, a adoração e a ação-de-graças devem ter prioridade. Sem elas é impossível se dirigir a Deus, pois com Ele nos enfrentaríamos como um igual a um igual, com a soberba de quem exige, não com a humildade de quem pede. O Pai Nosso é precisamente essa oração em que a santidade de Deus e sua vontade precedem às nossas necessidades.
2) As últimas preces se dirigem a quem como Pai pode remediar nossas deficiências: as vitais do corpo de cada dia, as espirituais necessárias do perdão, e a libertação de toda ação do maligno. Que este não tenha sobre nós o poder de uma tentação impossível de superar. Jesus pediu a seus discípulos essa oração na hora da escolha dolorosa da paixão. Sem essa súplica, o verdadeiro Espírito Divino não nos seria dado e facilmente seríamos arrastados pela tentação, pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca (Mt 26, 41).
3) Com as duas parábolas Jesus mostra que a oração deve ser até importuna mas constante e ao mesmo tempo confiante, pois a quem pedimos não é um estranho ou um inimigo, mas um Pai e um Pai boníssimo. E faz uma comparação analógica entre os pais terrenos e o Pai do céu, dando a este a preferência em bondade e amor.
4) Segundo Lucas, o objetivo principal da oração é a recepção de um espírito que provenha da parte de Deus porque o nosso espírito é de tendência ao mal, sendo como somos perversos e o espírito do maligno nos pode atingir com a tentação. Ver as coisas no seu verdadeiro valor é ter o Espírito Divino que rege suas atuações e deve guiar nossos passos. Sentir-nos como filhos e ver nos outros os verdadeiros irmãos é viver esse espírito que podemos chamar de espírito que vive a Paternidade em Deus e a filiação nos homens.