Comentário Exegético – IV Domingo da Páscoa – Ano A

EPÍSTOLA (1Pd 2, 20-25)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

VERDADEIRO MÉRITO: Qual pois mérito (há) se pecando e esbofeteados, aguentais? Mas, se fazendo o bem e padecendo,  aguentais, isto (é) agradável para Deus (20). Quae enim gloria est si peccantes et colaphizati suffertis sed si benefacientes et patientes sustinetis haec est gratia apud Deum. MÉRITO [kleos<2811>=glória] rumor, fama, glória, louvor, aplauso que temos traduzido por mérito como mais inteligível e até mais apropriado. Este vocábulo sai unicamente. Ele é um apax neste versículo. ESBOFETEADOS [kolafizomenoi<2852>=colaphizati] é o particípio passivo do presente do verbo kolafizö que significa esbofetear, receber um tapa, bater com o punho, golpear. Também maltratar, tratar com violência e desprezo. É o que aconteceu com Jesus segundo Mt 26, 67 e Mc 14, 65 na casa de Caifás, onde foi esbofeteado e cuspido pelos escudeiros do Sumo Pontífice. AGUENTAIS [ypomeneite<5278>=sustinetis] do verbo ypomenö, com o significado de permanecer, perseverar, não retroceder, aguentar, resistir, suportar e tolerar, especialmente se são tratamentos e condutas impróprias e vexames. AGRADÁVEL [charis<3844>=gratia] com o significado de ser coisa agradável a Deus é uma das traduções, a mais seguida; mas também e talvez com maior propriedade podemos traduzir por é uma mercê de Deus. A natureza humana se revolta contra toda a injustiça; porém fazer todo o contrário, suportar as injúrias injustas é um dom de Deus, como sugere o para [<3844>=apud] preposição de procedência, com genitivo, ou seja que procede de Deus. Ou seja, traduziremos isto é um dom que de Deus procede.

EXEMPLO DE CRISTO: Pois para isso fostes chamados, porque também Cristo padeceu por vós, a vós deixando um exemplo para que sigais nos seus passos (21). In hoc enim vocati estis quia et Christus passus est pro vobis vobis relinquens exemplum ut sequamini vestigia eius. FOSTES CHAMADOS [eklëthëte<2564>=vocatiestis] aoristo do verbo kaleö com o significado de chamar, convidar, que é uma vocação divina para imitar o exemplo de Cristo como afirmará mais tarde. Do versículo anterior, sabemos que são os planos divinos os que acompanham os sofrimentos injustos e que dentro deles agora o apóstolo toma como exemplar a conduta de Cristo. PADECEU [epathen<3958>=passus est] aoristo de paschö, é o verbo usado por Jesus para indicar os padecimentos a que seria submetido pelos juízes do Sinédrio (Mt 16, 21 e Mc 8, 31). O por vós é em grego yper ëmön [por nós] segundo o grego da Nestlé. A Vulgata e o grego católico de Mark usam o nós, como se Pedro se incluísse dentro dos remidos por Cristo. Do ponto de vista lógico da frase o vós é o mais correto. Com esta afirmação Pedro supõe a morte vicária de Cristo, pois o yper grego significa em favor de, por amor de, pelo benefício de, no lugar de, em vez de como genitivo [no caso].Um exemplo: em 1 Cor 15, 19 Paulo fala do caso em que os novos cristãos se batizavam yper nekrön [= no lugar dos mortos]. Com isto Pedro reforça o dogma da morte vicária de Cristo, que hoje alguns teólogos criticam como sendo metáfora, pois negam a justiça divina ao exaltar em demasia a bondade de um Pai demasiado indulgente. Citam a parábola do filho pródigo, mas esquecem outras passagens do evangelho em que o fogo eterno é claramente afirmado para os que praticam a iniquidade, com a mesma rejeição de quem separa os que estão à sua esquerda para o fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos  (Mt 7, 23 e 25, 41). EXEMPLO [ypogrammon <5261> =exemplum] com o significado de uma cópia escrita e logicamente um exemplo. SIGAIS [epalolouthësëte<1872>=sequamini] o verbo é usado por Marcos quando diz que o Senhor cooperava com os pregadores do evangelho confirmando a palavra com os sinais que se seguiram (Mc 16, 20). PASSOS [ichnos<2487>=vestigia] pegada, pisada, passo geralmente em plural, como vemos no latim. Evidentemente o apóstolo refere-se aos sofrimentos dos primeiros cristãos, na época, perseguidos e caluniados em cujas vicissitudes ele observa que estão seguindo os passos do seu senhor como este já tinha profetizado (Lc 21, 12) de modo que o discípulo não seja diferente de seu Mestre (Mt 10, 34-25).

