Comentário Exegético – XVI Domingo do Tempo Comum (Ano C)

Epístola (Cl 1, 24-28)

AS TRIBULAÇÕES COMO NECESSÁRIAS PARA OS CRISTÃOS

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

AS TRIBULAÇÕES: Agora me regozijo nos meus sofrimentos por vós, e preencho as deficiências das tribulações do Cristo na minha carne em favor de seu corpo, o qual é a Igreja (24). Qui nunc gaudeo in passionibus pro vobis et adimpleo ea quae desunt passionum Christi in carne mea pro corpore eius quod est ecclesia. PREENCHO: [antanaplërö <466>=adimpleo] como significado de encher a medida, cumprir, executar, suprir, ocupar, completar.  DEFICIÊNCIAS: [ysterëmata<5303>=quae desunt] a tradução de ysterëma é deficiência, ausência, necessidade, pobreza, o que falta. DAS TRIBULAÇÕES: [thlipseön <2347> =passionum] tribulação, aflição, aperto. Com o nome de tribulação [tribulation] aparece 12 vezes, aflição [afliction] nove e dificuldade [trouble] três  na KJV, versão inglesa bastante confiável. Tribulações é a tradução da TEB e que mantém a oficial espanhola. Talvez, do latim passiones a  tradução sofrimentos seja a que tem prevalecido na interpretação da passagem, levando o leitor a pensar que os sofrimentos da cruz eram compartidos por Paulo como uma necessidade para completar os mesmos. Mas o verdadeiro significado da palavra não é sofrimentos, mas tribulações, adversidades ou dificuldades. Cristo as encontrou durante sua pregação do Reino e Paulo sofreu muito dos inimigos do evangelho de modo que exclamou: no meu corpo trago os estigmas do Senhor Jesus (Gl 6, 17). Destas dificuldades e adversidades o próprio Jesus disse que o reino dos céus sofre violência e os violentos se apoderam dele (Mt 11, 12). E se a mim me perseguiram, também perseguirão a vós outros (Jo 15, 20). Daí que Paulo possa dizer, como verdadeiro discípulo e pregador do reino: Em tudo recomendamo-nos a nós mesmos como ministros de Deus na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias (2 Cor 6, 4). NOTA: Este texto tem sido interpretado, através da tradução latina, como uma participação direta de Paulo no mistério da paixão e morte de Cristo. Segundo S. Tomás de Aquino, a morte e paixão de Cristo têm valor total e infinito. Ela não admite uma corredenção em si mesma, mas a Igreja, como parte do corpo místico de Cristo, deve ser em tudo conforme a sua cabeça e  não participará de sua glória [da correspondente à cabeça] caso não participe dos padecimentos da mesma (Rm 8, 17 e 20). Cristo já padeceu o que estava disposto nos desígnios do Pai [Consumatum est] (Jo 17, 4 e 19, 30). Falta, pois o que corresponde aos membros para se conformar à cabeça, cada um devendo assumir sua parte até que se colme a cruz individual que devemos tomar como verdadeiros discípulos de Cristo (Mt 10, 38). Somos parte desse Cristo místico que não só é esposo da Igreja, em vida comum, mas que deseja ser esposo em matrimônio místico, mas experimental, como última união de cada membro da mesma. Exatamente assim o demonstram as experiências místicas dos santos que chegam a dizer: padecer e não morrer. Deste modo, cada cruz de um membro é também a cruz de Cristo e contribui aos méritos que são parte da saúde e redenção do corpo total. É uma consequência que Paulo claramente expressa em 1 Cor 12, 26: se um membro padece todos os membros sofrem com ele e se um membro é honrado todos com ele se regozijam. Daí que, neste mundo de pecado, Maria pede em Fátima que se façam atos de penitência para a conversão dos pecadores.

