Comentário Exegético – VI Domingo do Tempo Comum – Ano B

EPÍSTOLA (1 Cor 10, 31- 11,1)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

PARA GLÓRIA DE DEUS: Porque quer comais, quer bebais,ou façais alguma coisa, tudo para glória no de Deus fazei (31). Sive ergo manducatis sive bibitis vel aliud quid facitis omnia in gloriam Dei facite. Este versículo é parte da conclusão do problema dos idolotitos; ou seja, de carnes de consumo  nos açougues que procedia dos santuários pagãos. Tudo que não se utilizava no templo com fins cultuais era vendido no mercado. Por isso, a questão de: se ao comer essa carne, o cristão não participaria da idolatria. S. Paulo, na sua resposta, distingue cuidadosamente o plano doutrinal do plano da praxis. Em teoria é evidente que um cristão não pode se comprometer com deuses falsos. Por isso, seguindo o critério de Jesus que afirmou não se contaminar o homem pelo que entra pela boca, Paulo afirma que o cristão é livre: Tudo é permitido, porém nem tudo convém. E ainda: “Tudo é permitido”, mas nem tudo edifica (v 23). Um exemplo clássico era quando se come em casa de outro como invitado: tem um cristão direito a comer carnes que antes foram oferecidas aos ídolos pagãos [idolotitos]? A resposta do apóstolo consta de dois princípios fundamentais: 1º) liberdade total no que diz respeito a essas carnes. 2º) respeito à consciência dos outros. O primeiro princípio é logicamente defendido por um razoamento simples, que corresponde a tudo é permitido. Porque o ídolo nada é, e a carne a ele oferecida nada recebe, nem de mal nem de bem. É simplesmente carne de um animal. O fato de ser oferecido a uma estátua de bronze ou pedra e ter recebido incenso nada pode acrescentar a um pedaço de carne. O mundo pagão é profano e nada tem de sagrado, que deve estar limitado ao verdadeiro Deus e seu culto. O segundo princípio é devido a que nem todos têm essa liberdade de consciência e pensam que a carne chamada idolotito está contaminada. Sua consciência é fraca, e quando alguém acredita que comete pecado, embora não exista matéria para o mesmo, realmente peca. Por consequência, se um alimento pode causar escândalo e incitar ao pecado a um cristão, devo me abster da carne que o incita ao pecado. A caridade deve ser o último critério nesta questão, e assim se cumpre o segundo princípio: nem tudo edifica. Esta posição de Paulo ele a descreve dizendo: fiz-me fraco com os fracos (1 Cor 9, 22). Dos três casos possíveis: compra no mercado, comida em casa de um amigo e comida num santuário pagão, os dois primeiros não devem preocupar um cristão. Mas dificilmente a última prática poderia estar livre de pecado, pois estaria unida a um culto explicitamente proibido, não por comer uma carne, mas por participar de um culto pagão. Não foi a toa que inumeráveis mártires morreram por esta causa na história do cristianismo contra o culto ao Imperador como deus do Império. Daí a conclusão do versículo anterior a este: Se eu agradeço a Deus pela comida que como, por que é que hei de ser criticado por aquilo que eu agradeço a Deus? (30). Ou seja, a verdadeira intenção da comida não está na carne, mas na ação de graças que precede intencionalmente a comida da mesma. E assim Paulo recomenda a ação de graças antes da comida e da bebida, que estende a toda obra realizada: Portanto, quer comam, quer bebam, quer façam quaisquer outras coisas devem fazer tudo para dar glória a Deus (31). Da questão dos idolotitos, Paulo passa agora a uma mais ampla visão, como é a intenção que deve predominar em toda conduta cristã: é a glória de Deus, como dirá séculos mais tarde S. Ignácio de Loyola: Ad maiorem Dei Gloriam.  Este é o motivo principal e causa final de todas as nossas ações, sem o qual se converteriam em promover nossa própria vontade e exaltar o nosso natural egoísmo. Perfeita e totalmente, unicamente alcançaremos esta finalidade na feliz bemaventurança em que o Reino terá sua completa realização como diz Jesus na oração que nos ensinou: seja feita a tua vontade, assim na Terra como no Céu (Mt 6, 10).