INOCÊNCIA DE CRISTO: O qual pecado não fez, nem se encontrou engano na sua boca (22). Qui peccatum non fecit nec inventus est dolus in ore ipsius. O qual insultado, não revidava o insulto, sofrendo não ameaçava, mas entregava-se ao que julga justamente (23). Qui cum malediceretur non maledicebat cum pateretur non comminabatur tradebat autem iudicanti se iniuste. Pedro expõe agora a inocência de Jesus com duas ideias: não cometeu pecado em obras e não houve mentira em sua boca. Consequentemente foi um inocente, injustamente castigado com atrozes tormentos e morte de cruz. Este é o exemplo que devem imitar seus discípulos e seguidores. ENGANO [dolos<1388>=dolus] propriamente isca, tentação, engodo e daí astúcia, engano, falsidade, fraude, dolo. Pedro coincide com Tiago que afirma: se alguém entre vós cuida ser religioso e não refreia sua língua, antes engana o seu coração, a religião desse é vã (1 Pd 2, 22). Pedro apela ao exemplo de Cristo, especialmente durante o tempo de sua paixão. Jesus não revidou aos insultos como vemos em Mt 26, 62-63, durante o julgamento na casa de Caifás ou no pátio de Pilatos em Mt 27, 28-30 e no momento da crucifixão os insultos narrados por Mateus em 27, 39-44. Por isso, Jesus entregou sua causa a Deus, o verdadeiro juiz que julga corretamente.

CRISTO NOS SALVOU POR SUAS CHAGAS: O qual nossos pecados ele carregou no seu corpo sobre o madeiro para que mortos aos pecados vivamos  na justiça, o qual pela chaga fostes curados (24). Qui peccata nostra ipse pertulit in corpore suo super lignum ut peccatis mortui iustitiae viveremus cuius livore sanati estis. CARREGOU [anëneyken<399>=pertulit] é o aoristo do verbo anaferö com o significado de oferecer no altar, liderar, carregar, suster. Com esta frase Pedro confirma o dito pela carta aos Hebreus 7, 27: Não necessitou diariamente, como os sumos sacerdotes, de oferecer <399> cada dia por seus próprios pecados, e depois pelos do povo; porque isto fez uma vez, oferecendo-se <399>a si mesmo. E em Hebreus 9, 28: Cristo, tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar [<339>] os pecados de muitos. Porque como diz Paulo: Aquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus (2Cor 5, 21). Disso tudo, podemos deduzir que a morte de Cristo na cruz foi um sacrifício expiatório, como também Cristo vos amou e se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave (Ef 5, 2). PELA CHAGA [mölöps<3468>=livor] o grego indica mancha roxa, contusão, vergão, vinco e pancada. Sem dúvida que aqui Pedro une a flagelação ao suplício da cruz, podendo ser traduzida a passagem: pelas suas feridas fomos curados. De modo que a maldição da cruz, como diz Paulo, serviu para a bênção dos que outrora eram malditos; a morte para a vida e as feridas para a saúde. Assim se cumpriu o que Paulo afirma: Deus escolheu a loucura do mundo para a mais sábia solução de salvação e vida do pecador (ver 1Cor 1, 25).

O NOVO PASTOR: Éreis, pois, como ovelhas desgarradas, mas agora vos mudastes para o pastor e supervisor de vossas almas (25). Eratis enim sicut oves errantes sed conversi estis nunc ad pastorem et episcopum animarum vestrarum. De uma vida como sem esperança nem futuro, agora remidos por Cristo pertencem os novos cristãos a um pastor que é ao mesmo tempo supervisor [episcopos] que cuida amorosamente dessas almas ou vidas que ele conseguiu por sua cruz e por seus sofrimentos. Pois demonstrou que era o bom pastor que dá sua vida por suas ovelhas.

