Comentário Exegético – Domingo de Ramos – Ano A

EPÍSTOLA (Fp 2, 6-11)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: O trecho é considerado um hino em louvor a Cristo; mas podemos considerá-lo como uma autêntica fórmula de fé em que os cristãos resumiram a vida do Salvador: Um despojamento [Kenösis], um revestimento [sua humanidade], uma humilhação [sua obediência], uma morte sacrifical [de cruz]. A esse destino, livremente assumido, correspondeu sua exaltação [ressurreição] sobre toda criatura [novo nome], que o elevou à categoria divina [Senhor]. Se christianus alter Christus, é assim que deve ser nossa história dentro da História da humanidade, pois foi essa existência a escolhida como caminho e vida pelo Filho de Deus.

A KENÖSIS: O qual (Cristo) em forma de Deus existindo (continuando a existir), não estimou roubo ser igual a Deus (6), mas esvaziou-se a si mesmo tomando a forma de um escravo, em semelhança de homens se tornando (7). Qui cum in forma Dei esset non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed semet ipsum exinanivit formam servi accipiens in similitudinem hominum factus et habitu inventus ut homo. FORMA [Morfë<3444>=forma] é a aparência, figura, ou externa maneira com a qual uma pessoa é vista; diferente do schema <4976> que pode ser traduzido por modelo, aspecto, hábito. A forma indica em si mesma a presença externa com a qual uma pessoa ou coisa pode ser vista e conhecida. EXISTINDO [Yparchön <5225>=esset]: O verbo Yparchö tem como sentido estar por baixo, começar, ou simplesmente ser como em 1Cor 11, 7 quando Paulo fala do varão, como sendo [representando] imagem e glória de Deus. Uma vez pode ser traduzido como viver; por exemplo, em Lc 7, 25 em que fala dos vivendo [yparchontes] em palácios. As traduções antigas falam de subsistir com o significado de existir ou continuar existindo, permanecer. Talvez pudéssemos traduzir por permanecendo em forma de Deus, ou continuando a ser Deus, que indica não deixando de ser Deus. ESTIMOU [Ëgeomai <2233>=arbitrare]: A tradução primária é liderar, conduzir e também considerar, estimar, julgar, pensar, como parece ser o caso. Um exemplo em 2 Cor 9, 5: Julguei [ëgësamën] pois necessário. Assim temos traduzido por estimar. ROUBO [Arpagmos<725>=rapina]: traduzido como roubo, latrocínio, furto, apoderar-se de uma coisa imprópria ou que não lhe pertence. É a única vez [ápax] que acontece no NT. O significado é que a divindade era própria dEle e não houve mistificação ou apropriação imprópria da divindade em sua pessoa. ESVAZIOU-SE [Ekenösen<2758>=exinanivit]: o verbo Kenoö significa esvaziar. A fé se torna vazia e a promessa nula dirá Paulo em Rm 4, 14. O significado é que externamente nada demonstrava do que podia ser atributo, qualidade ou sinal distintivo da divindade. Pelo contrário o que era próprio dEle foi anulado porque tomou totalmente outra maneira de ser visto e esta foi a puramente humana, que Paulo chama aspecto de um escravo. O DOULOS [<1401>=servus] não pode ser traduzido por servo, pois estes não existiam na época ou eram chamados diakonoi. A tradução, pois, deve ser escravo, condição última entre os homens e que estavam à disposição do amo sem ter vontade própria. A mesma Virgem Maria declara ser escrava do Senhor (Lc 1, 38), indicando a total submissão e obediência ao que desde então seria seu Senhor. SEMELHANÇA [Omoiöma <3667>=habitus]: semelhança, parecido,  aspecto, forma. Esse aspecto é o de um homem, ou, segundo a tradução direta, aspecto de homens em plural. Como conclusão, temos que Cristo tem como essência a divindade e que a humanidade foi como um vestido ou aspecto externo com o qual foi reconhecido entre os homens de seu tempo. A Igreja interpreta esta passagem declarando: uma pessoa divina e duas naturezas: divina primeiro, como increada e eterna  e logo, humana, como criada e assumida.