NÃO ESCANDALIZAR: Sem ofensa sede, tanto para judeus como helenos assim como para a Igreja de(o) Deus (32). Sine offensione estote Iudaeis et gentilibus et ecclesiae Dei. OFENSA [aproskopoi<877>=sine offensione] como em At 24, 16 significa ter uma conduta limpa, irrepreensível de modo a não ter escandalizado nem a judeus nem a gregos. Como diz em Fp 1,10 de modo a estar sem escândalo algum até ao dia de Cristo. A conduta de Paulo neste ponto é dirigida pelo bem do irmão: Por isso, se a comida escandalizar a meu irmão, nunca mais comerei carne, para que meu irmão não se escandalize (1 Cor 8, 13). E da comida passamos a uma regra mais geral no âmbito da caridade: Assim que não nos julguemos mais uns aos outros; antes seja o vosso propósito não pôr tropeço ou escândalo ao irmão (Rm 14, 13); de modo a não dando nós escândalo em coisa alguma, para que o nosso ministério não seja censurado (2 Cor 6,3). E será com essa regra de conduta que Paulo se dirige aos ministros de Cristo como chefes do rebanho: Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a Igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue (At 20, 28). Tudo  o que constitui seu testamento aos presbíteros de Éfeso na sua despedida em viagem a Jerusalém.

AGRADANDO A TODOS: Como também eu me esforço em agradar em tudo a todos, não buscando o que é vantajoso para mim, mas aos muitos para que sejam salvos (33). Sicut et ego per omnia omnibus placeo non quaerens quod mihi utile est sed quod multis ut salvi fiant. ESFORÇO-ME [areskö<700>=placeo] com o significado de esforçar-se por comprazer ou simplesmente COMPRAZER [symferon<4851>=utile] como em Mc 6, 22: a filha da mesma Herodíades, dançou, e agradou a Herodes e aos que estavam com ele à mesa. Com o mesmo significado do versículo atual: Portanto cada um de nós agrade ao seu próximo no que é bom para edificação (Rm 15, 2). E é com este propósito que Paulo nos confia sua impecável conduta: Agora satisfaço aos homens ou a Deus? Ou procuro agradar aos homens? Se estivesse ainda agradando aos homens, não seria  servo de Cristo (Gl 1, 10). Assim, ele procura cumprir a regra de ouro do ministério apostólico: sendo livre para com todos, fiz-me servo de todos para ganhar ainda mais (1 Cor 9, 19). Que em termos de um verdadeiro cristão ele designa nesta frase lapidária: Que ninguém procure o seu próprio bem, mas sim o dos outros (1 Cor 10, 24).

O SEU EXEMPLO: Sede meus imitadores como também eu de Cristo (11, 1). Imitatores mei estote sicut et ego Christi. Com toda razão pode, pois, Paulo, terminar seu escrito com uma frase que tem sido declarada como símbolo da vida de um apóstolo: Sede meus IMITADORES [mimëtai<3402>=imitatores]. Na realidade, este versículo tem o limite da conduta sobre os idolotitos; mas Paulo exorta os corintianos a uma mais ampla imitação, copiando em suas vidas o seu exemplo, que era de sofrimento e trabalho pelo anúncio do evangelho, como escreve na mesma carta em 4, 16: Admoesto-vos, portanto, a que sejais meus imitadores. Esta imitação está na linha do que é a conduta divina, como declara Paulo aos de Tessalanônica: E vós fostes feitos nossos imitadores, e do Senhor, recebendo a palavra em muita tribulação, com gozo do Espírito Santo.Tudo o que remata com esta consideração: Porque vós, irmãos, haveis sido feitos imitadores das igrejas de Deus que na Judeia estão em Jesus Cristo; porquanto também padecestes de vossos próprios concidadãos o mesmo que os judeus lhes fizeram a ele (Fp 2,14). Porque mais do que com a palavra, a pregação paulina foi um exemplo de serviço e dedicação: Não porque não tivéssemos autoridade, mas para vos dar em nós mesmos exemplo, para nos imitardes (Ts 3, 9). O exemplo de Paulo só vale, enquanto ele é uma cópia da conduta de Cristo, que não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos (Mt 20, 28). Este é o ideal de todo ministro do evangelho, e que, segundo Paulo, deve ser também de toda alma cristã.

