Comentário Exegético – XXXI Domingo do Tempo Comum – Ano A

EPÍSTOLA (1 Ts 2, 7b-9.13)

COMO UMA MÃE: Tornamos-nos amáveis no vosso meio, como uma mãe que acaricia seus próprios filhos(7). Facti sumus lenes in medio vestrum tamquam si nutrix foveat filios suos. AMÁVEIS [ëpios<2261>=lenis] ëpios significa afável, cortês, agradável. Paulo dirá em 2 Tm 2, 24: Quem está ao serviço do Senhor não deve andar metido em discórdias. Mas deve tratar toda a gente com delicadeza, deve saber ensinar e ser capaz de suportar o mal. E ele próprio, como exemplo, em meio dos corintianos escreve em 1 Cor 2, 3: Entrei no vosso meio como um homem sem forças, cheio de medo e ansiedade. Talvez porque Paulo tinha por norma se fazer fraco para os fracos, para ganhar os fracos (1 Cor 9, 22). Numa sociedade classista, como era a de seu tempo, Paulo, cujo nome indicava baixinho, entrou como quem pede e não como quem exige e manda, pois também tinha como norma a dada pelo Mestre: servidor e último de todos (Mc 9, 35), que ele, Paulo imitou em sua pregação aos de Corinto:  Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor; e nós mesmos somos vossos servos por amor de Jesus (2 Cor 4,5). Coisa que já tinha feito segundo 1 Cor 9, 19: Porque, sendo livre para com todos, fiz-me servo de todos para ganhar ainda mais. Daí que  dá o mesmo conselho como exemplo aos gálatas: Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas sede escravos uns dos outros pelo amor (Gl 5, 13). AMA [trofë<5162>=nutrix] em grego ama de leite, o trofë é propriamente a pessoa que alimenta, e sai unicamente neste versículo. Neste caso, devemos traduzir por mãe, pois é a que amamenta seus filhos. ACARICIA [thalpö<2282>=foveo] É o presente subjuntivo do verbo thalpö, tratar com carinho, afagar, acariciar. Paulo não entrou como aquele que é dono da verdade, mas como quem ama e procura o desgarrado, assim como alegava um sacerdote diante da posição de poder de seu bispo: sou ministro da misericórdia e não da justiça. Porque Paulo precisamente exortava e consolava a cada um deles como o pai a seus filhos (1 Ts 2, 11). Porque nunca ninguém odiou a sua própria carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Senhor à Igreja – dirá Paulo aos de Éfeso em 5,29. E foi deste modo que Paulo se dedicou aos de Corinto.

