Comentário Exegético – VI Domingo da Páscoa (Ano B)

Comentários exegéticos à Segunda Leitura e Evangelho:

Segunda Leitura

1 Jo, 4, 7-10
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: O trecho de hoje é uma exortação ao amor, que tem como paradigma e princípio o amor de Deus, manifestado na entrega que Ele fez de seu Filho, como vítima de expiação dos pecados dos homens, até então seus inimigos. Contra os gnósticos que promoviam unicamente a gnose [a sabedoria] como princípio e motor da salvação e da união com o Uno ou Todo, João afirma: Quem não ama, não conhece Deus; ou seja, o amor está unido ao verdadeiro conhecimento da divindade que era a base da gnose. E esse conhecimento tem como fundamento a manifestação do amor do Filho por nós. Não somos nós os que por méritos e esforços próprios nos salvamos, mas a salvação [união com a divindade] tem como origem Deus que, em seu amor por meio do Filho, perdoa o pecado do homem e o recebe no seu seio. Se S. Agostinho, dizia que somos convidados a escolher o que devemos amar, S. Pedro Crisóstomo escreve que, como diz Paulo, o apóstolo, Deus quer ser mais amado que temido. Deus nos exorta, porque quer ser mais Pai que Senhor. Deus nos exorta pela sua misericórdia para não ter de nos castigar com o seu rigor. Eis como nos exorta: vede, vede em mim o vosso corpo, os vossos membros, o vosso coração, os vossos ossos, o vosso sangue. E se temeis o que é de Deus, por que não amais o que é vosso ? Se fugis do Senhor, por que não recorreis ao Pai? Sem dúvida que S. Pedro Crisóstomo tinha diante de si a figura de Cristo, semelhante a nós em tudo e que no seu tempo também era chamado de Pai, por sua identidade trinitária com Deus. É, pois, na figura de Cristo que nós amamos Deus e é através dessa mesma figura que nós amamos o próximo. Com isso teremos respondido às pergunta de S. Agostinho e não só que devemos amar, mas por que e como devemos fazê-lo.