EVANGELHO (Jo 10, 1-10)

JESUS, A PORTA DO APRISCO

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Este é o domingo chamado do Bom Pastor, festa que é comemorada em todos os três anos litúrgicos. Além de ser o autêntico  [melhor tradução do Kalos grego] pastor, Jesus também se declara como a porta pela qual entra todo pastor legítimo e, através da qual, o acompanhando, saem suas ovelhas. Porta, pastor e ovelhas constituem termos de uma alegoria em que a voz do pastor é ouvida pelas suas ovelhas e encontram os prados de modo que tenham vida abundante. Esta alegoria do Bom Pastor é única do quarto evangelho que não encontra lugar paralelo entre os sinóticos. Jesus falará em Mateus e Marcos, como viu as multidões que eram como ovelhas sem pastor (Mt 9, 36 ) e afirmará que, ferido o pastor, as ovelhas serão dispersadas (Mt 26, 31). São estas duas passagens as que indiretamente declaram Jesus como pastor de Israel. Mas, é na perícope atual, de uma beleza extraordinária, a que nos mostra, primeiro, Jesus como a porta  para indicar que qualquer outra maneira de entrar no aprisco é sub-reptícia. Logo, na segunda parte, falará que ele é também o verdadeiro pastor. Nesta primeira parte, vamos falar de Jesus como porta. Antes de entrar na exegese do evangelho é oportuno e até necessário, observar as circunstâncias nas quais essa alegoria foi proclamada por Jesus. Jesus estava em Jerusalém, no templo, rodeado por fariseus que eram os mestres de Israel. Após a cura do cego de nascença, Jesus disse uma frase que incomodou os fariseus: vim para os que não veem vejam, e os que veem tornem-se cegos (9, 39). Jesus então está a afirmar uma coisa inaudita: Ele é a porta por onde deve entrar quem se considera pastor de Israel. Esta é a base do evangelho de hoje.

