Abraão jamais existiu?

Em síntese: A quem nega a existência de Abraão, como faz  Vinicius Romanini em SUPERINTERESSANTE de julho 2002, se pode apresentar a obra de Walter Vogel, professor universitário no Canadá, que, com mais autoridade do que o jornalista, trata do assunto, fornecendo dados lingüísticos e arqueológicos que abonam a historicidade do Patriarca. O cientista aceita haver anacronismos no relato bíblico, de tal monta, porém, que não afetam o valor historiográfico das páginas bíblicas.

A revista SUPERINTERESSANTE de julho 2002 nega a existência do Patriarca Abraão nos seguintes termos:

“Na viagem para Canaã Abraão e seus filhos comerciavam em caravanas de camelos. Mas não há registros de migrações de Ur em direção a Canaã que justifiquem o relato bíblico, naquela época, os camelos ainda não haviam sido domesticados… Hoje a análise filológica dos textos indica que Abraão foi introduzido na Torá entre os séculos VIII e VII a.C. (mais de mil anos após a suposta viagem)” (pp. 43 e 46).

A afirmação do jornalista causou surpresa e curiosidade. Deve-se-lhe responder citando a obra de um professor  universitário, dotado de autoridade de um profissional para falar do assunto. É o que faremos a seguir.

FALE O PROF. WALTER VOGELS

Já em PR 462/2000, pp. 508-515 foi apresentado o Prof. Walter Vogels, que ensina Exegese do Antigo Testamento na Universidade Saint Paul de Ottawa (Canadá). Publicou um livro cujo título pode causar reserva à primeira vista: ABRAÃO E SUA LENDA. Gn 12, 1-25, 11.¹ Lenda (légende, original francês) é tomada no sentido etimológico; em latim, legenda significa as coisas que devem ser lidas ou as tradições escritas, sem algum juízo de valor a respeito. O autor se concentra no ciclo do patriarca Abraão, que ocupa a secção de  Gn 12, 1-25, 11.

W. Vogels considera as hipóteses dos que negam a historicidade de Abraão e dos patriarcas bíblicos em geral. Todavia na base de bons argumentos dissipa-se e afirma a credibilidade das secções em pauta, admitindo pormenores acrescentados à história real no decorrer dos séculos (como se dirá a seguir).

  1. Falam pesquisadores modernos
    À p. 27  W. Vogels cita estudiosos de bom nome:

Roland de Vaux, Professor da École Biblique de Jerusalém: “Se, como se afirmou por muito tempo, (os autores bíblicos) tivessem reconstruído o passado segundo o que viam e imaginavam, eles teriam obtido um quadro diferente do que possuímos, e que teria sido falso” (“Les patriarches hébreux et les découvertes nodernes”, Revue biblique 56 (1949), pp. 5-36, citação pp. 36).

A. Parrot: “A vida, tal como aparece nos relatos do Gênesis que são consagrados, encaixa-se perfeitamente com o que hoje sabemos, por outras vias, sobre o início do segundo milênio, mas imperfeitamente com um período mais recente” (Abraham et son temps, “Cahiers d’archéologie biblique” 14, Neuchatel, elachaux et Niestlé, 1962, p. 11).

W. F. Albright: “Abraão, Isaac e Jacó não parecem mais, doravante, figuras isoladas, quanto menos reflexos da história hebraica posterior; parecem atualmente verdadeiros filhos de sua época, trazendo os mesmos nomes, deslocando-se sobre o mesmo território, visitando as mesmas cidades (especialmente Harran e Nahor), submetidos aos mesmos costumes que seus contemporâneos. Em outros termos, os relatos dos patriarcas têm de cabo a rabo um fundo histórico”.

  1. A Religião dos patriarcas em favor da historicidade
    Às pp. 32s escreve Vogels:

“Autores como Wallhausen, Thompson e Van Setes, que rejeitam todo valor histórico, afirmam que os relatos dos patriarcas nos informam unicamente sobre a época em que os textos foram redigidos. Isso é contraditado pelos menos no que concerne à religião dos patriarcas. Se os autores bíblicos tivessem inventado as tradições dos patriarcas, inspirando-se na religião que eles próprios praticavam, os relatos teriam sido bem diferentes. Os patriarcas praticavam, segundo, os textos bíblicos, uma religião pré-israelita, pré-mosaica. Alguns pontos podem mostrá-lo.

Não existe antagonismo religioso entre os patriarcas e as pessoas com as quais entram em contato. No restante da Bíblia, a oposição entre Yahweh, o Deus de Israel, e os Baals, os deuses dos cananeus, é habitual. Nos relatos dos patriarcas, diríamos que todos adoram o mesmo Deus. Melquisedec, rei de Shalêm, abençoa Abraão em nome do “Deus Altíssimo” (14, 18-20), e Abraão levanta a mão em nome do “Deus Altíssimo” (14, 22).

A Bíblia distingue com freqüência Israel o povo eleito, e as nações, os povos pagãos. Tal distinção não se encontra nos relatos dos patriarcas. Abraão crê que não existe temor algum de  Deus em Guerar (20, 11), mas o texto prova o contrário. O povo de  Guerar é uma nação justa (20, 4), e seu rei Abimélek age com o coração íntegro e mão inocentes (20, 5-6). Todos são iguais diante de Deus; a perspectiva dos relatos dos patriarcas é mais universalista do que no restante da Bíblia.

