Comentário Exegético – IV Domingo do Advento (Ano A)

EPÍSTOLA (Rm 1, 1-7)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Paulo, escravo de Jesus Cristo, chamado como apóstolo, segregado para o evangelho de Deus (1). Paulus servus Christi Iesu vocatus apostolus segregatus in evangelium Dei. Esta epístola é o início da carta aos romanos. Primeiro vem o título de quem a remete e a ocasião de ser o evangelho como motivo da mesma aos que por meio da bondade de Deus estão escolhidos como a ele consagrados. A eles deseja os favores divinos e a paz que constituem a saudação inicial de suas cartas. ESCRAVO [doulos<1491>=servus]. Sendo a escravidão o sistema político-econômico fundamental do império romano, não é de estranhar que existissem diversas palavras na koinë. Vejamos as usadas tanto no NT como no AT grego dos Setenta. THERÁPÖN [<2324>=famulus] é um servo familiar, quase um amigo do dono, como vemos em Hb 3, 5: Moisés era fiel em toda a casa de Deus, como servo, para testemunho das coisas que haviam de ser anunciadas. Seria o escudeiro ou pajem da idade média. Provém do verbo Therapeuö, curar, tomar conta de um enfermo. DOULOS [<1491>=servus] é o escravo próprio, o comprado e vendido como uma máquina ou gado que deve  obedecer sem ter vontade própria ao dono, despotës grego. Como classe social é o oposto ao eleutheros [1658=liberus], homem livre como vemos em 1 Cor 12, 13: em um só Espírito todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos [douloi=servi] quer livres [eleutheroi=liberi]. DIAKONOS [<1249>=servens] independentemente do seu estado civil é primariamente o servidor à mesa como em Jo 2, 5: Maria falou aos serventes [diakonois=ministris]: fazei tudo o que ele vos disser. OIKETËS [<3610>=verna] escravo, mas no sentido de domiciliar e não do campo. É o escravo da casa ou familiar, geralmente melhor considerado que o trabalhador do campo ou das minas. Pode ser o criado embora não livre como classe social. Assim temos 1 Pd 2, 18: Servos [oiketai=servi] sede submissos, com todo temor ao vosso senhor. YPËRETËS [<5257>=minister] é tomado do serviço militar, originalmente um remador, para distingui-lo do soldado de uma galera. Daí passou ao oficial subordinado, como lictor, ou oficial de justiça, como em Mt 5, 25: para que teu adversário não te entregue ao juiz, o juiz ao oficial de justiça [ypëretë=ministro]. Ao se  designar como doulos, Paulo toma para si o ofício mais servil que existia entre os romanos. Verdadeiro escravo do evangelho que em 15, 16 da mesma carta resolve como leitourgos [<3011>= minister], palavra com que se designava o dedicado ao serviço oficial civil ou do templo. Em Ef 3, 7 ele se declara ministro [diakonos] do evangelho, coisa que repete em Cl 1, 23 com o mesmo vocábulo. Paulo toma a atitude do serviço como escravo de Jesus Cristo, exatamente como o Batista afirmava ser, sendo que este último se humilhava até declarar que nem o ofício de levar as sandálias como fazia o mais humilde dos escravos era digno de realizar (Mt 3, 11). Os discípulos de um mestre em Israel eram chamados de filhos (Mt 23, 9) e até de últimos irmãos (elachistoi adelfoi) (Mt 25, 40; 45)  e podiam fazer pelo mestre todo serviço de escravos, a exceção de desatar as correias das sandálias, ofício reservado aos escravos da gentilidade e do qual os escravos judeus estavam dispensados. Este ofício de carregar as sandálias para o banho do senhor é declarado por Marcos (1, 7) e Lucas (3, 16) como sendo o mais baixo, já que para eles não existia a proibição de desatá-las que Mateus, como legista, tinha o dever de respeitar. Paulo, pois, é o servidor de Jesus sem privilégio nenhum, e por isso nunca quis receber salário [misthos] ou benefício como os demais apóstolos, e ao qual tinha direito segundo as normas da Lei (1 Cor 9).