UMA AFIRMAÇÃO INUSITADA: Amém, amém, vos digo: quem não entra pela porta ao aprisco das ovelhas, mas pula por outra parte , esse é ladrão e bandido (1). Amen amen dico vobis qui non intrat per ostium in ovile ovium sed ascendit aliunde ille fur est et latro. AMÉM, AMÉM: A palavra é de origem hebraica, traduzida por verdadeiramente na totalidade dos casos, ou deixada no original em outros. O Amém hebraico está relacionado com o verbo amam [crer ou ser fiel], e significa certamente, ou verdadeiramente. A tradução literal é: firmemente, fielmente, certamente, seguramente. Por isso, Deus mesmo é chamado AMÉM por ser fiel e veraz (Is 66, 16). 1) No princípio de um discurso, seria traduzido por com certeza. 2) No fim do mesmo, por assim será. Entre os judeus: Era costume entre os judeus, retomado pelos cristãos, que no fim de maldições solenes (Nm 5, 22), ou após orações e hinos de bênção e louvor (1Cr 16, 36 e Sl 41, 14), ou, terminado um discurso ou juramento (Jr 11,5), os assistentes respondessem Amém, como aceitando a substância do mesmo. Em Jesus, testemunha fidedigna e veraz  e Amém de Deus (2 Cor 1, 19-20), o termo equivale a uma afirmação solene e inquestionável.  Ele emprega o amém na frase Amen lego Ymin antes de uma afirmação solene e dogmática. Desta forma é usado 30 vezes em Mateus, 12 em Marcos e 7 em Lucas. Unicamente encontramos em Mateus o amém no fim, quando após o Pai Nosso diz: Teu o reino, o Poder e a glória pelos séculos. Amém (6, 13). O seu uso ao início de uma afirmação é duplo em João: Amém , amém e aparece 24 vezes. Uma delas é esta de hoje. O Amém final repetido somente aparece duas vezes nos salmos: 41, 14 e 72, 19. Fora disso aparece repetido em Nm 5, 22., com o significado de genoito, genoito [seja, seja] grego nos três casos. Em todos os casos, significa verdadeiramente, de fato, como um assentimento ao afirmado anteriormente. Unicamente em Is 65, 16 o amém significa verdadeiro, pois se fala do Deus do Amém, ou seja, o Deus da Verdade, que cumpre sua palavra como traduz a vulgata: abençoar e jurar in Dio Amen. Na Nova Vulgata o texto será: Quicumque benedicit sibi in terra, benedicet sibi in Deo Amem, et quicumque iurat in Deo in terra iurabit in Deo Amem. Daí que o Amém tenha o sentido de verdade, de compromisso com a palavra própria e que em João, ao ser repetitiva, indica um superlativo, à semelhança de como aclamamos Santo, Santo, Santo é o Senhor (Is 6, 3).  No NT, entre os escritos apostólicos, o Amém tem o significado de termo de oração ou de bênção, acrescentado para proclamar a adesão ao mesmo com o sentido de assim seja ou desejamos, como no caso de Rm 1, 25 Criador que é bendito pelos séculos. Amém. No nosso caso, parece um superlativo de verdadeiramente, ou o equivalente de com toda segurança e garantia, eu posso afirmar. É, pois, uma asseveração solene de Jesus na qual ele aposta, na verdade de que Ele é a Palavra de Deus. O PORTÃO: Thyra é a palavra usada pelo evangelista. A palavra pode indicar a porta da habitação de uma casa, como em Mt  6, 6: Fecha a porta de tua habitação; a porta de um sepulcro em Mt 27, 60; a porta de uma casa Mc 2, 2 onde Jesus morava; o portão da cidade Mc 1, 33, assim como o portão de um aprisco Jo 10 1. OVELHAS: A palavra probaton [probaton] no seu sentido mais lato denotava todos os animais de quatro patas [especialmente os domesticados] em oposição aos que nadavam ou rastejavam. Derivada a palavra de pro-baino = ir adiante, nos rebanhos mistos, era o gado miúdo [ovelhas e cabras] que por serem mais fracos que os outros animais iam à frente, marcando o passo. Originariamente, a palavra se empregava no plural, com o significado de rebanho ou manada. Mas depois, apareceu o emprego no singular, com o significado de um membro da manada, uma ovellha. No AT, com o plural probata significa-se metaforicamente o povo  que está sob o domínio do pastor [poimen]. O essencial era a necessidade de proteção, que, sem o pastor, fica disperso (Ez 34,5). Javé providenciará para que seu rebanho não seja disperso, nomeando pastores, tal como o rei messiânico (Jr 23, 1) ou sendo ele mesmo o pastor de seu povo (Sl 78, 52 e Is 40, 11). No NT, probaton é mais frequente em Mateus (11 vezes) e em João (17 vezes). Fica claro que os contemporâneos de Jesus sabiam como a ovelha necessitava da proteção amorosa e abnegada do pastor, e que, sem ele, fica indefesa (Mt 9, 36) e perdida (Mt 10, 6). Jesus, como autêntico pastor é enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 15, 24). Em João probaton denota o povo eleito de Cristo, os seus, os que conhecem sua voz, como vemos no evangelho de hoje, formando um só rebanho e um só pastor (Jo 10, 16), quando finalmente judeus e cristãos fiquem reunidos numa só Igreja com um só Senhor. (Jo 17, 20-23). Com respeito a este último versículo, creio que é mais apropriado esta nossa interpretação que a de apelar aos gentios como ovelhas separadas. APRISCO: A palavra aulê significava nos tempos clássicos um espaço aberto, sem teto, mas cercado com um muro do qual formavam parte os currais; daí que, entre os orientais, significasse especialmente o redil, isto é o curral onde estava recolhido o gado de origem lanígero ou caprino [probata]. Em que consistia um redil? Como temos dito, era um espaço fechado por um muro de pedra sobre o qual existia uma sebe ou tapume de galhos espinhosos, que também podia ser uma cerca viva, para que as feras como lobos e cães selvagens não pudessem pular dentro do curral. É o bardal espanhol, do qual eu tive perfeito conhecimento durante a guerra civil, quando fui obrigado a morar na roça. Parece que existia o costume do pastor dormir junto ao portão para ser despertado caso o ladrão quisesse entrar pelo portão. Dentro do mesmo havia gado de diferentes donos e unicamente os pastores, donos da porção correspondente de ovelhas, conhecidos pelo guardião de turno, podiam entrar pelo portão. QUEM NÃO ENTRA: O portão está sempre à disposição dos donos das ovelhas, mas é lógico que os que não são pastores das mesmas não têm permissão para entrar. Por isso entram pulando o muro. São os que João chama de Kleptes e Lestes. As duas palavras têm significados diferentes: Um Kléptes é um ladrão vulgar, um fraudador, que não usa da violência, mas do engano e da astúcia; é o fur latino [daí a palavra furto]. Já um Lestes é um arrombador que usa a violência e que podemos traduzir por malfeitor, salteador, bandido, ou facínora. A vulgata traduz Lestes por latro [dela provém o ladrão]. Inicialmente latro era a palavra usada para denominar o soldado que se apoderava dos bens inimigos, como saqueador dos mesmos. E foi a palavra usada para descrever Barrabás segundo João. Lestes era também o pirata. Os outros evangelistas falam de Barrabás, como se fosse de um revoltoso. O importante da afirmação é que quem entra pulando a cerca é um malfeitor que não busca o bem das ovelhas, mas pelo contrário, o proveito próprio que delas pode obter.