OBEDIÊNCIA: E sendo encontrado em hábito como homem, humilhou-se feito obediente até (a) morte, morte, porém de cruz (8). Humiliavit semet ipsum factus oboediens usque ad mortem mortem autem crucis. HÁBITO [ Schëma <4976>=habitus]: Em grego significa figura, modo de se comportar, maneira de proceder ou viver. A Vulgata tem a primeira parte como porção do versículo anterior [habitus inventus ut homo]. A ideia subsistente é que Cristo se comportou como um homem comum, sem que a diferença com a divindade pudesse ser vista pelos contemporâneos. HUMILHOU-SE [Etapeinösuin <5913>=humiliavit]: de Tapeinoö que significa humilhar, rebaixar, degradar, abater, abaixar. A ideia é que Cristo desceu até uma posição humilde e humilhante, pois o eauton designa que ele quis tomar essa postura voluntariamente como forma que o rebaixou até uma escravidão total como foi sua obediência até a morte. Porém não uma morte natural, que já seria aceitar um fim indigno de um Deus, mas uma morte de CRUZ [Staurou<4716>=crucis]. Hoje só temos uma visão bastante desluzida do que era a morte de cruz. Só falamos em sofrimentos físicos, mas não pensamos na humilhação que a acompanhava. A cruz era degradante e infamante. Era tratar o homem como um escravo que não tivesse outro direito a não ser o aviltamento e o desprezo. Vejamos o que Pedro pensava da cruz: Senhor, não acontecerá isso a ti (Mt 16, 22). E sobre a humilhação temos as palavras de Jesus: Quando envelheceres estenderás tuas mãos e um outro te cingirá e te conduzirá para onde não quiseres (Jo 21, 18) que parece que o tratará como um animal, mas que era o modo de como os condenados eram conduzidos entre os abusos da multidão apos ouvir: I, lictor, obnubilato capite,  duc illum in crucem (Vai lictor, coberta a cabeça, conduze-o à cruz). A cruz era a mais cruel e mais humilhante morte que um homem podia pensar e a essa morte se submeteu voluntariamente Jesus de Nazaré. Dou minha vida, pois ninguém a tira de mim. Eu conheço o Pai e dou a minha vida pelas minhas ovelhas (Jo 10, 15) e é por isso que meu Pai me ama porque eu dou a minha vida (idem 17) ninguém a tira de mim, mas eu a entrego por mim mesmo… este é o mandato que eu recebi de meu Pai (idem 18). Em tudo isso encontramos a obediência de Cristo que resulta em humilhação e morte de cruz.

EXALTAÇÃO: Por isso, também [o] Deus o exaltou e o presenteou com um nome sobre todo nome (9). Propter quod et Deus illum exaltavit et donavit illi nomen super omne nomen. Neste versículo temos a reação do Pai que premeia a obediência do Filho. A EXALTAÇÃO [Yperypsösen <5251>=exaltavit] que composto de Uyper [sobre] e Ypsoö [exaltar]; na realidade significa, pois, exaltar sobremaneira. E Paulo explica, dizendo que lhe concedeu um NOME [Onoma<3686>=nomen] no lugar da pessoa. Entre os hebreus, o nome próprio estava relacionado com Javeh, e era uma espécie de qualificação ou destino, de modo que temos vários casos em que Jahveh, ou o anjo do mesmo, comuta o nome: Jacó em Ishrael [homem que luta com Deus] é clássico do AT e Simão em Kefas [rocha] do NT. Em ambos os casos o nome determina a função escolhida por Deus, que destina uma pessoa para um específico fim. Qual é o nome que recebeu o homem de Nazare? Paulo o declara no versículo seguinte Iësous (grego) Iesus (latim) ou Jehoshua [Jahveh salva] do hebraico, que, por sua vez, designa o Josué do AT que foi o sucessor de Moisés. De fato, segundo Êx 17, 9, em hebraico YeHOSHUA[<0391>=Josué] e em grego IËSOUS. O nome era frequente na época, pois Flávio Josefo menciona 20 personagens com esse nome. Em aramaico, e este era o idioma de Jesus, soava como Jeshua. Marcos e Lucas escrevem Iësous ho Nazarënos; e Mateus e João, Jësous ho Nazöraios, fórmula que aparece também nos Atos. Em Nazarënos temos referência ao lugar de residência desde a infânia e em Nazöraios um composto das palavras neser[retonho] e semah [germe] tendo, segundo esta interpretação, um caráter messiânico ou o de Nazareo que significa separado para Deus, como em Nm 6. O nome de Jesus é considerado de tal forma único, na atualidade, que não é usado para nome próprio no Brasil. Excepcionalmente ele é comum, por exemplo, na Espanha.

