Autor: D. Estêvão Bettencourt
Fonte: PR 449 – pp. 457-469
Em síntese: O artigo apresenta testemunhos de Papas, Bispos e Sínodos da Igreja que se manifestaram contrários à escravatura ou em favor de tratamento mais humanitário dos escravos através dos séculos, e especialmente no decorrer da história do Brasil. De resto, o fato da escravatura há de ser considerado no contexto dos séculos passados e à luz das categorias de pensamento e cultura de tais épocas. Certas conclusões referentes à maneira concreta de tratar a pessoa humana, por mais claras que hoje nos sejam, não puderam ser evidentes aos homens de épocas passadas, nem aos santos. Conseqüentemente, será preciso julgar a prática da escravatura não segundo os referenciais do século XX (que, embora se diga iluminado, ainda conhece o escravagismo), mas à luz dos parâmetros da cultura dos séculos passados. Assim perceber-se-á que a Igreja exerceu solicitude e procurou ser fiel ao Evangelho diante da própria instituição da escravatura.
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Dando continuidade ao artigo de PR 448, passamos, nas páginas subseqüentes, ao exame do papel dos prelados e clérigos diante da escravização do homem africano. Uma análise da documentação respectiva põe em relevo enérgicas advertências contra a instituição em foco.
1. Testemunhos e exortações
Serão citados oito depoimentos dispostos século por século.
1.1. O Pe. Antônio Vieira (1608-1697)
O Pe. Antônio Vieira S.J. é tido, por vezes, como aliado dos senhores da terra contra os escravos, quando, na verdade, assumiu posição de censura aberta aos inclementes patrões. Essa censura dirige-se, em última análise, ao próprio regime escravagista. Em mais de um sermão o grande pregador expõe o seu modo de pensar:
“Saibam os pretos, e não duvidem, que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua…, porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós para sermos um mesmo corpo, ou sejamos judeus ou gentios, ou servos ou livres” (Sermão XIV em Sermões, vol. IX Ed. das Américas 1958, p. 243).
Citando no final o trecho de 1Cor 12,12, o Pe. Vieira observa que o Apóstolo assim falou “por que não cuidassem, os que são fiéis e senhores, que os pretos, por terem sido gentios e serem cativos, são de condição inferior” (ib. p. 246).
No sermão XXVII, o Pe. Vieira censura o tráfico de escravos:
“Nas outras terras, do que aram os homens e do que fiam e tecem mulheres se fazem os comércios: naquela (na África) o que geram os pais e o que criam a seus peitos as mães, é o que se vende e compra. Oh! trato desumano, em que a mercância são homens! Oh! mercância diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias e os ricos são das próprias!” (ib. p. 64).
Considera o pregador a disparidade existente na sociedade escravagista:
“Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo alas, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé, apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás, como imagens vilíssimas da servidão e espetáculos da extrema miséria” (ib. p. 64).
Interroga então Vieira:
“Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo céu? Não os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?” (ib. p. 64).
E Vieira conclui que Deus não pode aceitar a escravidão. O sermão se encerra com séria admoestação:
“Oh! Como temo que o oceano seja para vós Mar Vermelho, as vossas casas como as de Faraó, e todo o Brasil como o Egito! Ao último castigo dos egípcios precederam as pragas, e as pragas já as vemos, são repetidas umas sobre as outras e algumas são novas e desusadas, quais nunca se viram na demência deste clima. Se elas bastarem para abrandar os corações, razão teremos para esperar misericórdia na emenda; mas se os corações, como o de Faraó, se endurecerem mais, ainda mal, porque sobre elas não pode faltar o último castigo. Queira Deus que eu me engane neste triste pensamento, que sempre aqui, e na nossa corte, os mais alegres são os mais cridos. Sabei, porém, que é certo – e fique-vos isto na memória – que se Jaconias e seus irmãos creram em Jeremias, não seriam cativos; mas, porque deram mais crédito aos profetas falsos que os adulavam, assim ele, como seus irmãos, todos acabaram no cativeiro de Babilônia”.
Foi em tais termos severos que o Pe. Antônio Vieira profligou a desumanidade da servidão no Brasil.