DIGNIDADE DE CRISTO: O qual foi preanunciado por meio de seus profetas em Escrituras Sagradas (2). Quod ante promiserat per prophetas suos in scripturis sanctis. PREANUNCIADO [proepaggellö <4279> = promisere] O grego pode ser traduzido também como prometido anteriormente, pois a palavra de Deus sempre é uma promessa de um bem futuro como profecia de salvação. ESCRITURAS [grafai<1124>=scripturae] SAGRADAS [agiai<40>=sanctae]:em outra ocasião temos descrito o significado de TANAK,[Torah, Nebiim e Ketubim] ou Lei, Profetas e Escritos em que dividiam o que Paulo, em outra ocasião, chama de Sagradas Letras [ierai gramma] (2 Tm 3, 15). Embora o latim traduza como sanctae, não podemos usar o santo como tradução vernácula, pois santo significa sem pecado; e assim usaremos sagrado, ou divino, pertencente a Deus, como indica o grego agios. Com esta afirmação Paulo coincide com Pedro onde lemos (2 Pd 1,19-21): Nos confirmamos mais ainda com a palavra dos profetas …sabendo ….que nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana.

CRISTO COMO HOMEM: Com respeito a seu Filho, o nascido do esperma de Davi, segundo a carne (3). De Filio suo qui factus est ex semine David secundum carnem. SEU FILHO [‘uios<5207>=filius] o grego ‘UIOS é usado praticamente para a prole humana, do gênero masculino, tanto a progênie direta como a de um descendente do tronco comum. Para filhas temos thygatër[<2364>=filia]. Outra palavra é teknon [<5043>=filius]; embora traduzido do mesmo modo em latim seja o filho natural enquanto a preeminência de ‘uios é para o aspecto legal. Temos também pais [<3816>=puer] menino ou criança com parentesco de filho sem ter limites de idade como seria o paidion[<3813>=puer], que é um menino de tenra idade. ‘UIOS é o termo usado em termos metafóricos para os judeus no AT [bené elohim= filhos de Deus] e para os cristãos no NT [‘uioi ‘upsistou= filhos do Altíssimo] com respeito a Deus em sentido de serem filhos adotivos. TEKNON é usado também no lugar de ‘uios: não só pela nação, mas também para reunir os filhos de Deus [tecna tou Theou] dispersos (Jo 11, 52) . Em Lc 1, 35 temos a palavra do anjo: o ser sagrado que há de nascer será chamado Filho [uios] de Deus. E em Mt 11, 27: Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho [‘uion] senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar. À pergunta logo tu és o Filho [uios] de Deus? Ele disse: Vós o dizeis porque [óti] eu sou (Lc 22, 70). E os demônios declaravam: tu és o Filho [uios] de Deus. (Lc 4, 41). Jesus é o Filho em sentido literal, já que sempre diante de filho aparece o artigo determinativo ‘o [=o Filho]. Por isso em João encontramos o monogenës [= unigênito] (Jo 1, 18): o filho único, que está no regaço do Pai nos deu a conhecer. ESPERMA [sperma<4690>=semen] é a semente de uma planta ou o sêmen, esperma de um animal. Tomado em sentido figurado, é a prole ou descendência de um varão. Daí, família, raça, posteridade, descendência. Jesus era, pois, descendente de Davi. SEGUNDO A CARNE [sarkx<4561>=caro] é o corpo material que chamamos de carne. Em hebraico é bashar o oposto ao espírito, pneuma ou nefesh. Também o distinguiam do aima [sangue] donde estava a vida que era psichë. A distinção entre sarkx e söma é que aquele era considerado em oposição a psichë [alma] e söma era o corpo como um conjunto de partes unidas, entre elas ossos, carne, nervos. Literalmente sarkx é a carne distinta de sangue e ossos. Paulo distingue entre o corpo de  Jesus que tem carne e ossos antes da ressurreição [psykikos] e o corpo ressuscitado que ele denomina como corpo espiritual [pneumatikos] (1 Cor  15, 44). Por isso dirá: todos certamente não morreremos, mas todos sermos transformados (1Cor 15, 61). A frase segundo a carne indica a procedência humana de Jesus: era um descendente de Davi. Seu pai era legalmente  José, esposo de Maria da qual nasceu Jesus (Mt 1, 16), e o tal José era da casa de Davi (Lc 1, 27).