O NOME: Para que no nome de Jesus todo joelho se dobre sobre os céus e sobre a terra e inferiores da terra (10). Ut in nomine Iesu omne genu flectat caelestium et terrestrium et infernorum. No NOME DE JESUS relembra o que Paulo dizia: Se confessares em tua boca que Jesus é Senhor e se em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo (Rm 10, 9). Não é, pois, um nome mágico, que pronunciado de imediato realize a obra de salvação, já que deve ser pronunciado desde a fé, aceitando seu senhorio; é, portanto, essa aceitação que Paulo chama de pistis e que em grego podemos traduzir por entrega fiel e confiada, a que provoca a ação salvífica por parte de Deus. JOELHO [Gonu<1119>=genu]: está unido à palavra DOBRAR [Kamptö <2578>=flectare] que como frase significa venerar e em termos religiosos adorar como diz Paulo em Rm 14, 11: Como está escrito: por minha vida, diz o Senhor, diante de mim se dobrará todo joelho e toda língua dará louvores a Deus. Paulo cita Isaías 45, 23. E esta citação coloca Jesus, o Cristo, a par de Jahveh, sendo agora o Deus do NT. CÉUS, TERRA E INFERIORES: Propriamente sobre os céus, sobre as terras e inferiores da terra. Na concepção do mundo tripartido da época, o mundo era como uma casa de três andares: o inferior era o submundo ou o Katachthonios [<2709>=inferior] onde se encontrava o abismo. Katachthonios é adjetivo e significa subterrâneo, por baixo da terra, que os romanos chamavam de infernos. A palavra é composta de Kata [embaixo] e Chthön [terra]. O adjetivo se torna neutro nesta passagem e plural, indicando a totalidade dos diversos lugares inferiores ou infernos. Era o lugar em que o maligno [Satanás] tinha seu domínio como príncipe [não senhor]. No segundo andar, temos a terra e sobre ela habitavam os homens e nos lugares inóspitos [éremoi] assim como no ar, estavam os demônios, em geral espíritos akathartoi ou impuros. Finalmente, os céus que eram habitados pelos anjos e era o domínio absoluto de Deus que tinha como príncipe Miguel. Dentre os céus o mais alto [ypsistos] era o terceiro em que estava a morada de Deus (2 Cor 12, 2). Os anjos cantam glória a Deus nos mais altos céus (Lc 2, 14). Com esta frase Paulo quer dizer duas coisas: 1º) Que Jesus deve ser adorado como Deus. 2º) Que a criação está a Ele submetida em sua totalidade.