EVANGELHO (Mc 1, 40-45)

CURA DE UM LEPROSO

(lugares paralelos Mt 8, 1-4 e Lc 5, 12-16)

(Padre Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: A LEPRA. Sobre este nome, seguramente que estão incluídas várias doenças, que antigamente eram desconhecidas em origem e que tinham sintomas parecidos. Como se nos tempos modernos declarássemos gripe a toda doença que tem sintomas como febre, dores musculares, ou dificuldades respiratórias. Há muitas doenças de pele que poderiam ser confundidas, a simples vista, com a verdadeira doença de Hansen, a vulgarmente chamada lepra. Como enfermidades da pele, podemos ver 35 diferentes, desde acne até urticária física. No AT a lepra tem dois capítulos 13 e 14, a ela dedicados no livro do Levítico. Como viam os vestidos cobertos de mofo branco assim como as paredes, também o Levítico trata desta “lepra”. Dos primeiros, trata em 13, 47-52 e das segundas, em 14, 34-53. Tanto os vestidos como as paredes deverão ser examinados pelos sacerdotes e declarados impuros durante sete dias. Como vemos,  não podemos confiar na descrição da enfermidade nos textos bíblicos, pois declara como tal o mildew, mofo ou bolor. Modernamente não temos dúvidas sobre a verdadeira doença, dividida entre lepra tuberculoide e lepra lepromatosa. Esta última é a mais severa e a que produz grandes nódulos desfigurantes. Todas as formas desta enfermidade causam finalmente dano neurológico periférico ou das extremidades nervosas, manifestado em perda sensorial cutânea e debilidade muscular. SINTOMAS: Lesões cutâneas hipopigmentadas [mais claras do normal] com diminuição nelas da sensibilidade ao tato, ao calor e à dor. Lesões cutâneas, que não são aliviadas em semanas ou messes. Ausência de sensibilidade nas mãos, braços e pés. Debilidade muscular que ocasiona a presença de sinais como o pé caído [a ponta do pé se arrasta ao levantá-la para dar um passo]. CONTÁGIO: sempre é direto, de pessoa enferma a pessoa sã. Por via respiratória, digestiva ou cutânea, por secreções bacterianas. Como os bacilos não atravessam a placenta, de pais leprosos nascem filhos sãos. A lepra tuberculosa é de prognóstico benigno, aparecendo manchas vermelhas que não emitem bacilos e, portanto, não é contagiosa. EXPANSÃO: É encontrada, com maior frequência, nos países tropicais. A OMS calcula o número de infectados em 286.000 pessoas. No início de 2005, os casos declarados na América são 38.877 sendo o Brasil o país com maior número de enfermos. CASTIGO: Era considerada como um castigo divino, especialmente após a lepra de Maria, a irmã de Moisés, que, por falar mal de seu irmão, apareceu coberta de lepra branca como a neve (Nm 12, 10). E como tal, os que a padeciam eram considerados impuros. JULGAMENTO: A observação da enfermidade, a declaração da mesma e de sua cura, pertenciam aos sacerdotes (Lv cap 13), que recebiam os curados e faziam o sacrifício de purificação, uma vez declarado curado o enfermo, como narrado no livro do Levítico, no capítulo 14. Realmente, o leproso tinha que se afastar da vida social. Deviam morar fora das aldeias e cidades, e se dar a conhecer de longe, pois tinham que vestir vestidos desgarrados, como de mendigos, a cabeça nua, sem turbante, a barba coberta com um véu e advertir de sua proximidade aos viajantes gritando Tamé, tamé [impuro, impuro]. Deviam falar a 4 côvados de distância no mínimo [pouco mais de dois metros]. Reduzidos ao estado de mendigos, acostumavam morar nas covas e sepulcros, em pequenos grupos para repartir a comida e as penalidades. Não eram propriamente excomungados, pois podiam assistir aos ofícios da sinagoga desde que fossem os primeiros a entrar e os últimos a sair e nelas estivessem em lugar separado. A conduta dos rabinos era bem diferente da de Jesus como narrada nos evangelhos. Alguns fugiam deles só ao vê-los, outros até chegavam a jogar pedras para afastá-los do caminho e não se contaminar. O nosso leproso era dos considerados como tais pela lei, e como diz Lucas, estava cheio de lepra, o qual indica uma lepramatose profunda. Lucas diz que estando numa cidade foi quando o leproso se prostrou por terra.

