Homilia do Cardeal Joseph Ratzinger em uma ordenação diaconal em München, janeiro de 1980.
Caros candidatos à ordenação! Caros irmãos e irmãs no Senhor!
É o mesmo evangelista João, com as primeiras palavras do Evangelho de hoje, a nos oferecer a chave para entender o misterioso relato das núpcias de Canaã. Inicia, de fato, dizendo que aconteceram “no terceiro dia”. Os conhecedores da Terra Santa dizem que lá, segundo um costume que pode chegar à época de Jesus, o dia habitualmente escolhido para as núpcias era o terceiro dia da semana, a terça-feira, assim como para nós geralmente é o sábado. E assim essa notícia nos diz antes de tudo algo de muito comum: como de costume, as núpcias aconteceram no terceiro dia.
Todavia, em João, até mesmo as coisas habituais e simplesmente humanas deixam transparecer o que há de mais elevado, o mistério de Deus e de Jesus Cristo. E assim as palavras sobre esse usual “terceiro dia” são esclarecedoras, levando-nos antes de tudo à Antiga Aliança, onde, sobretudo na relação do Sinai, o terceiro dia é o dia da teofania, do manifestar-se de Deus, do ingresso da sua glória na história dos homens. E em segundo lugar se começa a entrever a luz do Mistério Pascal, que a cristandade, desde o tempo da Igreja primitiva, confessa com essas palavras: “no terceiro dia ressuscitou dos mortos”. A cristandade está persuadida de que só com o Mistério Pascal ocorreu a autêntica, verdadeira e própria teofania de Deus neste mundo, o ingresso da Sua potência e da Sua glória: a Sexta-feira Santa, com a humildade do seu amor que se esquece de si até o abandono total; e o Domingo de Páscoa, com a potência deste amor que destroça as portas da morte e apaga, assim, a lei primária deste mundo, a lei do Stirb und Werde (a “morte como criação” de Goethe), por meio da potência de uma vida não voltada para a morte. O primeiro sinal de Jesus aponta para este Mistério Pascal. Indica o sinal por excelência, que ao mesmo tempo é uma realidade nova que transforma o mundo.
Com este episódio e com a imagem que ele nos oferece, João nos põe diante daquilo que Marcos, ao início do seu Evangelho, sintetiza com poucas palavras, quando diz: “O tempo se completou e o Reino de Deus está próximo: convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 14 s.). Núpcias, comida e vinho são sinais do Mistério Pascal e, por isso, sinais do Reino de Deus. As núpcias e a comida significam que o mundo está em festa, que vem abaixo a cotidianidade cinza. Ocorre a irrupção de um amor que renova as barreiras entre os homens e libera o caminho para uma nova liberdade, para uma nova forma de estar juntos. E o vinho significa a superação das mesmas barreiras do humano, a remoção das barreiras existentes entre o homem e o mundo, assim como indica a riqueza e o refinamento dos dons. Em tudo isso se percebe que haverá um dia a festa de Deus com este mundo.
Na descrição do episódio do Evangelho de hoje é importante também um outro sinal: a abundância. Segundo o que nos indica João, Jesus colocou à disposição dos convidados entre quinhentos e setecentos litros de vinho; portanto, muito mais do que podia ser necessário naquele ponto avançado da festa. Entretanto, exatamente nisto se faz evidente a lei de Deus, a lei do amor: abundância que não tem medida, que não faz cálculos e não se pergunta ainda por quanto seria necessário, mas doa com as mãos cheias, sem perguntar, tornando assim evidente a grandeza, a liberdade festiva do amor. A superabundância é a lei de Deus, a lei do amor e aquela da Nova Aliança. A Nova Aliança inicia só onde cresce uma disposição parecida, que não faz cálculos, não mede, não pesa dizendo: “o que devo fazer ainda para que seja suficiente? ”.
O primeiro sinal de Jesus, as núpcias do terceiro dia, prefigura o último sinal, o sinal por excelência, o Mistério Pascal, o Reino de Deus. Mas para que possamos penetrar a fundo neste texto, é necessário considerar ainda um par de características surpreendentes desse episódio. Em resposta à sua súplica, num primeiro momento, Maria obtém uma brusca rejeição: “Mulher, o que quer de mim? Ainda não chegou minha hora”. A hora de Jesus é a Cruz. Somente com a Cruz pode iniciar a Ressurreição, a Páscoa; e somente com a Páscoa a Nova Aliança. Ele não pode acelerar, ser o artífice desta hora; não pode ser por Si o artífice da Cruz, é necessário percorrer a via até ela. Ele se encontra somente no início da Sua estrada, a Sua obra apenas começou. Por isso, nesta hora, conta unicamente a vontade do Pai e não a vontade da Mãe. Entretanto, aqui ocorre algo de singular: Maria, depois daquela rejeição, continua como se nada tivesse ocorrido. Aconselha, sugere aos servidores de atender as palavras de Jesus; e assim Ele realiza o milagre. Certo, não pode criar Ele mesmo a sua hora, aquela hora deve chegar; a estrada deve ser percorrida, a vontade do Pai deve ser realizada. De qualquer modo, a súplica da Mãe não deixa de ser escutada. Ele antecipa o mistério da Sua hora. Ele o torna presente no sinal daquele dom de vinho.