AMOR MÚTUO: Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de(o) Deus e todo aquele que ama há nascido de(o) Deus e conhece (o) Deus (7). Carissimi diligamus invicem quoniam caritas ex Deo est et omnis qui diligit ex Deo natus est et cognoscit Deum. AMEMOS: agapwmen <25> [agapömen = diligamus latino], é um presente de subjuntivo, que corresponde ao imperativo de primeira pessoa. O verbo agapaö, traduzido geralmente por diligere latino e amar em português; é um vocábulo preferido por João nesta carta, pois sai 17 vezes na mesma. Em 1 Jo 2, 10 está diretamente unido ao conhecimento verdadeiro, contra os gnósticos: Quem ama seu irmão permanece na luz e nele nada há que o faça tropeçar. É uma réplica de aquele que age segundo a verdade, vem à luz para que suas obras sejam manifestadas, já que tinham sido realizadas em Deus (3, 21). Em 1 Jo 3, 11 João afirmará: Tal é a mensagem que ouvistes desde o princípio: que nos amemos uns aos outros. O outro verbo fileö <5638> [amare latino] tem o sentido de preferir apreciar, estimar. É o verbo usado para definir a relação íntima entre dois amigos, ou entre esposos e até pai/filho formando compostos como filantropia, filadelfia [amor entre irmãos], filandros [amor do homem/esposo] fileteknos [amor aos filhos] e fazendo parte dos sufixos como anglófilo [que  gosta dos ingleses]. A diferença entre o diligere latino [querer bem] e amare [preferir por gosto] não correspondem exatamente aos gregos agapaö e fileö. Um exemplo: o beijo de Judas em Getsêmani é relatado em grego como filëso {a quem beijar} e no latim osculatus fuero. Diligere [agapaö] é o verbo que traduz o amor devido a Deus no primeiro mandamento: em hebraico  ‘ahab [em grego aµgapaö e diligere latino].  Esta última é a palavra usada todas as vezes, na epístola que comentamos, para definir as relações corretas entre Deus e os homens e entre estes últimos entre si. Não se trata de gostos ou preferências; mas de um querer o bem do outro que começa por respeitá-lo e continua servindo-o. É amor mútuo que Cristo nos ensinou ao dar sua vida pelos que amava: Ninguém tem maior amor que aquele que dá sua vida pelos que ama (Jo 15, 13). Ele que amava os seus que estavam no mundo, amou-os até o extremo  [in finem diléxit eos] (Jo 13, 1). O acusativo, tanto do grego quanto do latim, indica movimento,  como tendência, como objetivo supremo a ser atingido: até o fim de suas forças [to the utmost que diriam os ingleses]. É, pois, um amor que compreende sacrifício e entrega. MUTUAMENTE: Três vezes repete a mesma fórmula nesta carta: amai-vos uns aos outros. É o allëlous [invicem latino], que a TEB traduz por uns aos outros, e que podemos traduzir numa só palavra: reciprocamente ou mutuamente. Significa que, como me amo, devo amar o outro e este fará o mesmo comigo. Realmente aqui encontramos a solução dos muitos problemas que parecem impossíveis quando içamos a bandeira da justiça para resolvê-los. Somos uma família em que o Pai é Deus e Jesus o irmão que nos ama, para aprender a amar como ele amou (Jo 13, 34) e deu exemplo de seu serviço (Jo 13, 15).AMOR PROCEDENTE DE DEUS: Esta é a chave para descobrir o verdadeiro amor. Deus é Pai e dele procede todo Bem [todo dom valioso e toda dádiva perfeita (Tg 1, 17)]. O amor é a maior riqueza de um homem: não poder amar e não ser amado é o inferno na terra e a maior pobreza que podemos suportar. No averno, a total ausência divina se manifestará na absoluta privação de amor, substituído pelo ódio e rancor. O amor é a característica divina e, consequentemente, dirá o apóstolo que Deus é amor. Com estas premissas, temos que admitir as palavras do autor: O filho conhece o pai e é isso mesmo o que deve acontecer com o cristão, verdadeiro filho de Deus: se realmente somos filhos [o Espírito nos impele a exclamar Abbá (Rm 8, 15)] devemos conhecer Deus pelo seu amor que em nós Ele derramou. A frase é tão universal que abrange todos os homens e todas as épocas e abre uma porta a salvação universal, tal como vemos em Mateus no capítulo 25 sobre o juízo final. Muitos que não conheceram o Cristo, conhecem Deus pelo amor que foi derramado em seus corações (Rm 5, 5) e que eles não rejeitaram; e isso servir-lhes-á de salvação. O amor a Deus -dirá João – consiste em guardar seus mandamentos, esses que estão impressos no coração do homem (Rm 2, 15). Mandamentos que se reduzem a praticar o bem e evitar o mal. Com esta norma, Paulo declara que o amor deve ser sincero: fugi do mal, aderi ao bem (Rm 13, 9).