. EXALTAÇÃO DE JESUS: Constituído Filho de Deus em poder segundo espírito de divindade por causa da ressurreição dos mortos, Jesus Cristo nosso Senhor (4). Qui praedestinatus est Filius Dei in virtute secundum Spiritum sanctificationis ex resurrectione mortuorum Iesu Christi Domini nostri. CONSTITUÍDO [oristhentos<3724>=praedestinatus] particípio de aoristo do verbo orizö, de significado definido, marcado, nomeado, designado, constituído. EM PODER [en dynamei<1411>=in virtute] esta frase é indício das faculdades extraordinárias de operar milagres acima das leis naturais como quem é o dono das mesmas, ou talvez poder, como exousia, autoridade, como rei do Universo após a sua ressurreição. ESPÍRITO DE DIVINDADE [pneuma <4151>agiösynes<42>=spiritus sanctificationis]. Parece que não é uma referência ao estado anterior de Cristo no seio do Pai como diz João (Jo 1, 1-2), mas Paulo se refere ao triunfo do Cristo ressuscitado e sua atuação através do Espírito que ele enviou e que na primitiva Igreja era chamado Espírito de Jesus. Para entender este versículo Cristo de Deus, devemos partir do suposto de que Paulo fala unicamente de Cristo como homem, ou como o próprio Jesus dizia de si mesmo, do Filho do Homem, que neste caso para Paulo é segundo a carne. (vers 3). Como homem, pois, foi constituído [o latim diz predestinado] Filho de Deus, ou seja, como um representante direito de Deus, como um que tem o poder e o espírito da majestade divina [agiösinë] e isso por causa da ressurreição. É a divinização do homem Jesus de Nazaré. Pois agiösinë significa a majestade, a santidade ou transcendência como hoje se diz, própria só da divindade. Este versículo é, portanto a exaltação do homem Jesus à categoria da divindade por causa da sua ressurreição. Não mais o homem, ou o Mestre Jesus, mas o Senhor ou o Cristo de Deus. E assim ele é o Senhor (At 2,  e 10, 36), como dirá Paulo em Fp 2, 11: Toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor.

MINISTÉRO PAULINO: Pelo qual recebemos mercê e apostolado para obediência da fé em todas as nações sobre seu nome(5). Per quem accepimus gratiam et apostolatum ad oboediendum fidei in omnibus gentibus pro nomine eius. E Paulo continua sob o impulso de sua experiência, declarando que dele [de Cristo] recebeu a graça [charis] ou favor e mercê do apostolado [apostollë <651>=apostolatum=envio] para que todas as nações [ethnë] pudessem receber a fé como obediência à pessoa de Cristo.

VOCAÇÃO DOS ROMANOS: Entre os quais estais também vós chamados de Jesus Cristo(6). In quibus estis et vos vocati Iesu Christi.  Entre essas nações [pagãs] estavam os romanos que também foram chamados, vocacionados ou escolhidos [klëtoi<2822>=vocati] para aceitar como Senhor, Jesus, o Cristo.

SAUDAÇÃO FINAL: A todos os que estais em Roma, amados de Deus, chamados consagrados, graça e paz da parte de Deus, Pai vosso e do Senhor Jesus Cristo (7). Omnibus qui sunt Romae dilectis Dei vocatis sanctis gratia vobis et pax a Deo Patre nosostro et Domino Iesu Christo. Após esse prefácio em que Paulo mostra seus poderes e a transcendência do Senhor a quem serve de anunciador, termina esta primeira parte com a saudação por ele preferida em suas cartas: Graça [charis<5485>= gratia], ou seja, o favor e a mercê abundante por parte de Deus que é Pai e por parte do Senhor que é Jesus, o Messias. Também a paz [eirënë<<1515>=pax] que em lábios de um judeu era um pedido de todas as bênçãos possíveis da parte de Deus. E Paulo não poupa elogios aos cristãos romanos. É a captatio benevolentiae que aqui descobre os dons divinos em abundância entre os romanos: amados [agapëtoi<27>=dilecti] de Deus, e escolhidos como consagrados [agioi<40>=sancti] que geralmente vemos traduzido por santos, mas que originariamente é sagrado ou consagrado; isto é, dedicado à divindade. Na primitiva Igreja os fieis eram agioi, santos como eleitos e pertencentes ou dedicados ao culto divino, acepção primária inclusive do vocábulo latino.

EVANGELHO (Mt 1, 18-24)

A VISÃO DE JOSÉ

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: João inicia seu evangelho, afirmando a eternidade do Verbo em Deus. Sem origem, existia desde o princípio. Essa é a última realidade de Jesus. Mas enquanto homem, qual foi sua origem? Mateus e Lucas descrevem o início do homem Jesus de modo diferente, porém, essencialmente idêntico. Lucas apela ao testemunho da mãe, Maria. Mateus, pelo contrário, descreve a situação do ponto de vista do marido, José. Ambos os relatos convergem para afirmar que o concebido no ventre de Maria não tinha pai humano. Que a concepção foi um ato do poder do Espírito Divino. Esse Espírito, que pairava presente sobre as águas primitivas no início (Gn 1,2), agora paira sobre Maria  para uma realidade que se parece com uma criação. Hoje, vamos estudar o evangelho de Mateus.