A PREDILAÇÃO DE PAULO: Assim sentindo profundo afeto por vós, resolvemos dar-vos não só o evangelho de(o) Deus, mas também as próprias vidas, já que vos tornastes nossos prediletos (8). Ita desiderantes vos cupide volebamus tradere vobis non solum evangelium Dei sed etiam animas nostras quoniam carissimi nobis facti estis. Este versículo prova que Paulo tinha um amor especial pelos tessalonicenses. SENTINDO PROFUNDO AFETO [omeiromenoi <2442>=desiderantes cupide] é o particípio do verbo omeiromai na voz reflexiva, e cujo significado é ter um grande afeto, e que unicamente sai neste versículo no NT. Sua tradução é querendo muito, que vemos traduzido por levados de nosso amor por vós. RESOLVEMOS [eudokoumen <2106>=volebamos] indicativo imperfeito do verbo eudokeö com o significado de considerar bom, consentir, resolver, ter prazer, aprovar, comprazer. Como exemplos: AGRADAR: Não temais, ó pequeno rebanho, porque o vosso Pai agradou dar-vos o reino (Lc 12, 32).  PARECER BEM: Porque pareceu bem à Macedônia e à Acaia fazerem uma coleta para os pobres (Rm 15, 26). COMPRAZER: E eis que uma voz dos céus dizia: Este é o Meu Filho amado, em quem me comprazo (Mt 3, 17). ALEGRAR-SE: Alegro-me, portanto, com as fraquezas, as injúrias, as privações, as perseguições e as angústias que passei por amor de Cristo (2 Cor 12, 10). No nosso caso optamos por CONSIDERAR: A nossa ternura por vós era tal que estávamos dispostos, ou seja, resolvemos DAR [metadounai<3330>=tradere] [até a própria VIDA [psychë <5590>=anima] A palavra Psychë tem vários significados em grego no NT: ALMA, como princípio da vida: E disse-lhes: A minha alma está profundamente triste até a morte; ficai aqui, e vigiai (Mc 14, 34). VIDA: Levanta-te, toma o menino e sua mãe e volta para a terra de Israel, porque já morreram aqueles que procuravam tirar a vida ao menino (Mt 2, 20). Ou Mc 10,45: Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos. Aqui optamos, como na maioria das traduções modernas, por vida. Sobre o verbo metadounai a tradução pode ser prover, Compartilhar, ou simples dar. COMPARTILHAR como em Lc 3, 11: E, respondendo ele, disse-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com o que não tem. Neste versículo é entregar ou comunicar. PREDILETOS [agapëtoi<27> =carissimi]: o grego é querido, amado, especialmente do filho primogênito, como em Mt 3, 17: Este é o Meu Filho, o amado, em quem me comprazo. Assim, Paulo chama de meu filho amado a Timóteo (1 Cor 4, 17). Mas pouco antes fala aos de Corinto como a filhos amados (1 Cor 4, 14). Pois para Paulo os que, por meio de seu ministério se transformaram em fiéis cristãos, eram seus filhos, como confirma nesta mesma carta em 1 Ts 2, 11: Assim como bem sabeis de que modo vos exortávamos e consolávamos, a cada um de vós, como o pai a seus filhos. E que confirma com o que diz aos de Corinto: Porque ainda que tivésseis dez mil aios em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; porque eu, pelo evangelho, vos gerei em Jesus Cristo (1 Cor 4, 15).

O TRABALHO PAULINO: Estais lembrando, portanto, irmãos, nossa labuta e fadiga, pois de noite e também de dia, trabalhando para não sobrecarregar algum de vós, vos anunciamos o evangelho de(o) Deus (9). Memores enim estis fratres laborem nostrum et fatigationem nocte et die operantes ne quem vestrum gravaremus praedicavimus in vobis evangelium Dei.  LEMBRAIS [mnëmoneite<2442>=memores estis] é o presente indicativo do verbo mnëmoneuö, com o significado de lembrar, como em Mt 16, 9: Não compreendeis ainda, nem vos lembrais dos cinco pães para cinco mil homens. LABUTA [kopon<2873>=labor]. Kopus inicialmente, designava um batido do coração em pena (Jr 51, 3 na Septuaginta), para depois significar trabalho, labuta, unido à fadiga; daí, aflição. Como em Lc 11, 7: Se ele, respondendo de dentro, disser: Não me importunes; já está a porta fechada, e os meus filhos estão comigo na cama; não posso levantar-me para te dar os pães. Paulo usa-o com o significado de FADIGAS em 2 Cor 6, 5: espancamentos, prisões, tumultos, fadigas [kopois], vigílias e fome. Paulo repete aqui o que tinha escrito no capítulo primeiro, no versículo 3. Mas agora é de sua conduta como trabalhador para ganhar o pão e não ser uma carga para os fiéis, ao mesmo tempo que era seu título de glória: não se ter servido do evangelho para viver, mas ter anunciado o mesmo sem compensação. Paulo afirma que ordenou também o Senhor aos que anunciam o evangelho, que vivam do evangelho (1 Cor 9, 14). Mas ele não usou deste poder (idem 9. 15). De modo que seu prêmio estava em que evangelizando, proponha de graça o evangelho de Cristo para não abusar do meu poder no evangelho (idem 9, 18). Assim, pode afirmar aos tessalonicenses que nem de graça comemos o pão de homem algum, mas com trabalho e fadiga, trabalhando noite e dia, para não sermos pesados a nenhum de vós. Não porque não tivéssemos autoridade, mas para vos dar em nós mesmos exemplo, para nos imitardes (2 Ts 3, 8-9). Esta segunda carta aos de Tessalônica parece indicar que os fiéis de Tessalônica eram da classe trabalhadora. Escravos? Ou libertos e judeus para os quais o trabalho manual não era uma desonra, mas a forma mais normal de vida. Por isso, Paulo termina essa sua declamação, afirmando: quando ainda estávamos convosco, vos mandamos isto, que, se alguém não quiser trabalhar, não coma também (2Ts 3, 10).  Além de uma notícia sobre seu modo de anunciar o evangelho, Paulo faz uma declaração em evidente contraste com os costumes da época: o trabalho, segundo o disposto por Deus, é a forma de comer o pão (2Ts 3, 12); e, na época de Paulo, quem podendo trabalhar não trabalhava, como faziam os romanos livres. Se não houvesse outra razão, como a do Gn 3, 19: no suor do teu rosto comerás o teu pão, existe a sempre válida que o apóstolo anota: para não sermos pesados a nenhum (2 Ts 3, 8). Viver do clientismo como os romanos, ou viver de esmolas não é próprio de um cristão que não está impedido por natureza  ou por falta de trabalho. Pois por cada pessoa que recebe sem trabalhar, outra pessoa deve trabalhar sem receber, como diz Robert Crosbi.