MINISTÉRIO PAULINO: Da qual eu fui feito servidor em conformidade com a administração de(o) Deus a mim entregue para cumprir a palavra de(o) Deus (25), Cuius factus sum ego minister secundum dispensationem Dei quae data est mihi in vos ut impleam verbum Dei. Como sempre, Paulo, para distinguir o verdadeiro Deus dos deuses pagãos, usa o artigo determinante que temos posto entre parêntesis. SERVIDOR: [diakonos<1249>=minister] diferente de doulos [<1402>=servus] este verdadeiro escravo. Podemos dizer que diakonos era o servidor à mesa como vemos em Jo 2, 5 e 9, geralmente um homem ou mulher livre, à diferença do doulos que sempre era um escravo, ou do ‘yperetës <5257> que era o servidor real.  Na Igreja primitiva, os diakonos eram os designados para o serviço material dos necessitados, dentro da comunidade (At 6, 1-6). No grego também encontramos ‘yperetës [<5257>=minister] que se traduz por serventuário ou oficial de uma autoridade, como temos em Mt  26, 58, quando Pedro entrou no pátio do Sumo Sacerdote e assentou-se entre os servidores ou serventuários como diz RA evangélica. ADMINISTRAÇÃO [oikonomia <3622>= dispensatio] inicialmente administração ou gerência de uma casa para terminar com a administração de uma empresa ou um negócio. Quando falamos da economia de Deus, podemos dizer que se trata da dispensação de sua providência com os planos de salvação dos homens, através das graças necessárias para levar ao término os mesmos. Tal Ef 3,2 e 1 Cor 9, 17 em que essa planificação passa pela cooperação livre, mas necessária, de Paulo, como apóstolo escolhido por Deus. Paulo é o instrumento de Deus para CUMPRIR A PALAVRA, ou seja, para que a palavra, como ele chama o evangelho cumpra sua missão de excitar os pagãos à penitência e conversão. Tal como era a primeira voz a ser escutada na Galileia no início da vida pública de Jesus (Mc 1, 14-15) e que Paulo reclama na sua epístola aos de Corinto: não me enviou Cristo para batizar mas para pregar o evangelho (1 Cor 1, 17). Daí que termina dizendo: eu plantei, Apolo regou, mas o crescimento veio de Deus (1 Cor 3, 6).

MANIFESTAÇÃO DO MISTÉRIO: O mistério, o escondido desde as idades e desde as gerações, mas agora manifestado aos consagrados dEle (26). Mysterium quod absconditum fuit a saeculis et generationibus nunc autem manifestatum est sanctis eius. Essa palavra [logos] exprime agora uma realidade que Paulo designa como MISTÉRIO [mystërion <3466> =mysterium]. Mistério, coisa oculta, escondida, secreta, um enigma que deve ser conhecido e manifestado. IDADES: Esse mistério é agora revelado. Paulo diz que foi escondido desde os inícios dos tempos [apo tön aiöniön<165>=a saeculis]. Aiön em latim aevum é a idade de um homem ou seu período, que pode significar também um período longo de tempo e até uma eternidade ou para sempre [eis ton aiöna].Uma frase comum é eis tous aiönas tön aiöniön [per saecula seaculorum] pelos séculos dos séculos, em que a idade se transforma em século. Apo tön aiönön é a frase atual que se repete em Ef  3, 9 e que em ambos os casos, o latim traduz a saeculis, que é traduzida por dos séculos (RA) ou com melhor conformidade com o original, no decurso das idades da TEB. DESDE AS GERAÇÕES [apo tön geneön <1074>=a generationibus]. Genea pode ser família, membros de uma família, geração que nos tempos de Jesus correspondia a um período de 30-33 anos. A frase, pois, tem o significado desde a origem [dos homens]. Esse mistério oculto agora é manifestado a seus CONSAGRADOS [agioi<40>=sanctus] a palavra agios significa reverenciado, e se diz de uma coisa que está dedicada à divindade, como o templo, que recebe o adjetivo substantivado to agion [ o sagrado] ou de uma coisa que pertence a Deus  (Lc 1, 35). Os demônios falam de Jesus como sendo o agios tou theou [o eleito de Deus]. O povo de Israel era santo (Dn 7, 28), assim como os cristãos são santos; e é neste sentido que se deve tomar a acepção antes indicada.