Aqui Maria, como sempre no Evangelho de João, representa a Igreja. E a Igreja se encontra dentro das tribulações deste tempo, um tempo em que termina sempre o vinho, frequentemente até mesmo a água, até o ponto de pensarmos que a história não pode continuar. E a partir destas tribulações, a Igreja, implorando, pede-lhe a Sua hora: venha a nós o vosso Reino! Mas não está no nosso poder provocar aquela hora; todavia, o grito não deixa de ser escutado. Ainda que a hora não tenha chegado, já agora Ele nos doa o mistério do Seu amor; já agora, no Sacramento da Igreja e no Sacramento esponsal da Eucaristia, nos doa o que no fundo constitui o Seu Reino. Ele se doa a nós e assim faz resplandecer no mundo aquele amor que nos dá a força de prosseguir de modo sempre novo, de atravessar, de superar sempre o tempo e de conduzi-lo a Ele.
Maria representa a Igreja. Junto a ela, muito próximos a ela e também muito próximos a Cristo, estão neste Evangelho os servidores, que duas vezes o texto grego chama diakonoi, diáconos. Por isso o Evangelho nos fala de modo absolutamente direto, se dirige propriamente a nós. Estes diáconos seguem o conselho de Maria. Estão prontos para seguir o que ela diz. Ela, porém, os direciona para as palavras de Jesus Cristo. Jesus lhes dá a tarefa de retirar a água, de preparar os elementos para o milagre. No fundo, eles devem simplesmente ajudá-lo, sobretudo, num gesto de humana bondade, naquela disponibilidade ordinária – nada mais além de ordinária – que vem em socorro daquelas pessoas no momento em que a festa delas risca de falir e transformar-se em tristeza. Mas no servir à bondade de Jesus, eles contribuem a tornar presente a Sua hora. Esta bondade, à qual cooperam, torna-se para eles Sacramento do Reino.
Há ainda algo de significativo e de importante. O mestre da mesa, assim está escrito, não sabia de onde procedia o vinho. Mas os servidores, os diáconos, o sabiam. No cooperar, eles estavam participando do ato de amor de Jesus. E como cooperadores e participantes do ato de amor, eles tinham se tornado participantes do conhecimento de Cristo. O especialista não podia saber, mas o cooperar e o participar no ato de amor tinha aberto os olhos dos servidores e tinha dado a eles o conhecimento. E enquanto participantes no conhecimento, estavam chamados a se tornar crentes e assim, de novo, testemunhas benévolas do amor de Jesus Cristo.
Na parte da narração que descreve o lugar dos diáconos no mistério de Canaã está, no fundo, descrito plenamente o significado do ministério diaconal. Esse significa antes de tudo: estar prontos para o chamado da Igreja. Estar à disposição da sua palavra. Mas a Igreja se introduz na palavra e no mandato de Jesus Cristo. E a palavra de Jesus Cristo exige que nos tornemos servidores da misericórdia. Servidores do grande mistério do seu Reino, e exatamente assim servidores para o trabalho cotidiano do seu amor.
Desde os tempos mais antigos, o ministério diaconal na Igreja era, em modo particular, serviço ao cálice. O cálice encarna o mais profundo mistério da Eucaristia, o sangue que Jesus derramou por nós. E com isso Ele envia propriamente ao mais concreto mistério da fé, ao se tornar na nossa vida transparente para o amor de Jesus Cristo. Onde este sinal não é apresentado, também o mysterium, o Sacramento permanece mudo. Em cada coisa somos chamados a amar, a sofrer e então sempre mais a conhecer juntos com o Senhor.
Permiti-me, caros candidatos à ordenação, de acrescentar uma palavra toda pessoal. Como diáconos, somos servidores dos mistérios de Deus. Mas, ao mesmo tempo, somos e continuamos a ser também comuns comensais, ou talvez donos de casa, como eram estes dois esposos de Canaã. E a quem quer que ofereçamos hospitalidade, ao menos uma vez acontece o que aconteceu com aqueles jovens esposos: vem a faltar o vinho. Tudo o que colocamos à disposição no que diz respeito a conhecimentos, a propósitos, a práticas, a força de vontade – vinho nosso para a comunidade recolhida para a festa que pretendemos celebrar para o Senhor – não basta. E então pode acontecer que vá embora no ressentimento e se torne acusadores da Igreja. Mas pode também ocorrer que, propriamente e somente assim, encontremos de verdade a hora de Jesus Cristo, podendo experimentar já agora a Sua presença. Isso ocorre quando temos a paciência e a humildade de Maria. Porque no fundo ela não dirigiu nenhuma súplica a Jesus. Apenas lhe disse o que acontecia e colocou tudo nas Suas mãos, sabendo que se a coisa está nas suas mãos, de qualquer modo acabará bem, ainda que a resposta de Jesus seja diversa das minhas expectativas, ainda que eu não possa conhecer antes esta resposta. A rejeição mesma não conduz a falta de confiança, mas à certeza pacata, confidente e esperançosa que também a Sua rejeição é sempre amor. E assim, através da aceitação deste insucesso e rejeição, ela obteve a presença da sua hora, o paradoxo pelo qual, ainda que a vontade do Pai não tenha ainda estabelecido a hora, o pedido da Mãe é escutado. Se nós procedemos assim, na paciência e na confiança, então poderemos colocar-nos à disposição. E assim hoje desejamos orar uns pelos outros e especialmente por vocês, para que o Senhor nos doe aquela humildade, aquela paciência e alegria que fazem tornar verdadeiramente servidores da Sua hora.
Fonte: J. RATZINGER, Opera Omnia, vol. XII: Annunciatori della Parola e Servitori della vostra gioia“, Libreria editrice Vaticana, pp. 706-711. Tradução: Pe. Anderson Alves.