1.2. Senhores e escravos, conforme o Pe. J. Benci S.J. (1700)
Em 1700 foi publicado pelo missionário jesuíta Pe. Jorge Benci S.J. um livro importante e corajoso intitulado “Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos”. Tal obra tornou-se base para a elaboração das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 (ver subtítulo seguinte: 1.3). O censor do livro, Frei Emanuel da Silva, emitiu a respeito o seguinte parecer:
“… contra dominorum nostrae Americae erga servos impiam tyrannidem, perutilem et necessarium clam orem censeo. – Julgo tratar-se de muito útil e necessário clamor contra a ímpia tirania dos senhores da nossa América para com os escravos”.
Eis os principais traços da obra:
A escravidão é um mal, “sendo o gênero humano livre por natureza e senhor não somente de si, senão também de todas as mais criaturas”. “O senhorio, filho do pecado”, ocasiona “culpas e ofensas a Deus pelas sem-razões, injustiças, rigores e tiranias que praticam os senhores com os servos”.
Quanto aos deveres de uns para com os outros, argumenta o Pe. Benci:
“A diversidade que há entre o senhor e o servo, não consiste em que o servo esteja obrigado ao senhor; e não o senhor ao servo, mas na diversidade das obrigações que reciprocamente devem um ao outro”.
“Usar dos escravos como de bruto é coisa tão indigna que Clemente Alexandrino julgou que não podia caber em homem de razão e de juízo. E, se isto não é obra de homem racional, muito menos o pode ser do homem cristão, a quem o mesmo Cristo encomendou tanto o amor e caridade com o próximo”.
A seguir, o autor recorda o dever de não exigir trabalho dos escravos nos domingos e dias santos. Recomenda atenção ao vestuário dos servos, visto que “o ornato dos servos é crédito dos senhores… Se alguém não tem posses para os vestir, não tenha posses para os ter”.
No tocante à saúde, observa: “No Brasil se acham senhores de entranhas tão pouco compassivas e em tanta maneira duras que, logo que vêem os servos enfermos (principalmente se a doença pede cura dilatada e custosa), os desamparam”. Tais senhores “não merecem ser contados no número dos cristãos… Todos igualmente somos ovelhas de Jesus Cristo e remidos todos com seu preciosíssimo sangue”.
O tipo de trabalho exigido dos escravos há de ser moderado, de modo que “pecam por excesso os que os oprimem com trabalhos superiores a suas forças ou por excessivos ou por demasiadamente continuados”.
No final da obra resume Benci o seu pensamento: “O estado mais infeliz a que pode chegar uma criatura racional, é o cativeiro, porque com o cativeiro lhe vêm como em compêndio as desgraças, as misérias, os vilipêndios e as pensões mais repugnantes e inimigas da natureza”. O ideal seria a libertação dos escravos, mas, visto que isto não pode ser obtido, Benci pede ao menos misericórdia:
“Antigamente os cristãos da primitiva Igreja, logo que recebiam o batismo, davam liberdade a seus servos, parecendo-lhes que com a liberdade da lei de Cristo não estava bem o cativeiro. Assim o fizeram os Hermes, os Cromácios, e outros muitos, de que estão cheias as Histórias Eclesiásticas. Não quero persuadir com isto aos senhores a que façam o mesmo aos seus escravos. Senhores, eu não pretendo que deis liberdade aos vossos servos; que, quando o fizésseis, faríeis o que fizeram os verdadeiros cristãos. O que só pretendo de vós, é que os trateis como a próximos e como a miseráveis; que lhes deis o sustento para o corpo e para a alma; que lhes deis somente aquele castigo que pede a razão; e que lhes deis o trabalho tal que possam com ele e os não oprima. Isto só vos peço, isto só espero, e isto só quero de vós: Panis et disciplina, et opus servo (pão, ensino e trabalho para o servo)”.
Tais tópicos do livro do Pe. Jorge Benci S.J. são suficientemente significativos para mostrar que a escravatura foi objeto de especial solicitude da parte da Igreja desejosa de minorar o sofrimento dos cativos.
1.3. As “Constituiçoens Primeyras do Arcebispado da Bahia”
Em 1707, na cidade do Salvador teve lugar o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil, que promulgou as “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, que estiveram em vigor nas demais dioceses do país durante os séculos XVIII e XIX. Esse documento dedicou vinte e três tópicos à situação dos escravos.
Entre outras, merece atenção a exortação a que os senhores proporcionassem aos escravos comida, roupa e o descanso dos domingos e dos dias santos.