O PASTOR: Mas aquele que entra através da porta é pastor das ovelhas (2). A este, o porteiro abre e as ovelhas ouve (m)  sua voz e as ovelhas próprias chama por nome e as saca (2). Qui autem intrat per ostium pastor est ovium. huic ostiarius aperit et oves vocem eius audiunt et proprias oves vocat nominatim et educit eas. Contrariamente à conduta imprópria dos ladrões e assaltantes, o pastor do rebanho, neste caso das ovelhas, sempre entra pela porta. Na realidade, o probata grego é usado principalmente para designar o gado menor,  composto, na Palestina da época, de ovelhas e cabras (Mt 25, 32). Como vemos, no grego usa-se o singular para o verbo ouvir, talvez dando o significado de rebanho, no caso, e poderíamos traduzir: o rebanho ouve a sua voz e chama pelo nome as ovelhas próprias e as conduz para fora.

A CONDUTA DAS OVELHAS: E quando fizer sair as próprias ovelhas, caminha diante delas e o rebanho o segue, porque tem conhecido a sua voz (4). Mas a um estranho não seguiriam, mas fugiriam dele porque não têm conhecido a voz de estranhos (5). Et cum proprias oves emiserit ante eas vadit et oves illum sequuntur quia sciunt vocem eius. Alienum autem non sequuntur sed fugient ab eo quia non noverunt vocem alienorum. O dono das ovelhas ou o pastor das mesmas é conhecido do porteiro e entra pelo portão. Nos versículos seguintes (3, 4, e 5 ) que podem ser um acréscimo do próprio evangelista como explicação, Jesus fala da relação ovelha-pastor: as ovelhas conhecem sua voz; ele as chama pelo seu nome e as conduz fora do aprisco. Logicamente, tudo isto é o oposto da maneira de agir dos assaltantes: as ovelhas são forçadas ou mortas e assim estas são as únicas maneiras de apoderarem-se delas. A um estranho não acompanhariam, mas antes fugirão dele porque não reconheceram sua voz (5).

CONCLUSÃO: Esta narrativa figurada disse-lhes Jesus. Mas eles não conheceram que realidades eram das que  lhes falava (6). Hoc proverbium dixit eis Iesus illi autem non cognoverunt quid loqueretur eis. A tradução, querendo ser a mais literal possível, resulta às vezes um pouco forçada. Narrativa figurada é uma tradução do grego original [paroimia] que melhor  poderíamos traduzir por metáfora e que a Vulgata traduz por provérbio. De novo, paroimia  é usada por João como metáfora prolongada ou uma fala figurada: Estas coisas vos tenho dito falando em palavras figuradas (16, 25). Somente em 2 Pd 2, 22, fala-se de adágio ou provérbio: aconteceu com eles o que diz o provérbio [paroimia]: O cão voltou ao próprio vômito. Porém os ouvintes, que eram os fariseus, não entenderam o significado desta comparação metafórica. Assim este versículo é uma conclusão lógica do evangelista, dadas as circunstâncias em que ele viveu o momento histórico que relata. Era este um lance de tensão entre Jesus e os fariseus a quem, por não ver na cura do cego de Siloé, além do fato material, a realidade transcendente do autor, Jesus terá que chamar de cegos, apesar de se declararem videntes. Por que não admitiam Jesus como o enviado do Pai? E Jesus responde com esta alegoria. Eles, porém, não entenderam a realidade, oculta sob as palavras da comparação.  Daí a explicação estrita, dada pelo próprio autor da alegoria, como veremos nos versículos seguintes.