A GLÓRIA EM CRISTO: Aos quais quis o Deus dar a conhecer. Qual a riqueza da glória deste mistério no meio das gentes: o qual é Cristo em vós, a esperança da glória (27). Quibus voluit Deus notas facere divitias gloriae sacramenti huius in gentibus quod est Christus in vobis spes gloriae. RIQUEZA DA GLÓRIA: [ploutos <4149>tës doxës <1391> =divitias gloriae]. Em singular, ploutos pode ser traduzido por abundância, embora em plural signifique preferentemente riqueza ou riquezas. A glória é majestade, poder, que neste caso é a sabedoria e conhecimento do secreto divino  que se manifestou entre os gentios como resultado da pregação de Paulo. Precisamente o mistério estava concretado em Cristo, Cristo no meio dos convertidos como esperança última de vida. Num momento histórico em que a vida era tão difícil e curta, a esperança de uma vida imortal tinha ainda um sentido muito maior de se esforçar e lutar por uma expectativa que prometia uma riqueza inabalável, sem que nada pudesse eliminá-la (Lc 12, 33).

ANUNCIADO POR PAULO: O qual nós anunciamos admoestando todo homem e ensinando todo homem em toda sabedoria para apresentarmos todo homem completo em Cristo Jesus (28). Quem nos adnuntiamus corripientes omnem hominem et docentes omnem hominem in omni sapientia ut exhibeamus omnem hominem perfectum in Christo Iesu. O QUAL: Evidentemente é Cristo o anunciado por Paulo, como ele afirma em 1 Cor 1, 23: nós pregamos Cristo crucificado. Nada de justiça ou outros valores humanos; mas a cruz de Cristo era o objeto da pregação de Paulo. Essa era a sabedoria que devia salvar o mundo segundo Paulo: 1) Porque essa é a sabedoria divina que governa o mundo, pois Cristo é o poder de Deus e sabedoria de Deus (1Cor 1, 24); pois sendo a cruz loucura, é mais sensata que toda sabedoria humana e sendo fraqueza, é mais forte que toda fortaleza humana (1 Cor 1, 25). 2) Porque Ele e sua cruz são os únicos que aperfeiçoam o homem, que só encontra sua plenitude em Cristo Jesus, se tornando novo exemplo de seu modelo: o discípulo deve ser como o mestre e o servo como seu senhor (Mt 10, 24).

 

Evangelho (Lc 10, 38-42)

O ÚNICO NECESSÁRIO

(Pe Ignácio, dos padres Escolápios)

 