“Não é menos para estranhar o desumano e cruel abuso e corruptela muito prejudicial ao serviço de Deus e bem das almas, que muitos senhores de escravos têm introduzido: porque, aproveitando-se toda a semana dos miseráveis escravos, sem lhes darem coisa alguma para o seu sustento nem vestido com que se cubram, não lhes satisfazem esta dívida, fundada em direito natural, como lhes deixarem livres os domingos e dias santos, para que neles ganhem o sustento e vestido necessário. Donde nasce que os miseráveis servos não ouvem Missa nem guardam o preceito da Lei de Deus, que proibe trabalhar em tais dias. Pelo que, para desterrar tão pernicioso abuso contra Deus e contra o homem[1], exortamos nossos súditos e lhes pedimos, pelas chagas de Cristo Nosso Senhor e Redentor; que daqui em diante acudam com o necessário aos seus escravos, para que possam observar os ditos preceitos e viver como cristãos”.
Nesta passagem é significativa a menção de abuso contra o homem (não apenas contra Deus), menção que revela a consciência de que todo ser humano, mesmo nas condições da escravatura (que era um traço inerente aos costumes daquela época), merecia respeito.
O Sínodo se interessou também pela catequese a ser ministrada aos escravos, todavia sem que se lhes impusesse o Batismo. O Título XIV das Constituições apresenta o elenco de perguntas que se faziam aos mais rudes no intuito de não os forçar a receber o sacramento:
.”Queres lavar a tua alma com a água santa?”
.”Botas fora da tua alma todos os teus pecados?”
.”Não hás de fazer mais pecado?”
.”Botas fora de tua alma o demônio?”
Logo a seguir, tem-se a advertência:
“E porque tem sucedido morrerem alguns desses boçaes sem constar sua vontade de quererem ser batizados, no primeiro tempo em que se lhes puderem fazer as perguntas sobreditas ou por intérpretes ou na nossa língua, se tiverem alguma luz dela, importa muito para a salvação de suas almas, que se lhes façam…”
Mais: “Os filhos dos infiéis não devem ser batizados sem licença dos pais, antes de chegarem ao uso da razão, ou idade em que peçam o Batismo”.
“E, no que diz respeito aos escravos que vieram de Guiné, Angola, Costa da Mina ou outra qualquer parte em idade de mais de sete anos, ainda que não passem de doze, declaramos que não podem ser batizados sem darem para isto seu consentimento”.
O Sínodo também levou em conta o direito de matrimônio e de vida conjugal dos escravos:
“Conforme o direito divino e humano, os escravos e escravas podem casar com outras pessoas cativas ou livres, e seus senhores lhes não podem impedir o matrimônio, nem o uso dele em tempo e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por ser cativo ou por ter outro justo impedimento, o não possa seguir e fazendo o contrário pecam mortalmente e tomam sobre suas consciências as culpas de seus escravos, que por esse temor se deixam muitas vezes estar e permanecer em estado de condenação”.
Finalmente o documento se volta para o trato a ser dispensado aos escravos defuntos:
Estipula a pena de excomunhão maior para os senhores que mandavam “enterrar seus escravos no campo e mato como se fossem brutos animais”. E no número 833 exorta:
“Porque é alheio da razão e piedade cristã que os senhores que se serviram de seus escravos em vida se esqueçam deles em sua morte, lhes encomendamos muito que pelas almas de seus escravos defuntos mandem dizer Missas e pelo menos sejam obrigados a mandar dizer por cada escravo ou escrava que lhes morrer, sendo de quatorze anos para cima, a Missa de corpo presente”.
É nestes termos que o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil quis mitigar a sorte dos escravos. Torna-se oportuno lembrar que a Igreja estava então sob o regime do padroado, que sujeitava as suas determinações à “tutela” e ao “beneplácito” do monarca.
1.4. A Bula “lmmensa Pastorum” de Bento XIV (1741)
Poucos decênios após o Primeiro Sínodo Diocesano do Brasil, o Papa Bento XIV, fazendo eco a predecessores seus, houve por bem profligar a escravatura.
A Bula “lmmensa Pastorum” assim redigida foi endereçada aos Bispos do Brasil e de outras partes da América, a fim de que tentassem obter melhores condições de vida para os escravos.