AGRADECENDO: Portanto, também nós damos graças a(o) Deus sem cessar, porque recebendo (a) palavra ouvida de nós, a de Deus, acolhestes não uma palavra de homens, mas como é em verdade, palavra de Deus, a qual também está operando em vós os crentes (13). Ideo et nos gratias agimus Deo sine intermissione quoniam cum accepissetis a nobis verbum auditus Dei accepistis non ut verbum hominum sed sicut est vere verbum Dei qui operatur in vobis qui credidistis. PALAVRA DE DEUS: Quando Paulo falava, anunciando o evangelho, ele usava as palavras de Cristo, palavras de Deus e, portanto, conservadas em sua primitiva totalidade e integridade pelos ouvintes e assim relatadas nos evangelhos. Por isso, vemos que os sinóticos coincidem quase literalmente em grego, quando é uma frase emitida pelo Senhor Jesus. No AT seria oráculo de Jahveh. O próprio Paulo distingue entre o que disse Jesus e sua opinião: Com respeito às virgens – escreve – não tenho mandamento do Senhor, porém dou minha opinião, como tendo recebido do Senhor a misericórdia de ser fiel (1Cor 7, 25). E quando fala de verdades essenciais do evangelho, diz que são verdades recebidas por tradição e sempre em conformidade com as Escrituras [palavra de Deus]: Antes de tudo vos entreguei o que também recebi; que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras e que foi sepultado e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras (1 Cor 15, 3-4). Não existe melhor apologia do valor da tradição adotado pela Igreja Católica que esta afirmação de Paulo. OPERANDO [energeitai<1745>=operatur] essa palavra evangélica está também operando atualmente entre os de Tessalônica em fé e obras ou se queremos em frase paulina pela Fé que atua pelo amor (Gl 5, 6).