AO SEGUIR CAMINHANDO: E sucedeu ao caminharem eles, que também Ele entrou numa vila, uma mulher, pois, de nome Marta o recebeu em sua casa (38). Factum est autem dum irent et ipse intravit in quoddam castellum et mulier quaedam Martha nomine excepit illum in domum suam. Lucas quer iniciar uma nova perícope de sua narração que tem como circunstância externa a sua viagem para Jerusalém, um marco do qual Lucas se serve para narrar diversos ensinamentos junto de alguns fatos de Jesus, ao modo como Mateus enquadra as palavras do Mestre no sermão da montanha. Eis, pois, que entra numa pequena vila [kómê] ou aldeia. A Vulgata traduz por castellum [forte ou cidadela]. Sabemos que Marta e Maria moravam em Betânia [casa das tâmaras ou palmeiras], aldeia perto de Jerusalém (Jo 11,1). Mas segundo a lógica da narração de Lucas, Jesus ainda se encontrava na Samaria, ou no máximo perto de Jericó, ao qual chegamos no final do capítulo 18 (18,33). Porém, pelos relatos de Marcos, Mateus e João, sabemos que Betânia estava a poucos quilômetros de Jerusalém. O próprio Lucas em 19, 29 dirá que Betânia estava junto ao monte das Oliveiras. E era em Betânia onde Marta tinha sua casa (Jo 11,1), na qual se hospeda Jesus (Lc 10, 38). Vemos como, cronológica e geograficamente, Lucas está fora da realidade histórica. Não lhe interessa esse marco narrativo e prefere a perspectiva catequética ou lógica, sem que desvirtue fatos e ditos. Por isso, os seus escritos são cópia da realidade, vivida como anúncio, pelas suas fontes. MARTA: O nome Marta significa Senhora ou Dona, forma feminina do substantivo aramaico Maré [=senhor]. Parece que era nome usual na época entre os judeus; nome que podemos ler nos papiros egípcios e num ossário [urna que contém os ossos dos mortos] no distrito nor-oriental [lugar do cemitério] de Jerusalém. Quem era Marta? Certamente irmã de Maria (Lc 18, 39 e Jo 11, 1) e Lázaro (Jo 11,2). Supostamente, era a mulher de Simão, o leproso (Mt 26,6 e Mc 14, 3), pois é no jantar oferecido por ocasião da ressurreição de Lázaro (Jo 12, 1) que Marta, como dona de casa, servia (Lc 10, 28; 40). Parece que este jantar não é diferente do oferecido na casa de Simão, o leproso, e que é narrado por Marcos em 13, 3-9 e Mateus em 26, 6-13. Sabemos que os relatos evangélicos são incompletos, breves resumos do que na realidade aconteceu. Por isso, com os indícios de Lc 10, 38-42, podemos supor que o banquete de Lucas na casa de Marta era o mesmo que o banquete de Mc, Mt e Jo da unção em Betânia, na casa de Simão, o leproso (Mt 26 e Mc 14). Já é um indício forte a afirmação de Lucas que Jesus estava como hóspede na casa de Marta. Naqueles tempos, como uma mulher podia ser considerada dona de casa quando o marido, o filho mais velho ou o irmão, eram os que tinham a propriedade? Só se Simão fosse um leproso que devia estar fora do convívio familiar e mais tarde foi curado. Não estando morto ainda era o dono; mas não podia tomar conta da casa que era deixada aos cuidados da mulher. Não se devia a cura a um favor de Jesus, que assim se torna hóspede, na viagem para Jerusalém dos proprietários da casa? Tudo isto se combina com Jo 12, 1 que afirma que ofereceram um jantar a Jesus em Betânia em que Lázaro ou Eleazar [Javé o ajudou] estava à mesa e Marta servia. A palavra parece indicar que, como dona de casa, Marta se encarregava do serviço, como diz Lucas no trecho de hoje (38). De todas as formas, admitimos que o caso de hoje poderia ter  uma circunstância diferente, como um banquete de sábado entre o grupo [collegium] de fariseus do qual Simão formava parte.

 

MARIA: E lá, estava uma irmã, chamada Maria, a qual também, sentada aos pés de Jesus, escutava sua palavra (39). Et huic erat soror nomine Maria quae etiam sedens secus pedes Domini audiebat verbum illius. O nome em grego é MIRYAM ou Marianne, de significado escuro. Nada tem a ver com a Madalena de Lc 8,2 de nome também Maria, que Lucas, no caso de Nossa Senhora seguindo os setenta, chama de Mariam. É um nome cananeu de origem ugarítico [mrym] cujo significado próprio é altura, cume. Como nome de mulher tinha uma certa conotação de excelência. No trecho de hoje, Lucas a descreve como sentada junto aos pés do Senhor (39), que era a postura característica do discípulo ao ser ensinado (Lc 8, 35). Ou como foi educado Paulo aos pés de Gamaliel para aprender a observância exata da Lei [Torah]. Maria, pois, como discípula, escutava a palavra [instruções, recomendações], pois logos significa tudo isso.