ANTÍSESE: Quem não ama não conhece (o) Deus, porque (o) Deus é amor (8). Qui non diligit non novit Deum quoniam Deus caritas est. João continua com seus pensamentos: amor e conhecimento. No amor encontramos o verdadeiro conhecimento dos atributos divinos e não num saber filosófico e intelectual. Isso não é conhecer Deus, como indica Paulo em Rm 1, 28 ss. Saber, sabedoria era o conhecimento dos gnósticos com suas esquisitices intelectuais. O amor, agora, não é um cumprimento de um mandato, nem uma obrigação, mas uma exigência da natureza divina, porque, em definitivo, Deus é amor e se com Ele nos queremos assimilar, devemos a esse amor nos adaptar, porque os fiéis, nascidos de Deus, devem participar dessa natureza. O verbo grego ginöskö é diferente de oraö, este especialmente no aoristo [oida], como em Gl 1, 19: não conheci [oida] nenhum outro apóstolo, salvo o irmão do Senhor. Finalmente,  João chega a uma conclusão viva e vibrante: Deus é amor. E nela, todos os grandes teólogos e místicos viram a suma da revelação: Devemos nos amar mutuamente; o amor é próprio do gerado por Deus; Deus é amor. Logo o amor ao próximo e o amor a Deus são de uma mesma natureza, porque de Deus provêm como de uma fonte essencial. S. Agostino dirá: Deus dilectio est… Só ouvida esta página, não devemos buscar mais da boca do Espírito santo. Palavra sublime que resume tudo o que o cristão deve saber de seu criador (J, Chaine). Qual é o sentido desta afirmação? Está na linha de Deus é Luz (1Jo 1,5) e Deus é Espírito (Jo 4, 24). Nas três definições, Deus está com artigo ‘O em grego [o Deus] e tanto ágape [amor] como fos [luz] como pneuma [espírito] são atributos essenciais que se identificam com o Deus único e verdadeiro, abrangido tudo o que é o sujeito, nesse caso Deus. Não existe, pois, fora do amor, da luz e do espírito parte ou tudo que seja Deus. Não deve existir, pois, nos filhos de Deus nada que não seja amor, luz e espírito. A luz oposta as trevas, indica que a verdade deve dominar a vida dos filhos; o espírito oposto à carne, deve ser considerado como o ultimatum da vida futura, já que nesta é impossível se desprender da carne; e finalmente o amor, como oposto ao ódio, este como rei do mundo. Assim entenderemos estes dois versículos da mesma carta: Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele (2, 15). Não vos estranheis se o mundo vos odeia (3, 13). A luz e o amor estão íntimamente unidos: Quem afirma que está na luz e odeia seu irmão está nas trevas (2,9)… e não sabe para onde vai porque as trevas lhe cegaram os olhos (2, 11). Assim como a luz é necessária para poder caminhar neste mundo (Jo 11, 9), o amor é necessário para poder viver a vida de Deus e conhecê-lO como Ele O é.

COMO O SABEMOS? Nisto se revelou [efanerwyh <5319>]  o amor de(o) Deus em nós: porque (o) Deus enviou seu Filho, o unigênito [monogenh <3439>], ao mundo para vivermos por meio dele (9). In hoc apparuit caritas Dei in nobis quoniam Filium suum unigenitum misit Deus in mundum ut vivamus per eum. REVELOU-SE: o verbp faneroö [apparere] tem dos significados: revelar uma verdade oculta, ou aparecer, manifestar-se. Logicamente, aqui se trata da revelação de um mistério, como é o amor infinito de Deus, mas de uma maneira real e objetiva na vida de Jesus, como Filho unigênito. Sua história humana é a história de Deus entre nós. Nos fatos comuns, veremos o homem. Nos fatos extraordinários, seus sinais [semeia] como dirá João,  vemos a assinatura divina na sua vida. Autores que ficam unicamente com o pregador ambulante que propõe um reino de paz e justiça humanas, valorizando os humildes de modo especial como preferidos por Deus, dizem só a metade de um Jesus que veio também e principalmente a perdoar o pecado do mundo. Para o primeiro Jesus, não é necessária a fé. Para o segundo Jesus, que completa o ser humano com a presença da divindade,  necessitamos sim da fé. E é precisamente este Jesus total que admitimos pela fé, em sua história humana e divina ao mesmo tempo. E este Jesus divino é o que nos promete a vida. Pois nEle estava a vida (Jo 1, 4) e Deus deu seu único Filho para que todo homem que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3, 16). E de tal forma que poderá dizer a Marta: Eu sou a ressurreição e a vida; aquele que crê em mim, mesmo que morra, viverá (Jo 11, 25). E também ele faz a todos nós a mesma pergunta: Crês nisto? (idem). De modo que é o nosso futuro, a nossa vidaeterna ou  eternal nos dois sentidos: de tempo sem fim e de modo sem limites, como é a vida de Deus por nós experimentalmente participada, depende de nossa fé em Cristo. Crês nisto? Para essa vida e não unicamente para socorrer os necessitados é que Deus enviou seu Filho ao mundo.