O PEDIDO: Então, vem a ele um leproso, implorando de joelhos e dizendo-lhe que se queres podes me limpar (40). Et venit ad eum leprosus deprecans eum et genu flexo dixit si vis potes me mundare. Esta tradução literal que indica a pobreza sintática de Marcos, recebe nos outros sinóticos umas pequenas diferenças de redação. Mateus (8, 2) dirá que o adorava [prosekynei, adorabat latino], termo que no oriente significava admitir o senhorio de uma personagem como suprema na vida do súdito. A tradução em vernáculo é prostrou-se. Lucas (5, 12) traduzirá em seu verdadeiro valor material o proskyneô, ao escrever caindo com o rosto por terra. A frase inicial é escrita com as mesmas palavras por Mateus e Lucas com a única diferença de que estes dois últimos têm no início a palavra Kyrie [Senhor]. Logicamente esta palavra não significa que ele admitisse em Jesus a divindade, mas um poder do qual ele desejava se aproveitar para a cura de sua doença. O leproso tinha uma fé absoluta no poder de Jesus. Faltava ganhar a sua vontade, a de Jesus, para que a cura fosse imediata.

A RESPOSTA: Jesus, pois, movido de compaixão, havendo estendido sua mão, o tocou e lhe diz: Quero, sê limpo (41). Iesus autem misertus eius extendit manum suam et tangens eum ait illi volo mundare. Uma tradução literal que, uma vez mais, indica a falta de sintaxe de Marcos, como para dizer: a inspiração não destroi as virtudes ou defeitos do escritor. Mateus e Marcos coincidem nas palavras de Jesus e corrigem a rude sintaxe de Marcos, escrevendo: Havendo estendido a mão o tocou dizendo. Com essa resposta, Jesus indica que a cura depende unicamente de sua vontade e que esta está em fazer o bem a quem tão confiadamente o pede. Marcos, muito mais expressivo que seus sucessores, fala de um verbo que acostuma empregar-se para indicar o amor de Deus para com seu povo. É o verbo compadecer-se [splagchnizomai] que tem como raiz a palavra grega splagchnon, que significa entranhas, vísceras, e que é traduzido por mover-se a compaixão. Aparece unicamente nos sinóticos: 4 vezes em Marcos, 5 em Mateus e 3 em Lucas. Um exemplo é o do samaritano que viu o ferido e se moveu a compaixão (Lc 10, 33) e outro é o pai do filho pródigo em 15, 20. É o que no AT se descreve com a palavra cheçed <02617> [ch pronunciado como j em espanhol] que unido a ´emeth <0571>[fidelidade] define os atributos divinos com respeito a sua conduta com os seres humanos. O significado de ambas as palavras juntas, cheçed we ´emeth, acostuma variar no texto grego dos Setenta. Em Gn 24, 27 as duas palavras são traduzidas como dikaiousynê kaì alêtheia [justiça e verdade], embora a tradução inglesa diga Kindness and Faithfulness [bondade e fidelidade]. Em  24, 49 a tradução é eleos kai dykaiousyne [misericórdia e justiça]. Em 32,10 será dykaiousyne kai alêtheia [justiça e verdade]. Em 47, 29 eleêmosynê kai alêtheia [compaixão, (beneficência) e verdade]. Em Êx 34, 6 lemos polyéleos kai alêthinós [supermisericordioso e fiel]. Estes exemplos bastam para ver que a palavra cheçed é traduzida de diversas maneiras.  