DE NOVO A AFIRMAÇÃO: Disse-lhes, então, de novo, Jesus: Amém, Amém vos digo que eu sou a porta das ovelhas (7). Todos quantos vieram antes de mim são ladrões e bandidos; não os escutaram as ovelhas (8). Dixit ergo eis iterum Iesus amen amen dico vobis quia ego sum ostium ovium.  Omnes quotquot venerunt fures sunt et latrones sed non audierunt eos oves. É uma primeira declaração que explica o porquê o povo de Israel, que  era chamado de rebanho que Javé de modo particular pastoreava [dá ouvidos, ó pastor de Israel, tu que conduzes a José como um rebanho; tu que estás entronizado acima dos querubins, mostra o teu esplendor (Sl 80, 1)], tinha uma porta no redil e essa porta de entrada e saída era Ele, Jesus. Pastor, em hebraico é  ra’ah<07462> que é traduzido por poimën ao grego e por pastor ao latim. Tanto no grego clássico quanto na bíblia, emprega-se em sentido metafórico para indicar um líder, um governante, um comandante. Platão fala dos chefes de uma polis como sendo cópias do divino pastor [eschema tou theiou nomeus]. No Oriente antigo, pastor era o título de honra que se aplicava de igual modo a soberanos e deuses. No verão seco, em terra sem água, não era fácil achar novas pastagens e o pastor devia cuidar de modo incansável dos seus animais indefesos. No AT Javé é o único Pastor do seu Povo. Esta ideia se destaca nos salmos 23; 28, 29 etc. E o povo é o único rebanho de Javé. Assim se fala de que o rebanho de Israel é conduzido para o exílio (Jr 13, 17). Também, entre outras passagens, podemos citar Isaías 40, 11 onde lemos: o Senhor Javé, vosso Deus…. como um pastor apascenta ele o seu rebanho … No NT poimen aparece 9 vezes nos sinóticos e 6 vezes em João. Os contemporâneos de Jesus desprezavam o pastor, mas foi esta, a metáfora que Jesus empregou para expressar o amor de Deus para com os pecadores e para revelar a sua oposição à condenação destes por parte dos fariseus (Lc 15, 4-6). E, nesta alegoria, Jesus se apresenta como porta das ovelhas e como o autêntico pastor das mesmas. Estas podem ser descritas como poimnh (Jo 10, 16) ou como a soma total das mesmas com a palavra probata. Em ambos os casos, probata é a representação dos seus discípulos, os que ouvem em obediência as suas palavras. Veremos o motivo por que Jesus se identifica com a porta do aprisco já que o Pastor era Javé. A CONCLUSÃO: Todos os que vieram antes de Jesus, não eram os verdadeiros pastores. Porque não entraram pela porta das ovelhas, já que Ele e só Ele era a porta. Isto quer dizer que não existiu verdadeiro Messias antes de Jesus. Quem teve a audácia de se declarar Messias antes de Jesus? No seu tempo houve revoltas contra os romanos, anteriores a Cristo, como falsos profetas. Eram os que não entraram pela porta que é Ele, Jesus, o Filho Encarnado. Ou seja, com esta frase não suprime nem Moisés nem os profetas até João o Batista, pois dEle todos eles falaram, mas todos os que rejeitaram seu nome [pessoa] como os fariseus ou, em seu lugar, tomaram o ministério de serem os Ungidos e Messias, ou salvadores da humanidade, como no caso dos Césares, de título Augusti, ou como Apolônio de Triana, Mitra e Simão o mago, para não falarmos dos falsos messias judeus como o caso de Herodes, o Magno (39 a 4 aC ), a quem os herodianos consideravam como Messias, Judas Galileu (4 a 6 aC) sucessor de seu pai Ezequias morto este por Herodes. Simão da Pereia (4 aC), Atronges, o pastor (4 aC), que foi morto por Arquelau e finalmente Judas, o Galileu (6 aC). Podemos falar inclusive do Batista, cujos discípulos, com o nome de mandeos ou mandeanos, ainda sobrevivem em número de cem mil no norte do Iraque. Se não entraram através da porta, que é Jesus, são falsos pastores. E definitivamente foram causa de revoltas e matanças tanto pelo poder romano como pelos poderes fáticos da Palestina da época. Cita-se Zc 11, 8: Eu destruirei os três pastores em um só mês para indicar os líderes das três seitas religiosas no tempo de Jesus: Fariseus, Saduceus e Essênios que foram suprimidas na guerra, de modo que já não mais tiveram influência dentro do mundo judeu. Faltando na Vulgata o antes de mim e em vários códices gregos, podemos incluir outros movimentos messiânicos como os do profeta samaritano (36 dC) morto por Pilatos, o rei Antipas (44 dC), Teudas, o Egípcio (45 dC), o profeta egípcio (58 dC) o profeta anônimo (59 dC), Menahem filho de Judas o Galileu (66 dC), João de Giscala (66-70 dC), Simão bar Giora (67-70 dC),  Tito Vespasiano (67-81), Jonatan o tecedor(73dC). Lukuas (115 dC),  e principalmente, de Bar Kokhba (135 dC), o último dos messias nos tempos posteriores a Jesus. O rebanho que não os escutou, significa que não o seguiram indefinidamente, de modo que seus movimentos hoje estão completamente esquecidos. Todos eles levaram à morte seus partidários. Só Jesus morreu pelos seus e disse ao ser preso: deixai que estes se retirem (Jo  18, 8). Então de novo disse Jesus: Absolutamente vos digo: Eu sou a porta das ovelhas (7). Que significa isto? Dos parágrafos anteriores, a porta era principalmente a entrada por onde o verdadeiro pastor entra e recolhe as ovelhas para levá-las ao pasto. Mas se Jesus era a verdadeira porta, quem eram os outros que a si mesmos se intitularam como tais, até o momento em que ele veio e se mostrou aos conterrâneos?  Eram ladrões e facínoras. Por isso, não foram escutados pelas ovelhas. Quem eram estes anteriores a Jesus? Sem dúvida, os fariseus e os líderes do povo antes de Jesus. S. Ignácio, o bispo mártir de Antioquia afirma que Jesus é a porta [Thyra como em João] do Pai por onde entram Abraão, Isaac e Jacó, os profetas, os apóstolos e a Igreja (aos de Filadélfia 9, 1).