EVANGELHO (Mt 23, 1-12)

CONDENA DO FARISAÍSMO

LUGARES PARALELOS:

Mc 12, 38-40; Lc 11, 37-52 e 20, 45-47

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Jesus acabava  de demonstrar que os fariseus não podiam ser os verdadeiros líderes religiosos de Israel, porque desconheciam a verdadeira essência do Messias, o assunto mais importante da época (Mt 22, 41-46). Agora os desmascara, demonstrando seus vícios, os menos apropriados para líderes religiosos: mentira e ambição. Esta perícope de Mateus é única. Nos outros evangelistas encontramos pragas dirigidas contra as condutas afetadas e detalhistas da lei nos fariseus (Lc cap 11). Mas no sentido de arrasar a liderança doutrinária dessa ideologia, esta passagem de Mateus, não tem comparação. Por isso começa Jesus dizendo: Na cátedra (= cadeira de mestre) de Moisés, sentaram-se os escribas (=leguleios) e os fariseus. É uma afirmação que quer dizer: com a autoridade do primeiro legislador de Israel eles querem também legislar e mandar, como se fossem a lei, a Torá. De fato chegavam a afirmar que a tradição era tão mais importante do que a lei.

A CÁTEDRA DE MOISÉS: Jesus falou depois à multidão e aos seus discípulos desta maneira(1). Dizendo: Na cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus(2). Tunc Iesus locutus est ad turbas et discipulos suos dicens super cathedram Mosi sederunt scribae et Pharisaei. O grego KATHEDRA [<2515>=cathedra] significa cadeira em termos gerais, ou seja, um lugar para se assentar. Isso vemos nas duas vezes que aparece com este sentido geral em Mt 21, 12 e Mc 11, 15 quando Jesus derruba as cadeiras dos que vendiam pombas. Porém se traduz em particular como o assento especial donde o professor administrava suas lições ou o juiz ditava suas sentenças. De modo especial era um banco de pedra existente na plataforma da sinagoga, perto da qual estavam os rolos sagrados e onde os leitores da Lei se assentavam para pronunciar seus discursos ou comentários ao texto lido (Lc 4, 20). E é neste sentido que devemos traduzir a kathedra deste evangelho. A cátedra de Moisés é, pois,  tanto como afirmar a autoridade do mesmo. De fato a tradução da Bíblia Pastoral fala de ter autoridade para interpretar a Lei.  As traduções inglesas, espanhola e italiana conservam a palavra cátedra. A latino-americana usa ocupar o posto e a francesa se tornaram intérpretes de Moisés. Cremos que esta última tradução não está conforme com os fatos reais. Na verdade, os escribas,  como veremos mais tarde, não só interpretavam a Torah, mas até acrescentaram muitos mandatos que não estavam dentro da lei mosaica. Chegaram até afirmar que as leis de impureza legal, próprias dos sacerdotes, obrigavam o laicato igualmente. Por que tal autoridade entre os escribas? Segundo Dt 18, 15 anunciavam-se profetas, sucessores de Moisés. Como veremos no parágrafo seguinte, os profetas foram substituídos pelos sábios, ou seja, pelos doutos na Lei.

