SOLENIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO
Lc 1,26-38
Meus caros amigos,
No itinerário do Advento, a liturgia nos convida a celebrar a solenidade da Imaculada Conceição de Maria: a criatura destinada a ser a Mãe do Redentor, sendo preservada do contágio do pecado original. O Papa Pio IX declarou em sua Carta Apostólica “Ineffabilis Deus”, de 1854, dizendo que Maria “foi preservada, por particular graça e privilégio de Deus Todo-Poderoso, em previsão dos méritos de Jesus Cristo Salvador do gênero humano, imune de toda a mancha de pecado original”. Tal verdade de fé está contida nas palavras da saudação que lhe dirigiu o Arcanjo Gabriel: “Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo!” (Lc 1,28)
O mistério da Imaculada Conceição de Maria, que celebramos, nos faz recordar duas verdades fundamentais da nossa fé: antes de tudo, o pecado original e, depois, a vitória da graça de Cristo sobre ele, vitória que resplandece de modo sublime em Maria. A existência do que a Igreja chama “pecado original”, é de uma clara evidência. As primeiras páginas da Sagrada Escritura interpelam todas as gerações humanas, com a narração da criação e da queda dos progenitores (cf. Gn 1-3). Deus criou tudo para a existência, criou o ser humano à sua imagem; não criou a morte, mas ela entrou no mundo por inveja do demônio (cf. Sb 1,13-14; 2,23-24), que ao revoltar-se contra Deus, atraiu para o engano também os homens, induzindo-os à rebelião. É o drama da liberdade aceita por Deus, prometendo contudo que haverá um filho de mulher que esmagará a cabeça da antiga serpente (Gn 3,15).
E o relato evangélico que a Igreja nos propõe para este dia nos leva a uma aldeia da Galiléia, chamada Nazaré, situada ao norte da Palestina, à volta do Lago de Tiberíades. Era considerada pelos judeus como uma terra longínqua e estranha, em permanente contato com as populações pagãs e onde se praticava uma religião heterodoxa, influenciada pelos costumes e pelas tradições pagãs. Daí a convicção dos mestres judeus de Jerusalém de que “da Galiléia não pode vir nada de bom” (Jo 1,46). Quanto a Nazaré, era uma aldeia pobre e ignorada, nunca nomeada na história religiosa judaica e, portanto, de acordo com a mentalidade judaica, à margem dos caminhos de Deus e da salvação.
Maria, a jovem de Nazaré, é identificada no texto como “uma virgem desposada com um homem chamado José” (v.27). O casamento hebraico considerava o compromisso matrimonial em duas etapas: havia uma primeira fase, na qual os noivos se prometiam um ao outro, conhecido como “esponsais”; só numa segunda fase surgia o compromisso definitivo, que se concretiza com a cerimônia do matrimônio propriamente dito. Entre os “esponsais” e o rito do matrimônio, passava um tempo mais ou menos longo, durante o qual qualquer uma das partes podia voltar atrás, ainda que sofrendo uma penalidade. Durante os “esponsais”, os noivos não viviam em comum; mas o compromisso que os dois assumiam tinha já um caráter estável, de tal forma que, se surgisse um filho, era considerado filho legítimo de ambos. A Lei de Moisés considerava a infidelidade da prometida como uma ofensa semelhante à infidelidade da esposa (cf. Dt 22,23-27). E a união entre as partes só podia dissolver-se com a fórmula jurídica do divórcio. Maria e José estavam, portanto, na situação de “prometidos”, uma vez que ainda não tinham celebrado o matrimônio, mas já tinham celebrado os “esponsais”.
O evangelho também nos apresenta o diálogo entre Maria e o anjo, que tem início com a saudação do anjo, que começa dizendo “Ave”, um termo que tem a sua origem no grego “kaire”, que também pode ser traduzido por “Salve”; na verdade é mais do que uma saudação: é o eco dos anúncios de salvação à “filha de Sião”, uma figura frágil que personifica o Povo de Israel, em cuja fraqueza se apresenta e representa essa salvação oferecida por Deus, a ser testemunhada diante dos outros povos (cf. 2Rs 19,21-28; Is 1,8;12,6; Jr 4,31; Sf 3,14-17).
A expressão “cheia de graça” significa que Maria é objeto da predileção e do amor de Deus. A outra expressão “o Senhor está contigo” aparece, com frequência, relacionada aos relatos de vocação no Antigo Testamento (cf. Ex 3,12 – vocação de Moisés; Jz 6,12 – vocação de Gedeão; Jr 1,8.19 – vocação de Jeremias) e serve para assegurar ao “chamado” a assistência de Deus na missão que lhe é pedida. Estamos, portanto, diante do “relato de vocação” de Maria: a visita do anjo destina-se a apresentar à jovem de Nazaré uma proposta de Deus. Essa proposta vai exigir uma resposta clara de Maria.