A PROCEDÊNCIA DO AMOR: Nisto consiste [estin <2076>] o amor: não porque nós temos amado (o) Deus, mas porque Ele nos amou e enviou seu Filho [como] propiciação  [ilasmon <2434>] pelos nossos pecados. In hoc est caritas non quasi nos dilexerimus Deum sed quoniam ipse dilexit nos et misit Filium suum propitiationem pro peccatis nostris. CONSISTE: em grego estin, propriamente é; mas, para melhor entendimento, preferimos o consiste, que completa a idéia e a esclarece. AMOR: A palavra grega é agapë [caritas]; sai 14 vezes nesta epístola. Traduzimos por amor, evitando a tradução latina caritas, caridade [em todos os 14 casos], porque esta tem o sentido atual de amor compassivo para com os pobres. Seria preferível o latino charitas, pois caritas tem o significado primário de carestia. Porém é sem h que a encontramos nos manuscritos e é com h que a encontramos nos documentos eclesiástico e nos livros modernos de teologia. O ágape era uma palavra quase desconhecida no grego clássico. Fora da Bíblia, encontramos ágape como cognome da deusa Ísis, ágape theön [amada dos deuses], num papiro de Oxyrrinchos do século II dC. Nos círculos cristãos primitivos, ágape formou parte dos textos do NT para se referir ao amor divino e ao amor humano cristão, semelhante ao amor divino, que não busca o próprio proveito, mas o bem do outro. Ágape formou parte dos ritos funerários nos banquetes greco-romanos; e o banquete pascal que, inicialmente denominou-se fração do pão, terminou por ser o ágape cristão. Lemos em 1Cor 11,26: Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice , anunciais a morte do Senhor até que ele venha. Já, nos textos clássicos, o verbo agapaö tem um significado diluído, como sinônimo de fileö ou eraö; e, em raras ocasiões, o verbo agapaö refere-se a alguém que foi favorecido por um deus. Neste caso, o adjetivo agapetos é aplicado a um filho único, muito amado pelos pais. Vemos, pois, como João emprega a palavra certa para descrever o amor de Deus por nós e, especialmente, o amor que Ele tem para seu Filho. [Observação: este é um dos muitos casos em que podemos observar como os evangelistas dominavam o grego e transmitiam corretamente seus ensinamentos]. O latim é também cuidadoso ao traduzir ágape por caritas pois o ágape divino é uma forma especial de amor, cuja tradução, infelizmente, nós não temos conservado nas línguas vernáculas. PROPICIAÇÃO: ilasmos [= propiciator] é a palavra que descreve propriamente o ministério de Jesus. Em Ex 25, 17 aparece pela primeira vez a palavra  kapporeth [=propitiatorium]. Era a tampa de ouro sobre a qual o Sumo sacerdote aspergia o sangue do bode da expiação no Yom Kippur [dia do perdão], simbolizando a reconciliação de Jahveh  com seu povo escolhido, Israel. Era a placa de ouro que servia como tampa e sobre a qual havia dois serafins com as asas estendidas entre os dois e sobre as quais assentava-se como num trono Jahveh, que a NAS traduz como mercy seat [assento de misericórdia]. Sobre o trono assentava-se o rei para administrar justiça, e sobre esse trono Jahveh se assentava como soberano para exercer sua misericórdia. No Lugar de um trono material, agora temos uma cátedra viva, o Filho, que está no seio do Pai  (Jo 1, 18) e que atua como Advogado diante dEle (1Jo 2, 1) para quem pecar. Se Deus no AT estava sentado num trono material, agora seu olhar atravessa o Filho crucificado. È na cruz que Cristo reina e é pela cruz que o Pai nos olha para que se cumpram as palavras do crucificado: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem (Lc 23, 34). E é de se notar que Lucas usa o imperfeito [dizia], tempo repetitivo, contínuo, ao contrário do aoristo [disse] que é pontual. Esse tempo é também o atual, do qual estão excluídos aqueles que pecarem contra o Espírito Santo, pois, sim sabem o que fazem, já que escolheram conscientemente  a mentira como forma de sua verdade, contra um Espírito que é o da Verdade (Jo 14, 17). Após esta descrição não estamos muito se conformidade com a tradução da TEB de ser o Filho vítima de expiação por nossos  pecados.