ESCRIBAS: A palavra grega é GRAMMATEUS [<1122>=scriba], que etimologicamente vem da palavra gramma, escrito ou carta. Logo significa um escrevente, um copista, passando a ser escrivão ou tabelião, porque eram na sua maioria oficiais públicos. No AT existiam escolas que treinavam sacerdotes e levitas, que por sua vez, instruíam o povo na Lei. O mais notável foi Esdras um soper [escriba] para ensinar em Israel os estatutos e as normas do Senhor (Esd 7, 6-10). A profissão de escriba recebeu ímpeto considerável após o exílio, pois surgiu a necessidade de copiar, estudar e expor as Escrituras a fim de fazer delas a base da vida nacional.  Dentre eles, conhecemos dois nomes: o já citado Esdras (396 aC) e Bem Sirac (180 aC) o autor do Livro do Eclesiástico, que descreve o escriba como homem sábio   (Eclo 38, 24 ); e no hino que declara as virtudes do homem dedicado a meditar a lei do Altíssimo, dirá que manifestará a instrução recebida, gloriar-se-á da lei da aliança do Senhor (Eclo 39, 8). Nos tempos dos Macabeus o termo soper foi substituído por hakamim [sábios]. Na revolta dos Macabeus, uma companhia de escribas quis conferenciar com o Sumo sacerdote Alcimo, nomeado pelos gregos e com o general Báquides. No NT a palavra aparece 60 vezes nos evangelhos sinóticos e 4 nos Atos e um a vez em Paulo. Fora de At 19, 35, em que se emprega de um oficial civil, sempre Grammateus é usado com o significado de erudito na Torah, rabino, teólogo ordenado. Dois outros termos usados são equivalentes a grammateus, nomikos, advogado, intérprete da Leis  e nomodidaskalos, [mestre da lei]. Marcos não usa a palavra nomikos, porque no mundo romano a palavra significava um perito na lei civil e para os judeus era perito na lei de Moisés. Nomodidáskalos , mestre da lei é usado só por Lucas e unicamente em escritos cristãos. Pela frequência com que aparecem os grammatoi é claro que tinham uma grande influência entre o povo. Longe de serem meros copiadores ou copistas, eram professores e mestres da lei, intérpretes e doutores da mesma. Alguns deles eram membros do Sinédrio (Mt 16, 21) . Eram escribas do povo (Mt 2, 4) e escribas dos fariseus (Mc 2, 16) . Os escribas se dedicavam a vários campos: 1) O estudo e a interpretação da lei, tanto civil como religiosa, à determinação da sua aplicação aos detalhes da vida diária. As decisões dos grandes escribas ficaram sendo a lei oral ou tradição. 2) O estudo das Escrituras, de modo geral, no que diz respeito a assuntos da história e da doutrina. Um exemplo: Elias deve vir primeiro (Mt 17, 10) é doutrina dos escribas. 3) O proselitismo: cada escriba de renome atraia para si um grupo de discípulos (Mt 7, 29) tendo um sistema de ensino que ele mesmo desenvolvera (Mc 1, 2). Formavam um grupo que originalmente era chamado de sábios, mas que logo receberam o nome de rabis, formando uma ordem fechada, na qual somente estudiosos, plenamente qualificados e após uma ordenação, recebiam o espírito oficial de Moisés e se tornavam membros legítimos da associação dos escribas. A alta reputação dos rabinos entre o povo (Mt 23, 6-7) baseava-se no conhecimento que aqueles tinham da lei e das tradições orais, como também das doutrinas secretas teosóficas, cosmogônicas e escatológicas, ocultadas por uma disciplina esotérica. Jesus condena rotundamente a abordagem dos escribas quanto à vontade de Deus [o mais importante na vida] como vemos neste capítulo, embora sociologicamente eles fossem considerados como os sucessores dos profetas e assim a proclamavam na instrução e na sua pregação, determinando a conduta conforme a interpretação que eles faziam da mesma. Era uma tarefa necessária, pois o hebraico bíblico não era entendido pelo povo comum. Não eram homens de riqueza ou possuidores de bens, mas de influência e responsabilidade o que lhes conferia um grande prestígio. Buscavam a sua glória. Os escribas argumentavam na base da Escritura e principalmente na interpretação da mesma pelas grandes autoridades passadas. Jesus fala de modo direto e em seu próprio nome: Eu, porém, vos digo (Mt 5, 22; 28; 32; 34). Contrariamente à opinião dos rabinos ordenados, a voz de Jesus soava como a de um profeta que falava em nome de Jahweh: oráculo do Senhor. Alguns escribas estavam perto do Reino (Mc 12, 34), mas a maioria deles criticavam Jesus porque não seguia as tradições (Mt 15, 3), ou perdoava os pecados (Mt 9, 3)  e esperavam um milagre espetacular para acreditar nele, sendo que atribuíam alguns dos milagres de Jesus a uma aliança diabólica. Como vemos hoje, o pior pecado será não saber, ou melhor, não querer reconhecer o Messiado de Jesus. Não acreditaram nele e nem em suas obras (Jo 10, 38).