Nos salmos aparecem também ambas as palavras unidas, e traduzidas já, como graça e verdade (25, 10) na versão portuguesa AV, que na vulgata é traduzida por misericórdia et veritas. No salmo 86, 15 podemos ler que o Senhor é poliéleos kai alethinós [multae misericodiae et verus, cheio de amor e fidelidde, abounding in love et faithfulness]. Finalmente no salmo 88, 14-15 temos: te precedem éleos kai alêtheia [misericórdia et veritas, graça e verdade, love and faithfulness]. Vemos como a vulgata e a New Intenational Version são bastante mais confiáveis que a versão revisada portuguesa, que traduz cheçed por graça. Já no NT, João no prólogo usa os dois termos em grego, dizendo do Logos como estando cheio de charitos kai alêtheias [gratiae et veritatis, de graça e verdade]. Os modernos preferem amor e fidelidade, como comenta em nota a Bíblia de Jerusalém, para corresponder à definição de Deus no Êx 34, 6 +. Evidentemente que essa graça é a grande misericórdia da qual Deus é rico como declara João Paulo II na sua encíclica Dives in misericórdia citando Ef 2,4. E a verdade se transforma em fidelidade ou lealdade às suas promessas. Um outro vocábulo usado pela Escritura para definir a compaixão divina é rehem<7359> [misericórdia ou piedade] como vemos em Dn 2, 18 para que pedissem misericórdia [timôria, auxílio] ao Deus do céu ou rachmanîy <7362> [oiktirmôn, compassivo] em Lm 4,10: As mãos das mulheres, outrora compassivas. São os únicos casos em que ambas as palavras aparecem no AT e qualificam condutas humanas. Como conclusão, podemos afirmar que a conduta divina é de cheçed, ou amor benévolo por parte de Deus, quando olha o homem que Ele escolheu como seu amado. ESTENDENDO A MÃO: Jesus o tocou. Jesus rompe com o esquema usual que, com base na legalidade vigente, tornava impuro quem tocasse ou se aproximasse, menos de dois metros do leproso. Em Lc 17 12-13, vemos como os leprosos, à entrada da cidade, clamam à distância. A ação de Jesus indica uma compaixão profunda com o doente, que, nesse momento, o identifica como amigo, pois é seu médico. E Jesus declarou: quero, sê limpo. A reposta de Jesus ao pedido do leproso foi exatamente a esperada pelo doente. Jesus une a cura com a sua vontade, que é movida simplesmente pela compaixão. É assim que Deus foi movido e é movido, no conjunto da História humana, e especialmente na particular história de seu povo. Se o leproso desobedece à lei ao se aproximar de Jesus, este último ainda a despreza mais, pois toca com sua mão um homem impuro, o que seria o mesmo que se tornar ele também impuro, segundo Lv 5, 3 e Nm  5, 2. Jesus se tornava impuro consciente e voluntariamente, indicando que a lei da impureza não servia quando da cura de um homem ou quando o fato de fazer o bem era posto na balança. Exatamente como quando viola, aparentemente, o sábado para fazer o bem a uma mulher encurvada (Lc 13, 10+). Mais do que evitarmos o mal, estamos obrigados a fazer o bem que é a razão do verdadeiro amor ao próximo. É o mesmo Jesus que se tornou pecado para salvar o pecador como diz Paulo (2 Cor 5, 21). Também podemos deduzir da conduta de Jesus, que uma lei, que não cumpre a finalidade de contribuir para o bem do homem, não tem sentido e não é um mandato que deve ser necessariamente obedecido. É por isso que Jesus pronunciou as palavras que limparam a lepra: Quero, sê limpo.

A CURA: E, tendo falado, imediatamente retirou-se dele a lepra e foi limpo (42). Et cum dixisset statim discessit ab eo lepra et mundatus est. No mesmo instante em que Jesus pronunciou as palavras, a lepra se afastou e ficou limpo. As palavras de Marcos indicam uma cura instantânea: afastou-se imediatamente [eythys], como se fosse uma pessoa que abandona a sua casa por ordem superior. E ficou limpo. A instantaneidade da cura é também nota característica de Mateus e Lucas. O leproso estava limpo. Que devia agora fazer?