NOTA: Por serem pouco conhecidos, vamos falar de  Simão de Pereia (4 aC): Após a morte de Herodes, o Grande, um escravo de seu séquito, de nome Simão, um gigante em estatura, colocou o diadema real sobre sua cabeça e foi seguido por um número considerável de adeptos. Pôs fogo no palácio de Jericó e em outras casas reais deixando que fossem saqueados. Gratus, o comandante da infantaria de Herodes, uniu-se a alguns soldados romanos e, após derrotá-lo, cortou-lhe a cabeça. Atronges, o pastor (4 aC): Após a morte de Herodes, rebelou-se contra Arquelau.  Atronges, um pastor, mas de força e estatura superior, com seus 4 irmãos também de grande porte físico, comandou um grupo numeroso e colocou um diadema sobre sua cabeça. E foi chamado de rei. Matou um gande número de romanos e soldados leais a Arquelau. Atacou uma companhia de romanos em Emaús, que traziam grãos e armas para o exército. Matou 40 deles, entre eles Arius o centurião. Gratus, nosso conhecido, veio em auxílio dos vencidos. Após dois anos de luta, mortos por luta e doença os 4 irmãos, Atronges se entregou sob a promessa de Arquelau de respeitar sua vida. Judas filho de Ezequias (4 aC): Também após a morte de Herodes, e  com um número considerável de partidários, atacou Séforis, a capital do norte e tomou as armas e pilhou a cidade. Provavelmente foi capturado pelo governador de Síria, Varo, famoso pela perda das legiões na Germânia anos mais tarde, que semeou de cruzes o caminho até Jerusalém. Judas, o Galileu (6 Dc): Não confundi-lo com o anterior, pois se passaram 10 anos entre os dois e as circunstâncias foram totalmente diferentes. Sendo Arquelau deposto pelos romanos o seu reino foi tomado, como província da Judeia, pelo governador Copônio, que intentou novos impostos. Assim se formou uma rebelião sob a liderança de Judas o Galileu, e quando o sumo sacerdote Joazar foi incapaz de resolver a sublevação, interveio o governador adjacente da Síria, Públio Sulpício Quirino, conhecido por Lucas  em 2,2. Nosso Judas, da cidade de Gamala, apoiou-se no critério do fariseu Zadok, para iniciar uma revolta que lutava contra a escravidão, à qual conduziam os impostos, e afirmando que unicamente seu Senhor era o Deus de Israel (ver o tributo ao César dos fariseus). Assim se originou a quarta seita judaica, a dos zelotes. Nos Atos, Judas foi morto e todos os que o seguiam foram dispersos (At 5,37). Como vemos é certíssima a afirmação de Jesus de que todos eles eram ladrões e bandidos. Só serviram para a morte de seus seguidores. No mundo moderno, aqueles que com a escusa da injustiça se levantaram como líderes de uma nova ordem mundial levaram seus seguidores à morte. Os nazistas foram responsáveis por 25 milhões de mortes, ao passo que os mortos, nos vários Estados do socialismo real, não ficaram aquém de 100 milhões, dentre os quais 20 milhões na Rússia e 65 milhões na China (tomado de Carlos I. S. Azambuja, historiador). Pelo que diz respeito aos anos posteriores de Jesus,  temos o caso de Teudas, discutível quanto a data, entre o relato dos Atos e o relato de F. Josefo. Segundo Josefo entre o ano de 44 e o 46 dC causou certos distúrbios ao se proclamar Messias e reuniu um grande número do povo à beira do Jordão, dizendo que dividiria as águas do rio. Cuspius Fadus, o procurador, não permitiu mais alterações e enviou uma força de cavaleiros que matou muitos e cortou a cabeça de Teudas, que foi carregada até Jerusalém. O interessante do caso é que esse Teudas é citado por Gamaliel em At 5, 36, mas que a data de sua atuação deve ser retraída ao ano 33, quando Gamaliel fala diante do Sinédrio, no ano  em que os apóstolos começavam a pregar o evangelho e foram impedidos pelo supremo tribunal. Fado, efetivamente foi procurador entre 44-66. Houve um erro de Lucas, ou o erro foi de F. Josefo, tantas vezes inseguro pelas datas de sua História das Antiguidades Judaicas? Cremos nesta última hipótese, já que o escrito de Lucas é muito mais próximo dos fatos.