CONCLUSÕES: A primeira epístola de S. João é constituída por três grandes seções: caminhar na luz (1, 5-2, 29); viver como filhos de Deus (3, 1-4,6); e, finalmente, as fontes da caridade e da fé (4, 7-5, 3). O trecho de hoje, precisamente, nos leva às fontes do amor: Deus nos deu seu Filho para termos a vida (v, 9 e João 3, 16),concretizando esse dom em tornar o Filho expiação pelo pecado (v. 10 e Rm 3. 5). Desta verdade promana o mandamento do amor (v. 7 e 8). Temos, pois, neste trecho uma visão especialmente lúcida do que deve ser nossa vida em Cristo, aqui na terra, e nossa vida definitiva no seio da Santíssima Trindade no reino definitivo nos céus. O amor segue necessariamente a fé como consequência dessa nova visão do mundo. E contemplamos também uma visão mais realista da bondade de Deus: Ele nos amou primeiro e nos ama mais do que nós nos podemos amar a nós mesmos. É a misericórdia o atributo com que Deus nos olha e o espelho em que vemos sua divindade. Misericórdia ou amor de um Deus de quem podemos falar que é rico da mesma (Ef 2, 4); misericórdia para com o necessitado, que como diz Paulo transformou-se em abundante graça [perdão] donde proliferou o pecado (Rm 5, 20).

Evangelho

O AMOR DE DEUS PARA COM OS DISCÍPULOS DE JESUS
Jo 15,9-17
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Podemos explicar o evangelho de hoje com uma comparação entre as relações de Jesus com o Pai e as relações dos discípulos com Jesus. Esta comparação ou alegoria é uma continuação da alegoria da videira e os ramos. O tema é a permanência  no amor [=predileção] com Jesus. Como consequência dessa permanência, os frutos serão abundantes, porque  tudo que se pede ao Pai, Ele o concederá.