CONCEPÇÃO DE JESUS: Enquanto a concepção de Jesus Cristo era (sic) desta maneira: prometida, pois, a sua mãe, Maria, a José, antes da coabitação deles, foi achada tendo em ventre de Espírito Santo (18). Christi autem generatio sic erat cum esset desponsata mater eius Maria Ioseph antequam convenirent inventa est in utero habens de Spiritu Sancto. CONCEPÇÃO: Esta seria a tradução mais acertada e não nascimento de muitas bíblias. A bíblia de Jerusalém traduz origem de duvidoso significado. Com o significado de conceição, damos origem ao que, no mundo oriental ortodoxo, é denominada Conceição Imaculada [de Jesus], ou seja, desde a sua origem, como óvulo, Jesus não teve um sêmen masculino. Assim podemos afirmar que a primeira carne do Filho de Deus foi totalmente Mariana, e totalmente humana, pois não foi uma carne criada, mas gerada. JESUS CRISTO: A palavra aparece duas vezes em Mateus: uma, em 1,1 e ainda em 1, 18; e outras duas vezes, das quais uma, em Mc 1, 11 e outra, em Jo 17, 3, sempre como redação dos evangelistas, não como palavra saída do contexto falado por Jesus ou elaborada pela voz dos conterrâneos. Foi uma composição tardia na qual se uniu o nome Jesus com o fato de ser o Ungido, ou Cristo. A frase seria,  pois: Jesus é Cristo, como primitiva fórmula de fé, porque o verbo ser não era usado nas línguas semíticas.  A TRADUÇÃO: Na tradução latina, o verbo ën=era ou estava em imperfeito, é mantido com o erat. Outra tradução literal é em ventre que em português tem o artigo  e se diz no ventre ou no seu ventre. Tampouco o Espírito tem artigo, contrariamente, quando se fala da terceira pessoa da Trindade que é nomeada como o Espírito, o Santo, sempre com artigo [exemplos: Mt 12, 32; 28, 19 e Mc 1, 10; 3, 29 entre outros]. Sem artigo, significa o poder de Deus. MNESTEUTHEISES: A tradução é prometida. Gynë <1135>, em Mc 6, 17 e Lc 16, 18 é o nome dado a esposa em grego, nos evangelhos. Mnesteutheises é o particípio passivo do aoristo [passado] do verbo mnesteuo, que significa prometer em matrimônio, e como particípio passivo, ser declarada desposada ou noiva formal. Para entender isso, devemos entrar nos costumes judaicos da época de Jesus. O matrimônio era um contrato entre famílias. Contrato que se assemelhava a uma compra. A mulher era praticamente uma escrava, vendida pelo preço de um dote. Esse contrato em hebraico era o Ketubbá [=escrito] que estabelece obrigações assim como uma penalidade monetária no caso de divórcio. Uma mulher virgem valia 200 denários ou 200 dias de trabalho e uma viúva valia uma mina, ou seja, a metade aproximadamente. Uma mulher que tinha o Ketubbá dos esponsais era considerada esposa para todos os efeitos legais. Por exemplo, o sumo sacerdote não podia se casar com uma viúva (Lv 21, 14) e a Mishná afirma que essa viúva é tanto viúva após o casamento quanto  viúva tão só após os esponsais. Para um novo matrimônio, a viúva deve esperar três meses (tempo suficiente para saber se está grávida) sejam já casadas, divorciadas, ou prometidas em esponsais, porque o noivo, na Judeia, tem intimidade com ela. Com isto, fica provado que a prometida por meio do Ketubbá era praticamente uma esposa. Segundo os costumes da época, entre os esponsais e o matrimônio propriamente dito devia passar meio ano. A mulher virgem a se casar, pela primeira vez, teria na época 12 anos e meio. O  grego clássico usa o gameo para indicar matrimônio, e gameté [esposa]. Todavia no NT a palavra usada é gyné [mulher] com o duplo significado de fêmea humana e de esposa. Usa também o NT a palavra nymfe, jovem núbil, também com o significado de nora (Mt 10, 35). Parece claro que Maria estava unicamente prometida com a correspondente Ketubbá. Lucas usa a mesma raiz só que no tempo perfeito mnesteumene. Nas línguas modernas é difícil distinguir entre os dois tempos, aoristo e passado. Esta hipótese é realçada pelo mesmo evangelista quando afirma: antes que coabitassem ou convivessem. TENDO EM VENTRE: É a tradução direta do grego, que em português, devemos usar no ventre. Isto, como temos dito anteriormente, dava-se aos três meses da conceição. DE ESPÍRITO SANTO: A tradução do Espírito Santo não corresponde ao grego. A razão é que quando os evangelistas querem significar a terceira pessoa da Santíssima Trindade usam o artigo repetido : O Espírito, O santo [to pneuma <4151> to agion <40>]. Nas outras circunstâncias, espírito santo significa o poder de Deus: Ele batizará com espírito santo e fogo [en pneumati ágio kai pyri] contraposto a quem fale contra o Espírito o Santo [kata tou pneumatos tou agiou]. No nosso caso, está sem artigo algum e, portanto refere-se ao poder de Deus, exatamente como Lucas 1, 35. Isso não obstante a tradição, que chama Maria esposa do Espírito Santo, reflete a ideia de que foi a terceira pessoa da Trindade que pessoalmente, de modo muito especial, contribuiu para a geração do corpo de Jesus. Esta é uma noção completamente válida, pois a própria Escritura indistintamente fala dos profetas como falando no Espírito o Santo (Mc 18, 36) ou como cheios de espírito santo (Lc 1, 67). É o mesmo tipo de diferença entre o anjo de Javé e a intervenção direta divina no AT. O evangelista, com a frase da parte do Espírito divino [santo], exclui toda intervenção humana masculina na formação do corpo de Jesus. Era na realidade uma partenogênese. Do ponto de vista médico, a partenogênese é possível desde que o nascituro seja do mesmo gênero que a mãe, ou seja, uma mulher [hoje também se pode admitir a partenogênese masculina]. O sêmen masculino do pai era o único que determinava, ou melhor, gerava o novo ser, segundo o pensar da época. A mãe era uma depositária, uma horta onde a semente crescia interiormente alimentada com seu sangue e, depois exteriormente, com seu leite. Por isso o ek [de procedência] grego de Mateus, diz mais do que o nosso de, ou pelo Espírito divino, como geralmente traduzimos. A tradução da vulgata in útero habens de Spirito sancto, confirma  a hipótese que acabamos de formular. Lucas (1, 15),  ante a pergunta de Maria que é uma interrogante para iniciar uma explicação, mais do que uma escusa de sua parte, fala do poder do Altíssimo [equivale ao próprio Deus]. Este ser sagrado será chamado [será verdadeiramente] filho de Deus. Esta é a verdade. O catecismo do Pe. Astete dizia : O Espírito Santo formou do puríssimo sangue de Maria um corpo. No século XVI nada se sabia sobre o óvulo feminino, descoberto no final do século XIX, mas hoje que sabemos como a mulher contribui com seu óvulo, podemos afirmar que um dos óvulos de Maria foi em um primeiro momento o início da vida humana do Verbo. Houve um instante em que o corpo de Jesus era totalmente corpo de Maria. Isso exalta tanto a mãe como o filho. De modo que ela pode ser chamada de Theótokos, a que gerou Deus, ou Mãe de Deus. E como o Filho seria o resultado de uma intervenção divina particular, consequentemente, Maria seria virgem, a aei parthenos [= sempre virgem] grega, em cujos ícones estarão sempre as três estrelas como símbolo de Virgem antes do parto [concepção imaculada], no parto e depois do parto. Obviamente, não temos estátuas, proibidas desde o tempo de Leão o Isauriano, entre os gregos; mas os ícones representam em termos visíveis o que não era possível para a maioria: ler nos textos sagrados, porque era iliterata.