 

KYRIOS: Marta, então, estava ocupada pelo muito serviço. Tendo-se, pois, apresentado disse: Senhor, não te importas de que minha irmã deixe de servir? Diz-lhe para me ajudar (40). Martha autem satagebat circa frequens ministerium quae stetit et ait Domine non est tibi curae quod soror mea reliquit me solam ministrare dic ergo illi ut me adiuvet.  KYRIOS: É o título que com maior frequência se atribui a Jesus. Com o artigo o Kyrios, o Senhor, ou sem o artigo. Não é nome próprio, mas título, atribuído a Jesus como a Deus. O título de Kyrios a Deus tem origem nos Setenta; porém, nos antigos manuscritos gregos parece que se conservava o nome Yahweh com caracteres hebraicos, como afirmam Orígenes e Jerônimo, no seu tempo, de certos manuscritos gregos. Parece que no chamado terceiro estágio do cristianismo [primeiro de promessa, segundo de Jesus e terceiro da Igreja], esta última, segundo Paulo, poderá afirmar que para nós não existe mais do que um Deus, o Pai, de quem procede o Universo e a quem estamos destinados nós;  e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem existe o Universo e por quem existimos todos nós (1Cor 8, 6). Por outra parte, o Judaísmo pré-cristão referia-se a Deus com o nome de Adon (daí o Adonai=meu Senhor) e em aramaico Maré ou Marya (daí o nome de Maria) e a expressão de Marana tha [Senhor, vem] (1 Cor 16, 22). Atualmente na recitação do Shemá, no lugar de Javé, para não pronunciar o nome santo [Hashem], eles recitam Adonai e traduzem ao português por O Eterno: O Eterno é nosso Deus, o Eterno é único. Atualmente também no lugar de Adonai recitam Hashem com esse significado de Eterno. Por isso a primeira profissão de fé é Jesus é o Senhor (1Cor 12, 3). O título de Kyrios é atribuído a Jesus após sua ressurreição, como diz Pedro: Deus constituiu Senhor e Cristo [Messias] a este Jesus a quem vós crucificastes (At 2, 36). O título de Kyrios passa pois, de Deus [o Javé de Israel] a Jesus na sua condição de ressuscitado, mas para o fim de ser o Rei Salvador, como o anjo anuncia aos pastores: Nasceu-vos um Salvador, o qual é Messias Senhor.(Lc 2, 11). A DIAKONIA: No grego temos diversas palavras que definem o serviço: Doulos escravo, que sendo doméstico recebia o nome de oiketes. Diakonos, criado, destinado a certos serviços especiais como o serviço da mesa. Yperetes um subordinado, inicialmente um submetido ao trabalho do remo. Finalmente o Therapôn, um temporário para um determinado serviço. Como vemos, Marta servia à mesa. Era a que cozinhava e preparava a mesa com velas, divãs, talheres e toalhas correspondentes. Nestes afazeres estava muito preocupada a nossa protagonista. Era o banquete que queria fosse particularmente especial para um hóspede que desejava agradar do fundo da alma porque a ele devia a vida do irmão e talvez a cura do esposo. Esse serviço era próprio das mulheres, enquanto os homens estavam reclinados no triclinium, ou mesa baixa disposta em forma de U, de modo que os serventes podiam entrar pelo centro para servir os comensais, individualmente.

 

MARTA, MARTA: Tendo respondido, então, disse-lhe Jesus: Marta, Marta. Estás preocupada e turbada por muitas coisas (41). Et respondens dixit illi Dominus Martha Martha sollicita es et turbaris erga plurima. Marta se queixa a Jesus de que sua irmã não a ajuda nos afazeres da casa. A resposta de Jesus é uma chamada de atenção que implica carinho e suave reprimenda: não espero de ti que te empenhes em fazer tantas coisas que não são convenientes ou razoáveis. Por que te empenhas em realizar tantas coisas ao mesmo tempo e te angustias por isso? Uma só coisa era a necessária como consequência de minha visita. E sabes? Tua irmã Maria a escolheu como quem escolhe o melhor. É por isso que eu não vou repreendê-la, nem tirar dela essa atitude que é a mais adequada neste momento.