O documento lembra, de início, que “não devemos ter maior caridade do que nos preocuparmos em colocar nossa existência não só a favor dos cristãos, mas também da escravatura e inteiramente a favor de todos os homens”. A seguir, expõe o problema: “Por isto recebemos certas notícias não sem gravíssima tristeza de nosso ânimo paterno, depois de tantos conselhos dados pelos mesmos Romanos Pontífices, nossos Predecessores, depois de Constituições publicadas prescrevendo que aos infiéis do melhor modo possível dever-se-ia prestar trabalho, auxílio, amparo, não descarregar injúrias, não flagelos, não ligames, não escravidão, não morte violenta, sob gravíssimas penas e censuras eclesiásticas…”
O Pontífice ainda recorda, renova e confirma as declarações dos Papas Paulo III em 1537 e Urbano VIII em 1639. O primeiro ordenou ao Arcebispo de Toledo que protegesse os índios da América e ameaçou de excomunhão, cuja absolvição ficaria reservada ao Papa, quem os subjugasse. Quanto a Urbano VIII, estipulou severas censuras canônicas para todos os que violentassem o livre arbítrio dos índios, convertidos ou não. Bento XIV chama desumanos os atos de prepotência contra os escravos e estabelece haja excomunhão “latae sententiae ipso facto incurrenda” (isto é, excomunhão infligida desde que cometido o delito) e outras censuras canônicas para os que maltratavam os índios. E por “maus tratos aos índios” explica o Pontífice que entende escravizar, vender, comprar, trocar, dar, separar de suas mulheres e filhos, esbulhar, levar para outros lugares, cercear de qualquer modo a livre ação, deter no cativeiro, como também, por qualquer pretexto, ajudar de qualquer forma os agentes destas iniqüidades. Exorta finalmente os Bispos a que “com diligência, zelo e caridade cumprissem a sua tarefa”.
O Marquês de Pombal, por alvará de 8/5/1758, mandou executar esta Bula em todo o Brasil apenas no tocante aos indígenas. Na verdade, o teor do documento refere-se a todos os homens, incluídos os de origem africana trasladados para o Brasil.
1.5. A obra do Pe. André João Antonil S.J. (1711)
Ante o fato consumado da escravatura no Brasil, o jesuíta Pe. André João Antonil escreveu a obra intitulada “Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas” (1711), obra que toma a defesa dos escravos vítimas de abusos dos senhores.
Assim, por exemplo, exorta os patrões a colocar à disposição dos escravos “mantimentos e fardas, medicamentos, enfermaria e enfermeiro”… “Nada, pois, tenha o senhor do engenho de altivo, nada de arrogante e soberbo; antes, seja muito afável com todos e olhe para seus lavradores como para verdadeiros amigos”.
Ao feitor diz o Pe. Antonil: “Adoecendo qualquer escravo, deve livrá-lo do trabalho e pôr outro em seu lugar e dar parte ao senhor para que trate de o mandar curar e ao capelão para que o ouça de confissão e o disponha, crescendo a doença, com os sacramentos para morrer”.
Voltando a dirigir-se aos patrões, o Pe. Antonil repreende os que não se preocupam com a vida moral dos seus servos, observando se vivem virtuosamente e cumprem seus deveres religiosos. Censura os senhores que impedem os escravos de guardar os domingos e freqüentar a Missa por exigirem deles trabalho. Acrescenta: “… E deve (o senhor) também moderar o serviço, de sorte que não seja superior às forças dos que trabalham, se quer que possam aturar“. Repreende outrossim os que batiam “por qualquer coisa pouco provada ou levantada e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos”. Refere outrossim à praxe louvável de certos patrões: “Costumam alguns senhores dar aos escravos um dia em cada semana para plantarem para si, mandando algumas vezes com eles o feitor para que se não descuidem e isto serve para que não padeçam fome nem cerquem cada dia a casa do seu senhor, pedindo-lhe a ração de farinha. Porém, não lhes dar farinha, nem dia para plantarem e querer que sirvam de sol a sol no partido, de dia e de noite com pouco descanso no engenho, como se admitirá no tribunal de Deus sem castigo?”
Quem tem escravos, seja para eles como um pai, apregoa Antonil. Não lhes recuse a sua legítima recreação. Deixe-os cantar, bailar honestamente, fazer suas festas de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito e do titular da capela local. Sejam os patrões liberais para cobrir as despesas destas solenidades, incentivando desta forma seus servos. Em suma, Antonil prega a generosidade que faz dos servos amigos.