JOSÉ E SUAS DÚVIDAS: Porém, José, o seu homem, sendo honesto e não querendo expô-la publicamente, pensou repudiá-la secretamente (19). Ioseph autem vir eius cum esset iustus et nollet eam traducere voluit occulte dimittere eam. SEU HOMEM: Já temos explicado que, após os esponsais, ambos eram considerados marido e mulher. Não é, pois, estranho que Mateus fale de José como o marido [homem] de Maria. SENDO HONESTO: Existe uma incorreta maneira de traduzir o dikaios [conforme, ou melhor, ajustado com a lei] grego por justo [do latim iustus] que em linguagem moderna tem significado diferente,  como amante da justiça ou imparcial. Na realidade, dikaios era aquele que cumpre escrupulosamente a lei, a Torá antiga. E José se debatia precisamente por cumprir a lei. Qual era a lei neste caso? Uma desposada era considerada exatamente como uma esposa real. Segundo Dt 22, 13-21, quando uma jovem não tem provas de sua virgindade ao casar com um homem a jovem será levada à porta da casa do seu pai e os homens da cidade a apedrejarão até que ela morra, pois ela cometeu uma infâmia em Israel(…) Deste modo extirparás o mal do teu meio. José não queria colocar o caso em público [traducere afirma o latim da vulgata, que num dos seus significados implica expor alguém à vista e como em espetáculo, por vergonha], ou seja, denunciar Maria como adúltera de modo público. Segundo a lei, ele tinha todo o direito de denunciar publicamente Maria. Porém, ele escolheu um método que era também legal: fazer uso do chamado libelo de divórcio antigo (Mishná Git 8, 4). Que é o libelo antigo? Libelo [guet] era o documento em que o varão deixava livre para futuro matrimônio a mulher que até esse momento era sua esposa. Era um escrito em que duas testemunhas corroboravam a fórmula principal: tu ficas livre para casar-te com qualquer homem. Devia estar escrita em hebraico contendo 12 linhas, valor numérico da palavra guet fora das duas meias linhas onde assinavam as testemunhas. No libelo de divórcio antigo o escrito era entregue a sós à mulher, sem testemunhas. Se ela era menor de idade [entre 12 anos e um dia mas sem chegar aos doze anos e meio], podia ser entregue ao pai da jovem prometida (Git 6,2). Cremos que é a este libelo ao qual se refere Mateus quando afirma que quis repudiá-la  secretamente, ou seja, sem testemunhas, como era o caso de libelo de divórcio antigo.