A CONFISSÃO: E toda língua confesse que Senhor (é) Jesus Cristo para glória de Deus Pai (11). Et omnis lingua confiteatur quia Dominus Iesus Christus in gloria est Dei Patris. CONFESSE [Exomologësetai <1843>=confiteatur]: A confissão é obrigatória como disse Jesus: A quem me confesse diante dos homens o confessarei também eu diante de meu Pai celeste (Mt 10, 32), que com sua parte negativa indica uma necessidade absoluta em ordem à salvação. O verbo Exomologëö [<1843>=confiteor] tem o significado de confessar, proclamar, declarar em geral publicamente uma verdade, anteriormente mais ou menos oculta. Pode ser um pecado, um delito, ou uma verdade religiosa. SENHOR: [Kyrios <2952>=dominus]: em sentido geral, significa dono; em sentido restrito e religioso, é próprio de Deus, que logo foi restringido a Cristo. A proclamação que é exigida pelo sacrifício da cruz é que Cristo é agora o verdadeiro Deus dos homens. E isso para GLÓRIA [Doxa<1391>=gloria] do Pai. Ou seja, que nesta proclamação de Cristo como Senhor, estamos dando um grito de loa e louvor à sabedoria e ao amor de Deus como Pai: Pai de Jesus e Pai de todos os homens que Jesus salvou por sua expiação no sacrifício de sua morte na cruz.

EVANGELHO (Mt 21, 1-11)

DOMINGO DE RAMOS  – ENTRADA TRIUNFAL COMO MESSIAS

(Pe Ignacio, dos padres escolápios)

QUESTÃO HISTÓRICA: Hoje estamos mais interessados em saber os fatos como história muito mais do que em tirar conclusões éticas ou dogmáticas das narrações evangélicas. Tudo o contrário dos primeiros cristãos para os quais os evangelhos eram uma Boa Nova como uma espécie de catecismo a ser norma de vida. A História nos demanda saber quando, onde e como. Ao responder  estas perguntas, com os reduzidos meios de que dispomos e com a própria limitação pessoal, dedicamos esta primeira parte.

O TEMPO: Jesus acabava de ressuscitar Lázaro. A Páscoa estava próxima (Jo 11, 55). E seis dias antes da Páscoa Jesus janta em Betânia (Jo 12, 1) como conviva na casa de Simão o leproso (Mc 11,3 e Mt 26, 6) que poderia ser a casa de Marta segundo Lc 10, 38. No dia seguinte (Jo 12, 12) foi quando Jesus entrou triunfante em Jerusalém nas circunstâncias que lemos no evangelho de hoje. Era domingo, esse dia seguinte que coincide com a data do banquete que geralmente celebrava-se ao entrar o sábado, ou seja, na noite do que hoje chamamos de sexta-feira. Descansa, pois, no sábado e cedo de manhã inicia a curta viagem até Jerusalém distante de Betânia 2,8 Km.

O LUGAR: O início da multitudinária procissão foi a aldeia ou vilarejo de Betfagé. Jesus sai de Betânia (cuja descrição foi dada no comentário do domingo anterior) e enfrenta Betfagé que significa casa dos figos primários [brevas em castelhano]. Todos os evangelhos falam de Betfagé como kome, nome que significa a vila rural onde os camponeses têm suas casa e descansam após o trabalho do dia. É diferente da polis, cidade com muros e mercado próprio. Poderíamos traduzir kome por vilarejo. Segundo o Talmud, a aldeia estava tão perto de Jerusalém que era considerada como um subúrbio de Jerusalém. Também a palavra kome pode significar subúrbio. Sua população era sacerdotal. Estava provavelmente situada entre Betânia e Jerusalém na ladeira sul-oriental do pequeno monte das Oliveiras e constituía a passagem obrigatória dos que peregrinavam desde Jericó para celebrar os dias festivos em Jerusalém. Desde Betfagé até a porta oriental de Jerusalém havia menos de mil metros de distância ou menos de uma milha para que os sacerdotes pudessem descansar nos dias de sábado sem infringir a Mishná que mandava que as distâncias a serem percorridas tivessem menos de dois mil côvados (mil metros) e, em circunstâncias especiais, duplicava-se a distância. Era uma estrada que passava por uma ponte sobre o córrego do Cedrão até a porta chamada dos cavalos nos tempos de Neemias e que mais tarde recebeu o nome de porta dourada. Antes da ponte, na mão direita do caminho, enquanto seguimos em direção a Jerusalém, está o horto de Getsêmani. O tempo, pois, de apoteose de Jesus seria de 15 a 20 minutos de aclamações,  à parte os ouvidos dentro do templo.