O AMOR DE JESUS: Como o Pai me amou [êgapêsen], também eu vos amei. Permanecei no amor, no meu (9).  Sicut dilexit me Pater et ego dilexi vos manete in dilectione mea. A palavra chave é amor agaph ágapê. No grego distinguem-se três formas do que chamamos amor: Eros, philia e ágape. Eroj é o amor apaixonado entre esposos ou entre homem e mulher que abrange o desejo sensual. Não é usada esta palavra no NT. Filia denota amizade, devoção, favor, e se emprega para o amigo ou parente. Temos uma outra palavra pouco usada astorgoj, que indica a falta de amor, indicando a ausência  do que o verbo stergô significa, que é ternura, especialmente entre pais e filhos. Este verbo não aparece na Escritura a não ser em compostos  astorgos (Rm 1, 31 e 2 Tm 3, 3) ou philostorgos (Rm 12, 10). No grego clássico a palavra agapaw significa gostar de, tratar com respeito, estar contente com, ou dar boas vindas. No AT traduz a palavra hebraica aheb <0517>. No NT a vulgata prefere dilectio e diligere a amor e amare. Das 117 vezes que aparece ágape no NT, 75 pertencem a  Paulo, 31 como verbo e 15 como nome. Em João aparece 60 vezes o verbo e 30 o nome. Também temos em grego a palavra FILIA  que é o amor de amizade, entre amigos do mesmo nível. Mas com relação a Deus, tanto a amizade como a ternura filial,  são designadas com a palavra ÁGAPÊ. É precisamente com esta palavra que João afirma a essência de Deus: Deus é amor (=agape) (IJo 4,8) e com a qual os sinóticos designam o Filho, o único ou unigênito (Agapetós, amado) ( Lc 3,22). O latim traduz ágapê frequentemente por caridade, derivado da palavra XARIS  que em sua terceira acepção significa benevolência, e com a qual Paulo gosta de designar o amor com que  Deus envolve o homem. Amor de benevolência e misericórdia. No NT o verbo agapaô e o nome ágapê são praticamente usados nas relações de Deus com os homens e vice-versa, sendo que Jesus é o Filho, ho agapêtós [o amado] que equivale a primogênito. A melhor definição do amor de Deus foi dada por Jesus a Nicodemos: tanto amou Deus ao mundo que entregou o seu Filho único (Jo 3, 16) e a melhor definição do amor entre os homens foi dada por ele mesmo em Jo 15, 13: Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Este amor, Jesus o mostrou como diz João em 13, 1: tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Em todos os casos a raiz é ágapê. Jesus pede que permaneçam no seu amor, no dele. O grego pode ser um tanto dúbio quanto à origem do amor: é o amor de Jesus ou é o amor por parte dos discípulos? O texto grego parece indicar que o amor procede de Jesus, mas o imperativo, por outra parte, e o versículo seguinte, indicam que o amor é o que devem demonstrar os discípulos como devido ao Mestre. Deste versículo podemos concluir 1o) Que Ele (Jesus) escolheu os discípulos por amor. Exatamente como o Pai escolheu Jesus, o Filho-homem, e o distinguiu de todos os outros homens, Jesus escolheu os discípulos e os distinguiu de modo especial. 2o) Que Jesus quer que seus discípulos permaneçam nesse amor preferencial para com os escolhidos que chamou e distingue.

COMO PERMANECER NO AMOR: Se observásseis meus preceitos permanecereis em meu amor, assim como eu tenho observado os preceitos do meu Pai e permaneço no amor dele (10). Si praecepta mea servaveritis manebitis in dilectione mea sicut et ego Patris mei praecepta servavi et maneo in eius dilectione. Mas essa permanência está sujeita a que os discípulos cumpram os preceitos [Entolai]. É uma regra universal, pois também Jesus cumpriu os mandatos do Pai e por isso permaneceu no amor do mesmo, no seu agrado [nele  me comprazo, Mt 3,17]. Embora os preceitos sejam nomeados em plural, um deles é especial, recalcado por Jesus no versículo 12, como logo explicaremos. Outros preceitos, como é o de anunciar o evangelho a todas as nações (Mc 16, 15), na época em que foi escrito o 4º evangelho, não eram mais necessários por não existirem os protagonistas [os apóstolos] mas o preceito fundamental permanecia e permanecerá sempre atual: o preceito do amor, que o atual Papa afirma ser opus proprium [obra própria] da Igreja, de modo que está ao mesmo nível dos sacramentos. Sem eles, o labor da igreja não tem finalidade. Sem o amor, não tem base. Precisamente é o amor que dá a permanência com Jesus, assim como o amor de Jesus o tornava complacência do Pai e permanente em sua dileção.

UM PARÊNTESE: Estas coisas vos tenho falado para que a alegria, a minha, permaneça em vós e a vossa alegria seja completa (11). Haec locutus sum vobis ut gaudium meum in vobis sit et gaudium vestrum impleatur. São palavras enigmáticas que terão uma explicação maior em 16, 20-24. A alegria tem como fundamento a ida de Jesus ao Pai, como tinha declarado em 4, 28. Alegrar-se do bem do outro é uma forma de amor. Um amigo sente a dor do outro amigo. Isso é natural -diz um autor- mas se alegrar do êxito do amigo é quase um milagre. O Batista, como amigo do esposo, alegrou-se ao ouvir a voz do mesmo. A alegria dos discípulos tem como razão de ser a volta de Jesus ao Pai (Jo 14, 28). Essa volta é o início do triunfo, pois estaria à direita do mesmo como viu Estêvão (At 7, 56). Além disso, o Espírito seria o Mestre interior substituindo o Mestre externo que era Jesus e então compreenderiam a verdade que, até o momento, parecia estar oculta a seus olhos. Jesus esclareceria isto em 16, 13: O Espírito da Verdade vos conduzirá à verdade plena.