O SONHO: Enquanto, pois, pensava em sua mente estas coisas, eis um anjo do Senhor por meio de um sonho, se manifestou a ele, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher: pois o nela gerado é de espírito divino (20). Haec autem eo cogitante ecce angelus Domini in somnis apparuit ei dicens Ioseph fili David noli timere accipere Mariam coniugem tuam quod enim in ea natum est de Spiritu Sancto est.  O ANJO: Todo fenômeno misterioso, como uma peste, um terremoto, uma epidemia,  especialmente se mortífera, era atribuído ao anjo do Senhor. Como exemplo temos o caso de  Senaquerib e seu exército em 2Rs 19, 35, cuja matança foi produzida, ao que parece, pela poluição das águas. O Mal’ak <4398> significa mensageiro e é usado como mensageiro humano enviado por um rei ou líder para executar uma missão humana. Contudo essa mesma expressão é usada para indicar um ser celeste, um anjo. E será então Malak Adonai [mensageiro do (meu) Senhor]. Na Bíblia há uma referência de uma corte celestial, com Deus como Rei e os anjos como seus servos. Os anjos [Malakim] aparecem sob forma humana como emissários a transmitir as palavras de Deus aos homens e realizarem missões práticas, como a liderança no deserto e a derrota de Senaquerib. O lugar dos anjos é o céu [sonho de Jacó] e que, em seu disfarce humano, nem sempre são reconhecidos pelos mortais. No caso, o Anjo do Senhor traduz o Malak Adonai. Mateus disse que se manifestou [efane] foi visto como luz como um ser luminoso, seria a melhor tradução. A vulgata traduz apparuit [apareceu]. O mesmo anjo apareceu mais duas vezes a José: para pedir-lhe que fosse ao Egito com o menino (Mt 2, 13) e para volver à Judeia uma vez morto Herodes (2, 19).  O SONHO: Em sonho é como aparece o anjo do Senhor. Atualmente os sonhos são produtos do inconsciente. Mas, nos tempos bíblicos, os sonhos eram o meio com o qual a divindade mostrava sua vontade com respeito ao futuro, ou manifestava razões que determinavam uma conduta. Temos o caso de Abimelec, que Deus visitou em sonhos de noite e disse: Vais morrer por causa da mulher, porque é uma mulher casada (Gn 20,3). Jacó teve o sonho da escada (Gn 28, 12). José teve o sonho que o engrandecia sobre seus irmãos (Gn 37,5). São famosos os sonhos de Faraó, que José interpreta corretamente (Gn 41, 1). O Senhor lhes disse: Enquanto houver entre vós um profeta do Senhor, eu me dou a conhecer a ele em visão, e lhe falo em sonhos (Nm 12, 6). Saul consultou o Senhor; mas ele não respondeu nem por sonhos, nem por urim [tipo búzios] nem por profetas (1 Sm 28,2). Finalmente Deus concedeu a aqueles quatro jovens, ciência e inteligência em matéria de escritura e de sabedoria. Daniel, em particular, sabia interpretar toda classe de visões e sonhos (Dn 1, 17), como foi o caso de Nabucodonosor em Dn 2,1. Consequentemente, José acreditou no sonho e no que foi declarado pelo anjo, porque era os sonhos uma maneira explícita da manifestação da vontade de Javé. PALAVRAS DO ANJO: José [= ele, ou seja, Javé acrescenta] filho de Davi. A descendência de Davi por parte de José é destacada pelo anjo. Era um título de respeito, mas ao mesmo tempo é um artifício do evangelista para afirmar que Jesus era também filho de Davi, porque a filiação era, na época, mais legal que biológica. Não temas receber Mariam como tua mulher. A primeira palavra é não temas. Poderíamos dizer que o significado de fobeö, no caso, é não hesites, não deves te preocupar em receber Maria em tua casa,  como tua mulher. Mateus dá o nome de Mariam que parece ser o nome semítico de Nossa Senhora. O anjo imediatamente dá a razão: O gerado nela é coisa do Espírito Divino. Temos traduzido o ágios grego por divino. Na realidade, seria sagrado ou pertencente à divindade. Tendo em  conta de que o varão era o único que intervinha na geração, segundo o pensar da época, a frase anterior significa que o ser gerado no ventre de Maria era um ser divino. Porém, pela gestação, completamente normal, esse ser seria também filho de Maria que dará à luz um varão, seu filho (v 21).