A posição do sacerdote jesuíta não foi singular nos séculos XVII/XVIII. Nota Katia de Queirós Mattoso em livro recente:
“O clero regular dessa época procurava por todos os meios atenuar os aspectos insuportáveis da escravatura como instituição. Para ele, o escravo também possui uma alma que cumpre proteger” (Ser escravo no Brasil. Ed. Brasiliense SA. São Paulo, 1982, p. 118).
Passemos agora ao século XIX, no qual foi abolida a escravatura no Brasil.
1.6. A atitude de Gregório XVI (1839)
Aos 3/12/1839, o Papa Gregório XVI, mediante uma epístola incisiva, quis corroborar em seu século as declarações de seus antecessores. Escreve, pois, taxativamente: “Admoestamos os fiéis para que se abstenham do desumano tráfico dos negros ou de quaisquer outros homens que sejam”.
Nesse documento o Pontífice percorre sumariamente a história da escravatura. Começa por lembrar que o advento do Cristianismo contribuiu se não para abolir, ao menos para mitigar as condições dos escravos:
“Logo que a luz da Boa-Nova começou a espalhar-se entre os homens, começaram também aqueles infelizes, que naqueles tempos, mormente pelas vicissitudes da guerra, caíram em grande número na mais dura escravidão, a sentir; pela maior parte, alívio na sua sorte, se pertenciam a senhores cristãos, porquanto, cheios como estavam do Espírito Santo, os Apóstolos … admoestavam os senhores para que tratassem bem os seus escravos, concedendo-lhes o que fosse de direito e de eqüidade, e sobretudo para que se abstivessem de maltratá-los, devendo lembrar-se de que o verdadeiro Senhor não só dos escravos, mas dos mesmos senhores, é aquele que está no céu, diante de quem não há distinção de pessoas”.
Continua adiante o Pontífice:
“Não só os cristãos começaram a tratar os seus escravos como irmãos, mormente se tinham a mesma fé de seus senhores, mas começaram a mostrar-se mais incclinados a dar-lhes a liberdade se a mereciam, o que sobretudo costumava ter lugar pelas festas da Páscoa, como nos consta do testemunho de Gregório de Nissa”[2].
O Papa Gregório XVI cita outrossim um antecessor seu, Clemente I, que conheceu pessoas que, “ardendo em fogo de caridade, até tomaram sobre si cadeias alheias por não terem outro meio de resgatar seus irmãos”.
Entre parênteses, é oportuno notar que na Idade Média foram fundadas duas famílias religiosas destinadas á redenção dos escravos:
– A Ordem dos Trinitários (Ordo SS. Trinitatis de Redemptione Captivorum), instituída em 1198 por São João da Mata (+1213) para a libertação dos prisioneiros e dos escravos cristãos do domínio dos sarracenos;
– A Ordem dos Mercedários (Ordo Beatae Virginis de Mercede Redemptionis Captivorum), fundada por S. Pedro Nolasco (+1256) e S. Raimundo de Penafort (+1275); visava também à libertação dos escravos cristãos do cativeiro sarraceno.
Apesar destes antecedentes, o Papa Gregório XVI lamenta o fato de que muitos inescrupulosos haviam continuado a “reduzir à escravidão os índios, os negros e outros desgraçados” por “torpe amor do ganho”. São então mencionados Pontífices que se insurgiram contra a dureza de trato infligido aos escravos: Pio II, que a 7/10/1462 escreveu ao bispo de Rovigo, quando este ia viajar para a Guiné; Paulo III, que, aos 29/5/1537, se dirigiu ao Cardeal-arcebispo de Toledo: Urbano VIII, que, com a data de 22/4/1639, escreveu ao Coletor da Câmara Apostólica em Portugal; Bento XIV, que aos 20/1 2/1741, enviou uma Bula aos Bispos do Brasil e de outras terras da América; Pio VII (1800-1823), que, “animado do mesmo espírito de religião e caridade que seus predecessores, empregou toda a sua influência para com os diferentes soberanos, a fim de que o comércio da escravatura fosse inteiramente abolido entre os cristãos”. Gregório XVI aspirava a que “semelhante infâmia” fosse para sempre extirpada nos países católicos.