COMO? Temos quatro descrições do evento que coincidem essencialmente, mas que tem como todo relato diferenças segundo as diversas testemunhas do sucesso. As discrepâncias mais óbvias são sobre a montaria: Segundo Mateus, que sempre parece discrepar dos outros, eram duas as montarias: Uma a mãe [ónos em grego que tanto poderia significar jumento como jumenta], mas que o grego distingue ao descrever a cria como estando atada e com ela [meta autés] o jumentinho [pôlos grego] que os ingleses traduzem por colt e que bem podemos traduzir por potro ou poldro porque ainda não tinha sido montado (Mc 11, 2), pois estava junto à mãe o qual indica ser um jumentinho; era o onarion [literalmente jumentinho] de que fala o quarto evangelista. Estavam atados, pelo menos sua mãe à porta de fora do cruzamento do caminho. O latim diz ante januam foris in vibio Mateus tem intenção de destacar o detalhe da jumenta por trazer logo a profecia de Zacarias. Mas é improvável que Jesus montasse em ambos como indica o mesmo evangelista na continuação, dizendo que os discípulos puseram as vestes sobre eles [autôn] (mãe e cria) e que Jesus sentou-se encima delas [autôn] (sobre as vestes) (21,6). Porque o genitivo do plural é autôn para os três gêneros. Mateus é o mestre do duplicado: dois os cegos que o seguiam pedindo a cura (9, 27), dois os cegos curados em Jericó, dois foram os jumentos em que Jesus montou (Mt 21, 2) e os dois malfeitores –não um só – blasfemavam de Jesus na cruz (Mt 27, 44) e duas as mulheres às quais viram Jesus ressuscitado (Mt 28, 9). É possível que levado pela ideia de que unicamente duas testemunhas podiam ser válidas para testemunhar um fato. Consequentemente podemos dizer que, salvo caso de uma má interpretação do aramaico original feita pela tradição, existe um pequeno mistério ainda não resolvido no texto de Mateus que usa o dual no lugar do singular em determinados casos. Sem dúvida que foi o jumentinho o animal usado pelo Mestre e que a jumenta ficou no lugar. S. Remígio, bispo desde 22 anos de idade até os 72 (+530), que converteu e batizou Clodoveu a quem no momento do batismo disse: terás que queimar o que adoraste e adorar o que queimaste, escreve que lhe parece bem que o Senhor montasse em ambos os animais. Como sempre nestas minúcias, Mateus se dirige pelo afã catequético e metódico didático, conformando-se o melhor possível com as antigas profecias.