JESUS: Parirá, pois, um filho e chamarás o nome dele Jesus; porque ele próprio salvará o seu povo dos seus pecados (21). Pariet autem filium et vocabis nomen eius Iesum ipse enim salvum faciet populum suum a peccatis eorum. UM FILHO: Com esta frase o anjo chama Maria de mãe de um ser que antes tinha denominado de divino. É a palavra que origina o theótokos do Concílio de Éfeso, ao mesmo tempo em que confirma o sentir dos contemporâneos que a chamam sempre Mãe de Jesus (At 1, 14), ou Mãe do Senhor (Lc 1, 43). JESUS: E chamarás o nome dele, Jesus. Iësous<2424>, que provém do hebraico Ieshua <03091> e que significa Javé salva ou cura. Um pai [e no caso, o filho] só era reconhecido como tal quando aceitava o filho dando a ele um nome, tal como sabemos fez Zacarias com o menino que lhe apresentou Isabel (Lc 1, 63). E Mateus explica que esse nome foi escolhido de modo particular pelo verdadeiro Pai não por José. O motivo era que em si levava o ofício de salvar seu povo dos pecados deles. Jesus ou Jeshua significa Javé é salvação. Os pecados, logicamente, são os pecados pessoais. Daí salvar o povo de seus pecados ou dos pecados deles, e não de seu pecado. Refere-se ao povo de Israel e dentro dele faz uma referência às relações homem/Deus, sendo os pecados a parte que rompe uma amizade que devia existir entre ambos e que o homem, infelizmente, por própria e livre vontade, interrompeu desde a origem de sua existência. O anjo diz claramente o ministério e incumbência do menino que por isso mesmo receberá o nome de Jesus. Não existe outra interpretação: a salvação está unida ao perdão dos pecados, tendo como prioridade o povo escolhido.

A PROFECIA: Porque tudo isto tem sucedido para que se cumprisse o proferido pelo Senhor por meio do profeta, dizendo: (22) Eis que a virgem acolherá no ventre e parirá um filho e chamarão o nome dele Emanuel,  que é  traduzido por Deus conosco (23). Hoc autem totum factum est ut adimplerétur quod dictum est a Dómino per prophétam dicéntem: Ecce virgo in útero habébit et páriet fílium, et vocábunt nomen eius Emmánuel”, quod est interpretátum nobíscum Deus. PARA SE CUMPRIR: Para Mateus como para todo israelita do seu tempo a maior prova de que um fato ou uma pessoa estivesse realmente atinado com a vontade divina era que se ajustava aos planos anunciados pelos seus porta-vozes, os profetas. Javé era dono do Mundo e senhor da História. O PROFETA: As palavras que na continuação cita Mateus, são do profeta por excelência, Isaías 7, 14: Eis a virgem terá no útero e dará à luz um filho e chamarão seu nome Emanuel. É uma tradução direta do grego. O texto hebraico tem uma palavra almah <5959> que se traduz por donzela, jovem solteira, virgem. O grego dos setenta traduziu a palavra por parthenos [=virgem]. Termo que usa Mateus em seu evangelho e que resultava tão contundente contra os judeus que por esta e outras razões eles abandonaram a setenta e fizeram outras duas traduções como são Áquila e Teodocião em que almah é traduzido por veânis [donzela, jovem] que nada tem a ver com virgem, pois se admite que a palavra para virgem em hebraico é bethuwlah <01330>. Porém não é tão exato como parece. Como exemplo em Gn 24, 16 Eliezer, servo de Abraão pensa na moça Almah [puella da vulgata] de formosa aparência, virgem bethuwl [virgo] a quem nenhum homem havia possuído. Em Êx 2, 8 a irmã de Moisés recebe o adjetivo de almah, [puella] porque era uma mocinha. No caso de Isaías 7, 14 existe um sinal [prodígio?] porque uma almah que seria uma jovenzinha conceberá e dará à luz um filho e chamareis seu nome Emanuel. O texto massorético diz que ela o chamará mas o texto grego e a vulgata são unânimes em traduzir parthenos,  virgo e chamareis. Eis o texto da nova Vulgata: virgo concipiet et pariet filium et vocabit nomen eius Emmanuel.  Como vemos aqui, é ela quem dá nome ao filho. Tanto no caso da Vulgata como da nova Vulgata não aparece o artigo determinante [a] por faltar em latim semelhante individualização. O artigo grego a [virgem] determina mais a pessoa feminina como uma particularidade muito especial. O assunto é discutido até hoje. Se não era virgem como pode ser sinal partindo do próprio Deus? Como ela, uma mulher, poderia dar nome a um filho obtido de forma normal, cujo nome sempre pertencia ao pai? Daí que a setenta, à qual segue servilmente a vulgata de Jerônimo, traduz exatamente como vemos em Mateus 1, 23, almah por parthenos e virgo. O nome, que implica um significado de ofício ou desempenho, é Emanu-El, [conosco Deus]. O caso, interpretado por Mateus como sendo o cumprimento da profecia de Isaías, era perfeito para explicar tanto a gravidez de Maria como a atuação do Filho durante sua vida: era ter Deus no meio de seu povo. Que melhor descrição de vida de Jesus?