EU SOU A PORTA: Eu sou a porta. Através de mim, se alguém entrar, será salvo e entrará e sairá e encontrará pastagem (9). O ladrão não vem senão para que roube e mate e perca; eu vim para que tenham vida e sem medida tenham (10). Ego sum ostium per me si quis introierit salvabitur et ingredietur et egredietur et pascua inveniet.  Fur non venit nisi ut furetur et mactet et perdat ego veni ut vitam habeant et abundantius habeant. Jesus indica claramente que ele é único, como porta, por onde devem entrar todos os pastores de Israel. Ou seja, os reis ou dirigentes messiânicos de Israel, devem se ajustar ao único verdadeiro que é ele, Jesus. Quem não entra, como os apóstolos, pela sua porta não pode ser verdadeiro pastor. Porque os outros que não entram pela porta só se servem das ovelhas para roubar, matar e assim se perdem. Na nota temos visto como a realidade se conforma com as palavras de Jesus. Ele, pelo contrário, veio para que as ovelhas possam viver e até melhor do que viviam dentro dos limites dos antigos pastores de Israel.  Por isso, na continuação, Jesus explica seu papel de supremo e verdadeiro pastor. Mas isso ultrapassa os limites do evangelho de hoje.

PISTAS: 1) A afirmação de Jesus de ser a porta do aprisco é de tal modo absoluta, que nos obriga a mantê-la como uma verdade dogmática. Todo aquele, que não se compromete com Jesus e seus ensinamentos, não pode ser verdadeiro pastor das ovelhas que constituem os súditos do reino.

2) Essa porta é única, de modo que qualquer outra porta moral ou dogmática será o mesmo que entrar no aprisco por cima da cerca. E isso constitui os tais ladrões e facínoras, que servem melhor aos seus interesses do que ao bem das ovelhas a eles encomendadas.

3) Quem são os tais? Evidentemente aqueles que buscam o dinheiro como proveito de seus serviços, ou a fama para serem louvados como tais líderes (Mc 12, 38-39), quando Jesus afirma que seu serviço é  dar a vida e para isso ele escolheu a própria morte para que elas tenham vida (Jo 10, 15). Jesus aclarará como os chefes da terra subjugam e dominam, mas aquele que quiser ser grande entre seus discípulos deve servir a todos como fez ele mesmo (Mt 20, 25-28).

4) Não podemos esquecer que os primeiros pastores são os próprios pais. Neste mundo em que o bem-estar e o prazer substituem o amor e o serviço, é bom recordar as palavras de Jesus sobre como apascentar as ovelhas, que no caso são os filhos. Por isso, o problema deste Papa será o problema da família e da conservação da vida em todos os aspectos.

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