O PRECEITO: Este é o preceito, o meu: que vos ameis mutuamente como vos amei (12). Hoc est praeceptum meum ut diligatis invicem sicut dilexi vos. A barra que Jesus coloca para medir o amor mútuo entre os discípulos é a mais alta possível: o modelo não é o próprio sujeito como no AT [amarás o próximo como a ti mesmo] mas o amor que Jesus teve a seus discípulos. Ou seja, amar antes o outro que a si mesmo. Perder a própria vida para que o outro tenha vida e a mais abundante possível (Jo 10, 15 e 10, 10).

EXPLICAÇÃO: Maior do que este ninguém tem amor: que alguém doe a vida dele em favor dos seus amigos (13). Maiorem hac dilectionem nemo habet ut animam suam quis ponat pro amicis suis. Jesus explica qual foi seu amor e qual deve ser o amor dos discípulos entre si: doar a sua vida pelos outros. Maior amor do que este não pode ser encontrado. Por isso João, no início do relato da última ceia dirá; como amasse os seus os amou até o extremo [eis telos, até a perfeição]. A tradução latina in finem foi tomada como temporal, quando deve ser o fim de uma série ou extremo da escala ou lista. É o amor da perfeição, até não haver maior amor.

OS AMIGOS: Vós sois meus amigos, se fazeis quantas coisas eu vos ordeno (14). Vos amici mei estis si feceritis quae ego praecipio vobis. Jesus explica aos apóstolos em que consiste a amizade entre eles e sua pessoa. O amigo cumpre as ordens de quem ama; nisso consiste a verdadeira amizade. Não é a fé, mas a obediência, a união de vontades, a preferência do outro. Nisso consiste a verdadeira amizade. Uma coisa é a fé, pela qual nos incorporamos em Cristo e outra é a amizade, em que a vontade do discípulo é substituída pela vontade do Mestre. Que não fará Jesus pelos tais a quem amou até o extremo? De modo algum vos chamo escravos, porque o escravo não conhece o que faz seu amo; porém a vós tenho chamado amigos porque todas as coisas que escutei de meu Pai vos dei a conhecer (15). Iam non dico vos servos quia servus nescit quid facit dominus eius vos autem dixi amicos quia omnia quaecumque audivi a Patre meo nota feci vobis. Contrariamente ao que encontramos no AT onde Israel era o servo de Jahvé, agora Jesus chama seus discípulos de amigos. Não encontramos no AT essa expressão tão íntima e igualitária. Israel será a esposa [uma escrava] mas nunca o amigo de Jahvé. E Jesus explica a diferença entre um escravo e um amigo. Aquele simplesmente obedece ordens, sem saber porquê. Aos amigos se declara a razão do mandato e sabem por que obedecem. No AT, Moisés (Ex 33, 11) e Abraão (Is 41, 8) eram amigos de Jahvé. Deste, fala Isaiás como sendo ohabi, meu amigo e de Moisés que falava com Deus como fala um homem com seu amigo, ad amicum suum,  o hebraico usa rea’. De modo que chamar amigos, é um privilégio só concedido às duas grandes figuras do AT. Especialmente podemos tirar o exemplo de Moisés, íntimo do Senhor. Os apóstolos serão também os íntimos com os quais Jesus passou seus últimos anos conversando, explicando [a vós foi concedido conhecer os mistérios do Reino dos céus, mas a eles não (Mt 13, 11)] e vivendo com eles como convinha fazer um Mestre com seus discípulos. Até alguns inventarão o sentido esotérico do qual infelizmente a gnose fez um mal uso, como vemos em livros, chamados de evangelhos de Madalena ou de Judas.