OBEDIÊNCIA: Tendo, pois, se levantado José depois do sono, fez como lhe ordenou o anjo do Senhor e recebeu sua mulher (24). Exsúrgens autem Ioseph a somno fecit sicut praecépit ei ángelus Dómini et accépit cóniugem suam. José, ao despertar, fez o que lhe fora mandado pelo anjo e recebeu Maria como sua esposa. Isto indica que antes não estavam casados e só prometidos legalmente com o Ketubbá. Daí deduzimos que Maria era uma donzela de 12 anos e mais nove meses, quando entrou a formar parte da casa de José como sua mulher.

PISTAS: 1) Jesus não é um homem qualquer; na sua humanidade existe uma intervenção direta do poder de Deus. Ele tem uma mãe terrena, mas o Pai dele, meu Pai dirá ele, e vosso Pai, é o próprio Deus. Porém essa sua permanência desde a conceição até seu nascimento no seio de Maria o torna semelhante a nós em tudo. Se o primeiro Adão [homem] foi feito espírito vivente pelo sopro [pneuma] divino, o segundo Adão, Cristo, foi feito homem pelo espírito divino que transforma um óvulo humano em ser divino, totalmente dependente da divindade [será chamado Filho de Deus (Lc 1, 35) ou Deus conosco].

2) É admirável a simplicidade da narração. Mas também é apreciável o modo como é efetuada: José conhece o caso pelas palavras do mensageiro de Deus, como num sonho. Este sonho implica uma duplicata da realidade que temos que conhecer, em profundidade, unicamente com os olhos e ouvidos interiores. Por meio de uma fé que depende de um relato humano, mas que unicamente aceitamos porque avaliado pela palavra divina.

3) A dúvida de José era se podia aceitar uma mulher que, em termos legais, era uma idólatra e, portanto, maculava o matrimônio de modo a atingir de forma pecaminosa o esposo, cuja infâmia, portanto,  deve ser extirpada. Aceitá-la era impossível. O meio de recusá-la era a dúvida principal de José. Como temos exposto, escolheu um método que a deixava fora de suspeitas adúlteras, mas que impediria a união matrimonial, porque nesse caso, como marido de uma mulher infiel, comparável a uma idólatra, estaria ele colaborando com o mal. O libelo, ou escrito de repúdio antigo, foi a forma escolhida por José. Não era preciso relatar causas, mas deixar claro que não deviam existir vínculos ulteriores. Tudo estava terminado.

4) A visão em sonhos declara os fatos e inocenta Maria. Mais, a eleva à categoria de especial escolhida por Deus para ser mãe do Salvador esperado. Existe outro aspecto a ser tomado em conta: pede a José que atue como pai. Ninguém saberá o acontecido e todos pensarão numa conceição, gravidez e nascimento comuns.

5) José aceitou o encargo e se tornará pai –todos assim o pensavam – de um menino a quem impõe o nome, Salvador dos pecados de seu povo, não dos inimigos externos ou do poder estrangeiro, mas dessa ruptura essencial do homem com Deus que Cristo inicia a dissolver e da qual sempre será causa de anulação por meio da reconciliação. Era o antigo decreto de morte que acompanhava o afastamento do homem. Agora, por parte de Deus, todos somos filhos em seu Filho. Por parte humana, individual, essa nova realidade é assumida particularmente por meio da fé e a conversão em que não é o homem quem dita a ética vital, mas o Homem Jesus quem a proclama no seu evangelho.

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