OS MANDATOS: E tendo-o seriamente advertido, imediatamente o despediu (43). E diz-lhe: Vê, não digas nada a ninguém, mas vai pessoalmente, mostra-te ao sacerdote e oferece, por tua purificação, as coisas que mandou Moisés para testemunho deles (44). Et comminatus ei statim eiecit illum. Et dicit ei vide nemini dixeris sed vade ostende te principi sacerdotum et offer pro emundatione tua quae praecepit Moses in testimonium illis. São duas as advertências sérias – espécie de mandatos- de Jesus, uma vez obtida a cura: a 1a a de guardar silêncio sobre o acontecido. Tendo-lhe seriamente advertido, dirá Marcos. Lucas rebaixa até um simples aviso de não espalhar a notícia e Mateus refere como: cuidado! Não o digas a ninguém (8,4). Podemos nos perguntar a razão desta advertência. Jesus realmente foge da fama de curandeiro e não mostra desejo algum de que suas obras extraordinárias sejam conhecidas. Em Mateus, vemos a mesma conduta perante a cura dos dois cegos: vede, que ninguém conheça (9, 30). Se no caso do demônio, como vimos no domingo anterior, a causa do silêncio exigido era pela deformação do messiado, agora existe o perigo de falsificar a figura de Jesus tornando-a médico prioritariamente, antes que Salvador. Seria o homem das curas que tomaria o lugar do verdadeiro Salvador, o Servo de Jahvé, a tirar o pecado do mundo (Jo 1, 29), esse Messias que corretamente anuncia o anjo a José, que salvará o seu povo de seus pecados (Mt 1, 21). Por isso, como no caso do surdo-mudo, quanto mais proibia, tanto mais proclamavam seus fatos extraordinários (Mc 7, 36). A prática de Jesus é totalmente diferente dos muitos curandeiros modernos que convidam os seus seguidores para verem milagres como produtos de oração. Desta forma a religião se transforma em curandeirismo, ou em egolatria do pregador. A 2a é a recomendação de se apresentar aos sacerdotes. Parece uma bagatela insignificante. Porém, na realidade, não era assim. Não exigir essa apresentação era como desprezar a Lei, que não deixava nas mãos do médico [e para o caso, Jesus era o tal] a cura da lepra, mas dava a última palavra ao sacerdote. Além disso, existia uma outra razão: a cura foi feita por um enviado de Jahvé-Deus e como tal se exigia a ação de graças pela mesma, com o sacrifício correspondente. Jesus tinha, pois, motivos reais suficientes para exigir, tanto neste caso como no dos dez leprosos, a presença última do sacerdote para a declaração final da ausência da impureza. Quando cura os dez leprosos, a lei é cumprida de forma terminante. É de longe  que eles pedem a cura e Jesus manda que vão para serem declarados limpos pelo sacerdote, sem se aproximar deles ou tocar nos seus corpos feridos. E na ida, eles encontram a sua cura (Lc 17, 14). A OFERENDA: A cura da lepra não era uma cura normal. Era um verdadeiro dom de Deus, poder se tornar limpo e participar da vida social, como um membro do povo escolhido. Por isso, o retorno à vida da comunidade devia ser feito com um sacrifício de ação de graças. O Levítico, após narrar os sintomas da verdadeira lepra no capítulo 13, regula, no 14, a inserção do leproso na comunidade. Para a tal oferenda serão necessárias duas aves, madeira de cedro, lã escarlate e hissopo. Não vamos entrar nos detalhes, que se seguirão com os dois cordeiros um deles imolado pelos pecados e o outro como holocausto. Interessa a frase final de Jesus: coisas mandadas por Moisés como prova para eles. A que se refere prova para eles? Hoje traduzem prova contra eles. Em Dt 31, 26, após Moisés escrever o livro da lei, manda que este seja colocado ao lado da Arca da Aliança como um testemunho contra ti [o povo], porque conheço a tua rebeldia e a tua dura cerviz. É possível que este texto do AT esteja na mente de Jesus para indicar que ele, tem um poder que é diretamente vindo de Deus e por isso quer que seja reconhecido como tal pelo sacerdote, o único que podia dar testemunho da cura da lepra. A cura do leproso é uma prova de que Jesus era profeta de Deus, pois agia como tal em seu nome. E a apresentação diante do sacerdote indicava que Jesus exigia a testemunha oficial para ver no curado o poder divino do médico. Comentaristas católicos usam este texto para demonstrar que a cura do pecado só é verificada testemunhalmente pelo sacerdote que absolve o pecador. No Sacramento da Reconciliação, o penitente recebe um cheque em branco para a anulação de suas dívidas. Os pecados eram opheilemata [dívidas] como afirma Mateus no Pai-Nosso (6, 12) porque deviam ser pagos para serem perdoados. As disposições do penitente preencherão a cifra correspondente por meio de sua humilde confissão, seu arrependimento e seu propósito sincero. E o sacerdote, um juiz num ato de reconciliação, que não age somente  com Deus, mas também com a Igreja, avaliará e testemunhará com o eu te absolvo, a certeza do perdão e a segurança da reconciliação.