Eis os significativos termos com que se encerra a Bula:
“Pelas passadas de nossos predecessores, admoestamos e conjuramos por Jesus Cristo todos os fiéis, de qualquer estado e condição que sejam, para que, daqui em diante, não continuem a oprimir tão injustamente os índios, negros ou outros quaisquer homens, privando-os de seus bens ou fazendo-os escravos, nem mesmo se atrevam a dar auxílio ou favor àqueles que tal tráfico exercitam, por meio do qual os negros, como se fossem animais bravios, e não homens, são reduzidos à escravidão de qualquer maneira que seja e, sem respeito para as leis da justiça e da humanidade, comprados, vendidos e condenados aos mais duros trabalhos, além do inconveniente de eternizar as guerras, e as discórdias nos países em que se faz o comércio da escravatura, em razão da esperança do ganho com que se animam os que se ocupam na apreensão dos negros. Tudo isto, portanto, Nós reprovamos, como altamente indigno do nome de cristão, em virtude da autoridade apostólica que Nos compete e, com essa mesma autoridade, proibimos que qualquer eclesiástico ou leigo, sob qualquer pretexto que seja, se atreva a favorecer ou proteger o tráfico da escravatura ou pregar e ensinar em público ou em particular; de qualquer maneira que seja, coisa alguma contra o que nestas nossas letras se acha determinado”.
As enérgicas palavras do Pontífice dariam seus frutos poucos decênios mais tarde, como se sabe.
1.7. Leão XIII e a epístola “ln Plurimis” (5105/1888)
Aos 5/5/1888 o Papa Leão XIII enviou aos Bispos do Brasil uma epístola atinente à escravatura.
Diz, de início, estar ciente das medidas adotadas no Brasil em favor da libertação dos escravos – o que alimentava no Pontífice “a gratíssima opinião de que os brasileiros queriam abolir e extirpar a imanidade da escravidão”.
A seguir, o Papa propõe um retrospecto da problemática:
“É profundamente deplorável a miséria da escravidão a que desde muitos séculos está sujeita uma parte não pequena da familia humana”.
Considera então o episódio de Onésimo, o escravo fugitivo que São Paulo batizou e quis devolver ao patrão Filemon com uma carta de exortação a este; o relacionamento social inspirado pelo Cristianismo estava impregnado de profundos sentimentos humanitários, que aos poucos levariam a uma revisão da condição dos escravos:
“A Igreja não quis proceder com precipitação em procurar a emancipação e a libertação dos escravos, o que evidentemente não se podia fazer senão de maneira tumultuosa que redundaria em dano deles mesmos e em detrimento da sociedade”.
“Os cuidados da Igreja no patrocínio dos escravos cresciam continuamente e, não perdendo nenhuma oportunidade, procurava conseguir prudentemente que lhes fosse dada a liberdade”.
Entre os cristãos, lembra o Papa, introduziu-se o costume louvável de dar “a liberdade aos escravos por generosa manumissão”. E recorda quanto fizeram os Papas em favor dos escravos:
S. Gregório I, “que resgatou o maior número que lhe foi possível”; Adriano I, o qual ensinou “que os escravos podiam contrair livremente matrimônio, mesmo contra a vontade de seus senhores”; Alexandre III, que em 1167 intimou terminantemente ao rei mouro de Valência que “não fizesse escravo nenhum cristão”; Inocêncio III, que “aprovou e confirmou a Ordem da Santíssima Trindade para a redenção dos escravos” caídos em mãos dos sarracenos; Honório III e Gregório lX, que deram aprovação a instituição semelhante, a Ordem da Santa Maria das Mercês, que São Pedro Nolasco tinha fundado com Regra severa, exigindo dos Religiosos que dela fizessem parte, se entregassem ao cativeiro em lugar dos cativos, se isto fosse necessário para os resgatar; Gregório IX, a exortar os fiéis que oferecessem seus servos a Deus e aos santos em expiação de suas culpas; Gregório Magno, a propor disposições de maior doçura nas leis civis, com total êxito, pois Carlos Magno as incorporou nos seus Capitulares e, depois, Graciano as adotou no seu Decreto.
Em suma, “a Igreja defendeu sempre os escravos das violências e dos ultrajes dos senhores, aplicando para esse fim o rigor de suas penas”. Desta maneira a Igreja conseguiu pôr termo à escravidão na Europa.