AS PROFECIAS: Temos duas profecias: uma de Isaías e outra de Zacarias. Vejamos a primeira: Eis que o Senhor fez ouvir até as extremidades da terra estas palavras: Dizei à filha de Sião: Eis que vem o teu Salvador, vem com ele a sua recompensa, e diante dele, o seu galardão (62, 11). Destas palavras deduzimos que o Messias devia entrar em Jerusalém e que a obra de salvação devia ser feita na cidade que o profeta chama filha de Sião. A outra profecia era de Zacarias: Alegra-te muito, ó filha de Sião; exulta, ó filha de Jerusalém: eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento, e num jumentinho, cria de jumenta (9, 9). Parecem dois animais diferentes; por isso temos colocado o e em ressalte. Esta tradução está confirmada no latim da vulgata: ascendens super asinum et super pullum, filium asinae. Sem dúvida que Mateus fez uma interpretação sui generis, duplicando os animais e fazendo com que Jesus montasse ao mesmo tempo sobre os dois animais, o qual não parece provável. É interessante saber que os setenta oferecem uma tradução diferente do texto hebraico: Montado sobre uma besta de carga e potro [jumento] novo. O e une um mesmo animal com duas qualidades diferentes. Mais: como veremos no parágrafo seguinte o animal  em que montou Jesus devia ser novinho, sem conhecer cavaleiro que o montara anteriormente. Cremos, pois que era só um animal o que escolheram os discípulos, ou seja, um potro novo sobre o qual nunca ainda ninguém tinha montado. Pois este inciso de nunca ter servido de montaria (2) era para preservar a divindade de Jesus, pois no AT só podiam ser oferecidos ao sacrifício animais que não tivessem sofrido jugo. Por outra parte os rabinos diziam que se Israel era puro, o Messias viria sobre as nuvens, conforme Dn 7, 13; mas no caso contrário, sobre um jumento, segundo Zacarias 9,9. E realmente a profecia se cumpre nesse dia de um modo completo. Se o jumento foi em tempos primitivos animal da cavalaria real ou pelo menos entre os nobres e dignatários como em Gn 22, 3 ou Jz 3, 10, nos tempos de Jesus era um animal humilde, próprio dos pobres. O quarto evangelista faz um comentário que abunda neste modo de pensar da humildade da cavalgadura: isto não o entenderam os discípulos; só quando Jesus foi glorificado [após sua ressurreição e ascensão] entenderam o que estava escrito e compreenderam o que eles tinham feito nesse dia (Jo 12, 16). Segundo 1 Rs 1, 33-35, a cerimônia em que Salomão foi entronizado realizou-se após cavalgar sobre um mulo [pered em hebraico e hemionos em grego]. A palavra grega indica seguramente a origem do animal, um meio jumento ou híbrido, seria a tradução, que no Israel pré-bíblico não era permitido procriar, mas parece que era animal de cavalgadura nos tempos de Salomão. Este, rei pacífico por excelência [como indica até seu nome] era o tipo de Jesus que entrava em Jerusalém como tal rei e que seria de um modo especial coroado na cruz poucos dias depois.

A PROCISSÃO: O que hoje festivamente celebramos, tinha na tradição judaica uma semelhança muito relevante. Existia uma festa em que o Hoshanna era o grito de resposta e júbilo acompanhado da agitação de ramos de salgueiro, mirto [ou murta] e palmeira. Era a festa das cabanas ou dos sukkoth (Lv 23, 40): Nos primeiros dias vos munireis de belos frutos, de folhas de palmeiras, de ramos de árvores frondosas  ou de salgueiros das torrentes. Segundo Flávio Josefo, os israelitas levavam na mão esquerda uma toranja [que chamavam de etrog e na mão direita uma palma e outros dois ramos, um de salgueiro e outro de mirto; os três atados com cordão especial. Segundo a Mishnná, o ramalhete era formado por quatro galhos: palmeira[tamar], cidra[strog], mirto[hadas] e salgueiro[aravá]. Significavam as quatro grandes categorias numa fraternidade entre os homens. O Talmud vê na palmeira o símbolo da força religiosa, no mirto a inocência, no salgueiro a  modéstia e no etrog a amenidade e o amor ao próximo. Primeiramente eram atados com um laço de palmeira e logo com um cordão de ouro pelo menos pelos habitantes de Jerusalém. No templo os judeus acompanhavam o canto do Grande Hallel ou seja os salmos 113-118 e agitavam os ramos no serviço matutino, acompanhando o canto, em especial os versículos 25-29 do salmo 118 que diziam: 25 Ah Javé, dá-nos a salvação! Dá-nos a vitória Javé! 26 Bendito o que vem em nome de Javé! Da casa de Javé nós vos abençoamos 27 Javé é Deus: ele nos ilumina! Formai a procissão com ramos até aos ângulos do altar 28 Tu és o meu Deus, eu te celebro, meu Deus eu te exalto; eu te celebro porque me ouviste e foste a minha salvação! 29 Celebrai a Javé porque ele é bom, porque o seu amor é para sempre. O ramalhete era agitado, especialmente no versículo 25 que em hebraico dizia mais ou menos:ANÁ [Ah!] JAVÉ [Senhor] HOSHANNÁ [salva-nos te pedimos].