Através do Anjo Gabriel Deus convida Maria a ser a mãe de um filho especial e apenas diz, em primeiro lugar, que ele se chamará Jesus, cujo significado é “Deus salva”. O Anjo Gabriel o apresenta como o “Filho do Altíssimo”, que herdará “o trono de seu pai Davi” e cujo reinado “não terá fim”. Essas palavras do Anjo nos faz dirigir o nosso olhar para o Segundo Livro de Samuel (cf. 2Sm 7) e à promessa feita por Deus ao rei Davi através das palavras do profeta Natã. O anúncio feito pelo Anjo Gabriel a Maria é descrito nos mesmos termos em que a teologia de Israel descrevia o “Messias”. O que é proposto a Maria é, pois, que ela aceite ser a mãe desse “Messias” que Israel esperava, o enviado por Deus ao seu Povo para lhe oferecer a vida e a salvação.
A resposta de Maria começa com uma objeção, presente nos relatos de vocação do Antigo Testamento (cf. Ex 3,11; 6,30; Is 6,5; Jr 1,6). Diante dessa objeção, o anjo garante a Maria que o Espírito Santo virá sobre ela e a cobrirá com a sua sombra. Este Espírito é o mesmo que foi derramado sobre os juízes (Gedeão – cf. Jz 6,34; Jefté – cf. Jz 11,29; Sansão – cf. Jz 14,6), sobre os reis (Saul – cf. 1 Sm 11,6; Davi – cf. 1Sm 16,13), sobre os profetas (cf. Ex 15,20; os anciãos de Israel – cf. Nm 11,25-26; Ezequiel – cf. Ez 2,1; 3,12), a fim de que eles pudessem ser uma presença eficaz da salvação de Deus no mundo. A “sombra” ou “nuvem” nos leva também, à “coluna de nuvem” (cf. Ex 13,21) que acompanhava a caminhada do Povo de Deus em marcha pelo deserto, indicando o caminho para a Terra Prometida da liberdade e da vida nova. Apesar da fragilidade de Maria, Deus vai, através dela, fazer-se presente no mundo para oferecer a salvação a todos.
O relato termina com a resposta final de Maria: “Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”. Maria, ao se apresentar como “serva” significa, mais do que humildade, reconhecer ser uma eleita de Deus e aceitar essa eleição, com tudo o que ela implica, pois, no Antigo Testamento, ser “servo do Senhor” é um título de glória, reservado àqueles que Deus escolheu para o seu serviço e que ele enviou ao mundo com uma missão. Essa designação aparece, por exemplo, no livro do profeta Isaías (cf. Is 42,1; 49,3; 50,10; 52,13; 53,2.11). Desta forma, Maria reconhece que Deus a escolheu e aceita com disponibilidade essa escolha e manifesta a sua disposição de cumprir, com fidelidade, o projeto de Deus.
Maria responde ao anjo com um “sim” incondicional. Naturalmente, ela tinha o seu programa de vida e os seus projetos pessoais; mas, diante do apelo de Deus, esses projetos pessoais passaram naturalmente e sem dramas, a um plano secundário. Tudo nos leva a indicar que Maria de Nazaré foi, certamente, uma pessoa de oração e de fé, que fez a experiência do encontro com Deus e aprendeu a confiar totalmente nele.
E a iconografia da Imaculada pode ser também motivo fecundo de meditação e catequese. O dragão pisado pela Virgem lembra o triunfo de Deus sobre a antiga serpente e tem concretização histórica na anunciada vitória da descendência de Eva: “Ela esmagar-te-á a cabeça, ao tentares mordê-la no calcanhar” (Gn 3,9-15). Ecos desse combate cósmico percorrem as visões do Apocalipse e estão presentes no sinal aparecido no céu de “uma mulher revestida de sol, tendo a lua debaixo dos seus pés e coroada de doze estrelas” (Ap 12,1-6.15-17).
Para a Tradição cristã, esses símbolos enraízam na história. Assim, os Padres da Igreja não cessam de apelidar a Mãe de Jesus de Nova Eva, Filha de Sião, Aquela que, na sua plenitude de graça, realiza o que em Eva estava prefigurado. Não por mérito próprio, mas como a mais perfeitamente redimida, por isso, pode ser chamada de a “cheia de graça”. Por seu intermédio, Deus se fez carne, para habitar entre nós.
Lembremos ainda que na cruz, Jesus confiou Maria a João e a todos os discípulos (cf. Jo 19, 27), e desde então ela se converteu para toda a humanidade em Mãe e a ela nos confiou como seus filhos. É a nova Eva, esposa do novo Adão, destinada a ser mãe de todos os remidos. Por isso, animados pela filial confiança, possamos dirigir a ela a nossa oração fervorosa, para que interceda junto de Deus em favor de seus filhos, a fim de que nos ajude a celebrar com fé o Natal do Senhor, já próximo, e que possa nos indicar o caminho que conduz à paz, o caminho em direção ao reino de seu filho Jesus; que ela nos guie na vivência de cada dia, agora e na hora de nossa morte. Assim seja.
D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB
Mosteiro de São Bento/RJ