Frente à escravatura fora da Europa, principalmente a partir do século XVI nas terras da América, Leão XIII menciona que levantaram a voz em favor dos índios e dos negros os Papas Pio II, Leão X, Paulo III, Urbano VIII, Bento XIV, Pio VII, Gregório XVI. Em seguida, Leão XIII refere a sua atuação pessoal em prol dos miseráveis escravizados. E, por fim, volta-se para a situação no Brasil, louvando as iniciativas recentes destinadas a preparar a extinção da escravatura; ao que acrescenta:
“E agora, Veneráveis Irmãos, a vós queremos dirigir o Nosso pensamento e as Nossas Letras, para manifestar-vos e repartir convosco a grande alegna que experimentamos pelas decisões que nesse Império se adotaram, pertinentes à escravatura. Uma vez que foi estabelecido, por lei, que todos aqueles que se encontram ainda na condição de escravos, serão admitidos na classe e nos direitos dos homens livres, não só isto em si nos parece bom, fausto e salutar, mas achamos nesta realidade, confirmada e avalorada, a esperança de progressos consoladores para os interesses civis e religiosos”.
Leão XIII teve a ventura de acompanhar a extinção da escravatura no Brasil ocorrida aos 13/5/1888 mediante a lei 3.353. A fim de comemorar enfaticamente tal evento, o Papa quis enviar à Princesa Isabel a Redentora a Rosa de Ouro, sinal da benevolência de Sua Santidade.
1.8. As Irmandades e a escravatura
Uma instituição importante do Brasil colonial foram as Irmandades ou Confrarias Religiosas, que certamente desempenharam papel de relevo no tocante à sorte dos escravos. O objetivo das Irmandades era congregar pessoas de fé em vista de uma vivência mais coerente do Cristianismo; na verdade, porém, as Confrarias exerceram o papel de consciência da igualdade de todos os homens entre si: afirmando os direitos dos escravos aos benefícios religiosos em pé de igualdade com os senhores, tornavam-se fator de educação e formação das mentalidades. Os escravos que se congregavam em Irmandades, sentiam-se seres humanos iguais aos seus patrões, certos de que gozavam diante de Deus das mesmas prerrogativas que estes tanto durante esta vida como após a morte.
As Irmandades dos pretos se apresentavam, por vezes, tão bem organizadas quanto as dos brancos. Chegaram a construir suas igrejas e capelas próprias, para escapar à tutela dos brancos; esses templos serviam como lugares de mediação quando os brancos se desentendiam entre si. “Assim, por exemplo, a Ordem Terceira de São Francisco, na Tijuca, preferiu instalar-se em um altar lateral da igreja do Rosário, enquanto construia sua sede. Eventualmente poderia ter tido algum altar na Sé ou em outra igreja de brancos, mas preferiu ficar sujeita, ao menos temporariamente, a um grupo de pretos” (Julita Scarano, Devoção e Escravidão, São Paulo, 1978, p. 33). Comenta J. Scarano:
“Como se vê, os Terceiros de São Francisco se submeteram ao julgamento de uma Mesa constituída de pretos, apesar de que sua confraria abrigava pessoas de categoria elevada: comerciantes ricos e altos dignitários” (lb. p. 34).
Como notam os historiadores, as Irmandades “se tornaram o único meio que permitia aos negros, como grupo organizado, ombrear com os demais habitantes da colônia” (ib. p. 6).
2. Conclusões
Os testemunhos até aqui aduzidos manifestam uma atitude da Igreja menos conhecida frente à instituição escravagista. Quem deseja ser justo, não pode deixar de levar em consideração tais depoimentos, que hão de ser lidos não dentro das categorias de pensamento da época contemporânea (pois então poderiam parecer fracos), mas à luz do modo de pensar e viver da época de cada qual dos autores citados; assim lidos, tais textos revelam o autêntico senso cristão que nunca deixou de animar a Igreja através dos séculos.
Na redação deste artigo muito nos valemos dos estudos publicados pelo beneménto historiador e filósofo Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho no jornal “O Arquidiocesano” de Mariana, MG, aos 11/07, 25/07, 11/08, 15/08, 22/08, 29/08, 5/09, 12/09, 19/09, 26/09, 3/10,10/10,17/10/82.
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Notas:
[1] Grifo nosso.
[2] Gregório do Nissa foi bispo em Nissa (Ásia Menor) no século IV.