As práticas são bem diferentes. Não há indicação alguma de que os patriarcas observassem o sabbat, ou as leis concernentes aos alimentos, o que era muito importante na época do exílio. Se as tradições  patriarcais tivessem sido inventadas nessa época, os autores teriam muito provavelmente feito os patriarcas viverem segundo essas leis. O mesmo se aplica aos locais do culto. Abraão constrói altares onde quer (12, 7; 13, 18) e planta árvores sagradas (21, 33). Tais práticas eram proibidas  pela lei mosaica, que prescreve o lugar do culto (Dt 12, 2-5) e condena essas árvores sagradas (Dt 16, 21).

A religião dos patriarcas não conhece mediadores, sacerdotes ou profetas. Os patriarcas não se dirigem aos outros à maneira de Moisés ou dos profetas, e ninguém lhes fala em nome de Deus. Eles estão em contato direto, pessoal com Deus (17, 1). Os patriarcas oferecem seus próprios sacrifícios (22, 13) e não necessitam de sacerdotes que o façam em seu nome.

Na religião de Israel, a lei ocupa um lugar bem central, sua observância traz a bênção; sua rejeição, a  maldição. Na religião  dos patriarcas, encontramos promessas e bênçãos (12, 2-3), mas dadas sem menção de estipulações que os patriarcas deveriam observar para obtê-las. Não existe tampouco ameaça de julgamento, no caso de não serem fiéis.

Esses poucos exemplos, entre outros, ilustram a  diferença entre a religião descrita nos relatos dos patriarcas e a religião do restante do Pentateuco. Os patriarcas tinham certas práticas religiosas condenadas pela lei. É difícil, portanto, imaginar que essa religião tivesse sido inventada por um autor que era um fiel javista. Se ele houvesse “inventado” a história de Abraão, teria escrito uma história mais “ortodoxa”. Os textos testemunham uma forma de religião antiga pré-javista”.

  1. Anacronismos

“Um versículo do ciclo de Abraão diz que “Abraão residiu por muito tempo na terra dos filisteus” (21, 34), mas  esses filisteus só se instalaram em Canaã depois de 1200 a.C. O nome da cidade da qual partiram Terah e sua família, “Ur dos caldeus” (11, 31), também constitui problema. A cidade de Ur é conhecida e muito antiga, mas o termo “Caldéia” é problemático. Os caldeus só surgem nos textos assírios no século IX a.C. Além disso, referir-se a “Ur dos caldeus” pressupõe a ascensão ao poder dos caldeus, ou seja, babilônicos, que só ocorre no final do século VII a.C. No início do segundo milênio, talvez se dissesse “Ur dos sumérios”. Tais dificuldades não perturbam aqueles estudiosos, eles as explicam por meio de anacronismos que não afetariam o fundo verdadeiramente histórico dos textos. Os autores dos relatos dos patriarcas substituíram os nomes antigos pelos nomes em uso na época em que escreviam.

Outra dificuldade para a hipótese do início do segundo milênio é o costume dos patriarcas, como Abraão, de se servir de camelos (12, 16). Aceita-se, em geral, que o camelo só foi domesticado e utilizado no Oriente Próximo antigo depois de 1200 a.C. É verdade que se conhecem alguns casos raros um pouco antes no segundo milênio. Poderíamos, assim, recorrer a tais casos excepcionais e afirmar que os patriarcas faziam um uso restrito de camelo. Mas prefere-se, em geral, explicar essas referências aos camelos como anacronismos. Chega-se a sugerir que o texto, de início, falava de jumentos, substituídos posteriormente por camelos.

Explicar tais dificuldades como anacronismos não  é, em si, uma solução absurda. Todos nós tendemos, ainda hoje, a introduzir semelhantes anacronismos em nossos textos. Um dos subúrbios da cidade de Ottawa se chamava, outrora, Eastview. Esse nome foi alterado, em 1969, para Ville de Vanier, Se escrevo em 1996: “Em minha chegada no Canadá, instalei-me em Vanier”, cometo um anacronismo. Quando cheguei ao Canadá, em 1960, a cidade se chamava ainda Eastview. Meu texto, cientificamente falando, não é exato, mas o leitor comum compreende mais facilmente, pois muitas  pessoas não sabem mais nada  a respeito dessa mudança de nome. Mas o leitor que se baseasse em meu texto para concluir que devo ter chegado ao país depois de 1969 se enganaria. É certo, em contrapartida, que o texto deve Ter sido escrito após 1969. Uma frase que afirmasse “Livingstone morreu na Zâmbia” seria outro exemplo de anacronismo. O país, que sob o regime britânico se chamava Rodésia do Norte, tornou-se Zâmbia no momento de sua independência, em 1964. Isso me indica que a frase deve ter sido escrita depois de 1964. Mas concluir, a partir daí, que Livingstone teria morrido depois de  1964 seria um erro histórico. Esse explorador britânico morreu em 1873 na região da África que hoje se chama Zâmbia” (pp. 28s).

Assim fala o professor universitário, à diferença do jornalista.

¹ Ed. Loyola, São Paulo, 160 x 230 mm, 183 pp. 

Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb.
Nº 485 – Ano 2002 – Pág. 445.
Fonte: http://www.pr.gonet.biz/index-catolicos.php

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