DIFUSÃO DO MILAGRE: Ele [o leproso], porém, tendo saído, começou a pregar muitas coisas e a espalhar a palavra de modo   ele [Jesus] não poder, de maneira alguma, abertamente entrar numa cidade, mas estava  fora em lugares inabitados e de toda parte vinham a ele (45). At ille egressus coepit praedicare et diffamare sermonem ita ut iam non posset manifeste in civitatem introire sed foris in desertis locis esse et conveniebant ad eum undique. Ele [o leproso], porém, saindo [dali] começou a pregar muitas coisas e a espalhar a palavra. Evidentemente, o leproso, agora curado, não cumpriu a séria advertência de Jesus e falava abertamente do sucedido e a difundir a palavra sobre Jesus e o reino. O antigo excluído socialmente, se transforma agora em verdadeiro apóstolo da palavra, ou seja, dessa realidade que chamamos evangelho. Praticamente é o que aconteceu com Paulo que de perseguidor se transformou em firme defensor de Jesus. Em Paulo foi curado o espírito, no leproso o corpo, para conhecer a verdade em suas vidas e manifestá-la claramente a todos os homens. O leproso canta a glória do Senhor com o espírito de Maria que declarava no seu canto de louvor: porque o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor (Lc 1. 49). Se Maria teve como ouvinte Isabel, o nosso leproso teve como auditório as aldeias e vilas da Galileia. RESULTADO: De modo que ele [Jesus] não podia entrar em cidade alguma e devia habitar em lugares desabitados. Mesmo assim vinham a ele de todas as partes. Parece um pequeno inciso, mas na realidade mostra a verdadeira vida de Jesus que, indiretamente, os evangelhos narram, pois sua palavra será dirigida e escutada no monte, no lugar descampado em que teve que multiplicar os pães, à beira mar e até deverá enviar os doze para pregar, em seu nome, nas aldeias e cidades da região. Talvez estes pequenos comentários nos obriguem a ver Jesus de modo um tanto diferente como temos acostumado a observá-lo nos filmes de produção para espetáculo. No início, e durante a vida de Jesus, a semente era mesmo de mostarda.

PISTAS: 1) Os rabinos consideravam o leproso como se estivesse morto e pensavam que sua cura era uma verdadeira ressurreição. Por isso, a lepra tornou-se o símbolo do homem em pecado mortal e a sua cura, avaliada pelo sacerdote, foi a imagem do sacramento da penitência e reconciliação.

2) Jesus toca o leproso, contra toda a prática jurídica e em oposição aos costumes da época. Jesus demonstra com sua atitude, que o homem está por cima de toda lei social que o discrimina e condena a um ostracismo absurdo que é como considerá-lo morto em vida. Até o homem mais repugnante tem o direito de ser tratado como um ser humano e de ser considerado entre os quais devemos amar e ajudar.

3) Devido a deformação da lepra chamada lepromatosa, que forma nódulos, foi considerada como um castigo divino para as pessoas pecaminosas, afastadas dos princípios religiosos. Hoje sabemos que é uma bactéria e que a doença nada tem a ver com a religião. Devemos ter em conta que a interpretação das escrituras deve ser feita com o critério da cultura antiga,  contemporânea do tempo de Jesus, sem pretender, como alguns fazem, uma leitura científica e literal. A cura foi feita. A doença no tempo era lepra e como não temos nenhuma descrição da mesma, poderia ser qualquer doença que na época recebia esse nome. O que indica o poder de Jesus é a sua instantaneidade na cura, impossível, mesmo com os remédios modernos.

4) Pelo que toca a nós, a lepra verdadeira é o pecado. Ele nos afasta de Deus e ao mesmo tempo implica com nosso descomprometimento social, de modo a modificar a verdadeira relação que, devendo ser de justiça [no sentido de santidade] se transforma em inimizade e animadversão.

 

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