OS MANTOS: O costume dos mantos para a passagem pelo que hoje chamaríamos tapete vermelho de um eleito como rei é visto pela primeira vez em 2 Rs 9, 13, quando da proclamação de Jeú como rei de Israel. Cada um dos chefes do exército tomou seu manto e lançando-o aos seus pés, sobre os degraus e ao som da trompa, clamaram: ¨Jeú é rei¨. Os romanos relatam o caso de Cato o de Útica, em que os soldados espalharam os mantos para que ele andasse sobre eles como num tapete. Talvez seja isto uma imagem que reflita o que acontecia com os vencidos sobre cujos corpos deitados na terra passava o exército vencedor humilhando-os como escravos submetidos à nova autoridade imposta pela vitória das armas. Mas voltando ao nosso caso: onde estenderam os judeus os mantos diante da passagem de Jesus? Até agora tínhamos a ideia de que era no meio do caminho; mas parece que segundo o costume da grande festa do Sukoth, era ao lado do mesmo, como para assinalar a rota seguida, tal como se estendiam os vestidos e galhos com frutas como adorno ao redor das cabanas e como hoje se estendem nas sacadas e janelas os tapetes e bandeiras para as procissões do Corpus Christi ou Semana Santa. A palavra usada pelos evangelistas é strônnymi [estender, desdobrar, desfraldar, expandir, ou adornar]. Tomando os primeiros significados o latim traduz por straverunt [do verbo sternare] que significa estender no chão, mas também desfraldar. Lucas é quem diz mais claramente que era sob o caminho. Marcos dirá que era para o caminho. E Mateus  no caminho, dependendo das diversas preposições usadas. Os mantos sobre o jumento foram postos sobre ou instalados. A solução talvez seja uma intermediária: mantos no meio do caminho e galhos nas margens do mesmo. Sobre os galhos temos o testemunho de 1 Mc 13, 51 o relato seguinte: quando Simão Macabeu expulsou os pagãos da cidade de Jerusalém, entraram os israelitas no meio das aclamações e palmas [galhos, não houve som com as mãos], ao som das liras e dos címbalos [pratos], dos hinos e dos cantos. Um outro relato interessante porque nos dá uma ideia do que aconteceu com Jesus no domingo de Ramos era uma imitação do que sucedia como  Hag[festa] ou seja a grande festa das cabanas. Em 2 Mc 10, 6 lemos que os israelitas celebravam com transportes de alegria os oito dias de festa da purificação do templo (Jesus o purificaria imediatamente) à maneira das tendas…É por isso que levando tirsos[o bastão de farra, próprio do deus Baco{eram como os carnavais nossos}], ramos verdes e palmas elevaram hinos àquele que levava a bom termo a purificação do seu lugar santo.

HOSHANNÁ: O vocabulário hebraico a define como indicando que existia uma poesia litúrgica que termina com esta palavra como estribilho, significando ajuda-nos ó Deus; e acrescenta: reza-se na festa de Sukoth. Outra tradução seria: salva-nos. Vos pedimos. É uma palavra composta do verbo yashá[ salvar]  e da posposição nah [vos pedimos; o please inglês]. Parece que os israelitas do tempo de Jesus distinguiam quatro tipos de Hoshanna. 1o) O Hoshanna do Sábado: era uma série de súplicas, elogiando o sábado e dando graças a Javé por esse dia. Todas as preces concluíam com a palavra Hoshanna  e várias petições para que Deus os salvasse como fez em outros tempos. No final de cada petição recitava-se, pois,  a palavra Hoshanna. 2o) O Hoshanna do grande Hoshanna: era durante as festas das cabanas ou das tendas [sukoth em hebraico]. No sétimo dia desta festa cantava-se o grande Hoshanna depois que os sacerdotes, portando ramos de salgueiro, rodeassem o altar sete vezes; ao cantar o Hoshanna, o povo circundante agitava os galhos que segurava na mão. 3o) Hoshanna  como nome do conjunto de três ramúsculos: o de cidra, o de salgueiro e o de mirto, unidos por um cordão. A palma sozinha recebia o nome de Lulab, que outros dão ao conjunto dos quatro ramos, quando a palma estava acompanhava dos três anteriores. 4o) O significado de Hoshanna como grito de alegria seria o nosso viva ou o long life dos ingleses.