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A PORÇÃO: Porém, uma só coisa é necessária. Maria, pois, escolheu a boa parte  da qual não será retirada dela (42).  Porro unum est necessarium Maria optimam partem elegit quae non auferetur ab ea. Qual é essa parte ou porção que fez de Maria a mais sábia na sua escolha? Sem dúvida a de receber Jesus como Mestre e não como hóspede. Como hóspede, a atitude de Marta estaria plenamente justificada e poderia ser absolutamente aplaudida: ótimo.  Ele merece a melhor e a mais abundante de minhas viandas. Mas recebê-lo como mestre significa, antes de tudo, ouvi-lo como palavra de vida e escutá-lo para aprender a realizar uma existência em plenitude da verdade. É se tornar discípula e não simples hospedeira. E nesse ponto, Maria estava com a força da razão que proporciona a verdade. Escutar Jesus como Mestre é o primeiro e principal dever de todo aquele que quer se tornar seu discípulo.

PISTAS: 1o) No contato com Jesus, qual é a coisa principal, ou como diz o evangelho, o necessário? Em toda vida existem momentos de escolha. Por que escolhemos, que escolhemos, qual é a norma-guia para a escolha? O Evangelho é uma proclamação e um anúncio de modificação de conduta e de fé comprometida (Mc 1, 15). Quem o ouve e quer que se torne existencial na sua vida, se torna discípulo, deixa tudo diante do segue-me. As parábolas do tesouro escondido e da pérola (Mt 13, 44-46) confirmam a periferia dos outros projetos humanos. O tesouro e a pérola significam o Reino, exemplificado no próprio Cristo. Por isso Jesus passa da perspectiva da refeição [pouca coisa é necessária, segundo alguns códices] ao único é necessário: A pessoa do Filho do Homem [o Verbo como homem] é o principal, pois dentro do Reino a figura de Jesus é tudo: o único que transforma em realidade interior de vida e salvação o que aparentemente era um fato social  externo.

2o) Jesus define-se Mestre da Verdade que com Ele se identifica. Por isso Maria, sentada aos pés de Jesus, se identifica com o verdadeiro discípulo. No filme A paixão de Cristo de Mel Gibson, Cláudia, a esposa de Pôncio Pilatos, diz estas palavras: Si non vis audire veritatem, nemo tibi dicere potest. Cujo sentido é: Se não estás disposto a ouvir a verdade, ninguém a poderá dizer a ti. Em todas as ordens, a verdade é a maior vítima. Ela é unicamente escutada quando estamos dispostos a ouvi-la, mesmo que atinja negativamente nosso bem-estar e nossa comodidade. Jesus não a impõe mas deixa a cada um de nós que busquemos e encontremos a resposta certa como fez com o jurista no evangelho do domingo passado. Por isso, S. Agostinho só se converteu quando a voz da verdade chegou a ser mais forte que a voz de suas paixões.

3o) Todos temos que receber Jesus como hóspede. Como? Paulo o declara em duas passagens de suas cartas, que lembram o trecho de hoje. a) Pela palavra: A palavra de Cristo habite em vós ricamente (Cl 3, 16). b) Pela fé e o amor: pois Cristo deve habitar pela fé em vossos corações para que sejais arraigados e fundados em vosso amor (Ef 3, 17): A riqueza da palavra só pode ser descoberta pela fé e unicamente será o amor que a fará frutificar.

4o) A escuta da palavra não se dá unicamente através da leitura da Bíblia, mas nos fatos da vida, no apelo dos necessitados (Mt 25, 35+), no anúncio dos que pregam a paz (Is 52, 7); pois quem vos escuta a mim ouve (Lc 10, 16).

 

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