A ELEIÇÃO: Não me escolhestes vós, mas eu vós escolhi e vos instalei para que saiais [vos ponhais em caminho] e produzais fruto e o vosso fruto permaneça; de modo que se pedírdes alguma coisa ao Pai em meu nome, vos concederá (16).  Non vos me elegistis sed ego elegi vos et posui vos ut eatis et fructum adferatis et fructus vester maneat ut quodcumque petieritis Patrem in nomine meo det vobis. A tradução dos verbos indica que a obra dos discípulos é própria de Jesus e que em seu nome [por sua intermediação] o Pai fará tudo para que o fruto seja o adequado. A petição está unida a esse fruto que não é outro senão o triunfo do Reino. Temos traduzido o verbo tithemi por instalar; outros traduzem por designar. No original o verbo significa colocar, pôr; mas pode ser traduzido por consagrar, ordenar, como aqui seria mais adequado. O saiais, subjuntivo de presente, é pôr-se em caminho; é o verbo usado por Jesus para enviar os 62 discípulos: Ide! [ypagete] Eu vos envio como cordeiros entre lobos (Lc 10, 3). Não podemos deste versículo afirmar que tudo o que pedirmos nos será concedido. A petição está unida a duas questões básicas: o envio de Jesus e a difusão do reino. Por isso, quando enviou os 12, deu-lhes poder e autoridade sobre os demônios para curar doenças e proclamar o Reino de Deus e a curar ( Lc 9, 1-2). O fruto é consequência da concessão do Pai (ele vos dará o que pedirdes).

O PRECEITO FINAL: Estas coisas vos ordeno: que vos ameis reciprocamente (17). Haec mando vobis ut diligatis invicem. A frase é um resumo da petição de Jesus a seus apóstolos como base para que permaneçam no amor [entre eles]  e no seu amor [de Jesus para eles]. Com esta frase compendia-se todo o evangelho na sua fase ética e humana. Jesus recomenda de novo esse amor que constitui a base de sua eleição e a permanência na mesma de seus discípulos. Amai-vos uns os outros.(17)

PISTAS:

1) Vamos ficar com o essencial: O Amor. Primeiramente ele procede de Cristo e do Pai. Aqueles que temos escutado, Jesus e o queremos seguir [=imitar] temos em comum que fomos escolhidos amorosamente por Deus através de Jesus. Somos seus preferidos. Os comentários são do próprio João na sua primeira epístola. Olhai que amor nos deu o Pai (I Jo3,1) porque o amor vem  de Deus (idem 4,7), porque Deus é amor (4,8). E é nisto que consiste o verdadeiro amor; não que tenhamos amado Deus, mas que Deus nos amou e nos enviou seu Filho, como vítima de expiação por nossos pecados (idem 4,10).

2) A morte de Jesus foi a prova mais completa de seu amor: Nisto, doravante, conhecemos o amor: ele (Jesus) deu a vida por nós (1 Jo 3,10). Na vida, devemos ter como princípio fundamental que somos seres amados. Deus é nosso Pai e ele nos ama, assim como Jesus nos amou e se entregou por nós (Gl 2, 20).

3) A 2a conclusão depende de nós: Também nós devemos dar a nossa vida por nossos irmãos (1 Jo 3,10) e é desta maneira única que permaneceremos no amor, na predileção que Deus tem conosco. Temos que nos esforçar para guardar esse mandamento, resumo dos outros e único verdadeiramente importante: O amor ao próximo como Cristo o amou.

4) Esse amor consiste em sacrificar a nossa vida em favor dos outros, a começar por se alguém possui os bens deste mundo e vê seu irmão passar necessidade e se fecha a toda compaixão, como permaneceria nele o amor de Deus? (1 Jo 3,17) Por esse amor total é que Jesus se tornou Cristo (Messias-Senhor) e nós nos tornaremos outros Cristos (amigos e senhores ) com ele, a participar da vida eterna. É a conclusão do próprio João: Sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos nossos irmãos: Quem não ama permanece na morte (1 Jo 3,14).

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