AS ACLAMAÇÕES: Hoshanna [viva! ou long life!] ao filho de Davi. Bendito o que vem em nome do Senhor. Hoshanna nas alturas mais elevadas [nos céus mais altos] (Mt). Hoshanna! Bendito o que vem em nome do Senhor. Bendito o reino que vem de nosso pai Davi! Hosanna nos mais altos céus! (Mc). Bendito o rei que vem em nome do Senhor. Paz no céu e glória no mais alto (Lc). Hoshanna! Bendito o que vem em nome do senhor, o rei de Israel (Jo). Do exame dos textos deduzimos que existe uma clara alusão ao reino. Jesus o tinha proclamado de modo contínuo na Galileia. A maioria dos peregrinos que o acompanhavam era dessa região. Jesus subia ao templo e este era o momento esperado por todos para iniciar o reinado. Daí que claramente se adverte nos gritos de entusiasmo da multidão a referência a esse reino na pessoa de Jesus: filho de Davi, segundo Mateus, em Marcos é o reino que está aparecendo. Lucas claramente aponta ao rei que esta vindo em nome do Senhor [Deus] e que também João designa como rei de todo Israel. Era, pois, a aclamação do povo, pelo menos dos galiléus, que em Jesus viam o Messias. Lucas repete o desejo dos anjos do início de seu evangelho: Paz e glória só que desta vez a paz será debitada ao céu e a glória no mais alto [dos mesmos].

QUEM É ESTE? Segundo Mateus, parece que Jesus era um desconhecido em Jerusalém, pois ao entrar nela a cidade se agitou perguntando: quem é este? A resposta da multidão [peregrinos do norte] foi: este é o profeta Jesus originário de Nazaré da Galileia. Marcos dirá que entrou no templo e tudo observou, e como fosse tarde voltou para Betânia. Lucas confirma Marcos ao dizer que Jesus esteve no templo e começou a expulsar os vendedores. Mas este segundo plano da expulsão dos comerciantes está fora do evangelho de hoje. Jesus mesmo tinha dado a si mesmo o título de profeta ao afirmar na sinagoga de Nazaré: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria (Lc 4, 24). Jesus era, pois, no mínimo o profeta esperado nos tempos messiânicos.

PISTAS: 1) A entrada triunfal em Jerusalém é narrada nos quatro evangelhos. Sinal de que foi um fato marcante na primitiva igreja. Como temos anteriormente explicado era entrada de um rei pacífico na sua cidade. Jesus mesmo o declarou: Se neste dia tu também conhecesses a mensagem da paz! (Lc 19, 41). Porque esta sua entrada foi rejeitada por atos posteriores dos jerosolimitanos [os judeus]: não temos mais rei que o César (Jo 19, 15). A entrada de Jesus como rei é típica de quem o recebe pela primeira vez como discípulo. Mas chega logo a hora difícil do compromisso, e muitas vezes por motivos de considerações puramente humanas [ambições, riquezas, paixões, discrepâncias modernas que causam covardia e vergonha] chegamos ao que Paulo chama de inimigos da cruz de Cristo (Fp 3, 18) a uma sexta feira santa em que renegamos dele ou covardemente o abandonamos.

2) Na maioria das atuações de nossa vida será a riqueza, o poder, o aplauso do público o verdadeiro rei a quem servimos e a  causa última de nossa conduta. Tememos discrepar da opinião pública por covardia ou vergonha. Não queremos perder o passo da modernidade. Por isso somos tão medíocres que mais parecemos indiferentes ou contrários ao reino do que súditos. Terminamos como carga morta dentro da igreja.

3) Deus sempre escolhe antes da cruz um pequeno triunfo para que não nos desanimemos com  os dias de tempestade futuros porque podemos recordar a bonança dos dias felizes. Assim aconteceu com Cristo e assim –diz S. Teresa- Deus prepara as almas escolhidas para os tempos de tentação que inevitavelmente acompanham os verdadeiros discípulos.

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