OS FARISEUS: Inicialmente formavam parte dos Hashidim, [traduzido por Assideus] ou piedosos, nos tempos dos Macabeus. A palavra fariseu deriva do hebraico Perishut, que significa abstinência e separação. O plural perishim é traduzido como farishim. Aparecem pela primeira vez como opositores a        Alexander Janeu (103-76 aC), opostos à política militar de quem era sumo Sacerdote e rei de Israel. No ano 90, por ocasião da festa dos Tabernáculos, a multidão, em sua maioria simpatizante dos fariseus, acometeu contra ele com uma saraivada de limões quando ele se preparava para oferecer um sacrifício no templo. Injuriaram-no e o declararam indigno de realizar este ato sagrado. Tal reação foi brutalmente reprimida. Janeu matou mais de 6 mil pessoas. Janeu, no seu testamento, quis se reconciliar com os fariseus. Sua viúva, Alexandra, mulher piedosa, afastou do poder os que tomavam liberdade em relação às leis religiosas. E os fariseus praticamente tiveram o poder em suas mãos até a morte da rainha em 67. Segundo Josefo, a seita dos fariseus tinha a reputação de fornecer os intérpretes mais rigorosos das leis; eles representavam a seita superior; atribuíam tudo ao destino e a Deus. Fazer o bem ou o mal depende essencialmente do homem, mas também para ambos intervém o destino. Aceitavam que todas as almas são imortais, mas que somente as almas dos justos passam para outros corpos, sofrendo as almas dos celerados um castigo eterno. Os fariseus têm afeição uns pelos outros e vivem harmoniosamente visando o bem comum. Segundo este mesmo historiador, os fariseus se opuseram à Herodes, o Magno, e recusaram o juramento em número de 6 mil [a população da palestina era de 70 mil habitantes o que dá a ideia de que quase um de cada dez habitantes era fariseu]. Sua influência notava-se especialmente nas classes médias e pobres da sociedade. Após a guerra de 70 eles ficaram sós, desaparecidos saduceus e zelotas, e se tornaram caracteristicamente judeus, pois já não eram mais os separados. Foram os precursores dos rabanitas [os rabinos dos quais dependia o Talmud], assim como os saduceus foram os antecessores dos caraítas [movimento liderado por Anan Bem Davi de Bagdá (c 760)] que precisamente não aceitavam o Talmud, o corpus júris ou código básico da lei civil e canônica do judaísmo pós-bíblico, que compreendia a Mishná, texto fundamental em hebraico, e a Guemara aramaica.

JESUS JULGA OS ESCRIBAS: Todas as coisas, pois, que vos disserem que observeis, observai-as e fazei-as; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não fazem (3). Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; eles, porém, nem com o dedo querem movê-los (4).Omnia ergo quaecumque dixerint vobis servate et facite secundum opera vero eorum nolite facere dicunt  enim et non faciunt. Alligant autem onera gravia et inportabilia et inponunt in umeros hominum digito autem suo nolunt ea movere. Os letrados e os fariseus determinavam a vida dos judeus por meio de preceitos que visavam aggiornare [atualizar] a lei mosaica. Jesus admite a autoridade dos mesmos ao pedir a seus seguidores [de Jesus] que realizem e guardem tudo que eles [os escribas e fariseus] dizem que deve ser cumprido (3).  Mas existia um  porém, que rejeitava não o ensino em si mesmo, mas o exemplo que todo mestre deve dar como sendo consequente com suas convicções. Mesmo o ensino é indiretamente criticado por Jesus quando diz que se tornara em impor preceitos impossíveis, que podemos traduzir do grego como atam cargas pesadas insuportáveis de carregar [que arrebentam as costas – diz um intérprete] (4). Essa é a primeira parte; mas logo vem a hipocrisia dos legisladores. Pois eles mesmos nem com um dedo querem mover (4). Lucas, em lugar paralelo, se refere aos nomikoi [intépretes da lei] que colocais sobre os homens cargas insuportáveis e vós mesmos nem com um dedo as tocais (Lc 11,46). Evidentemente essas cargas são obrigações e deveres a cumprir porque os nossos intérpretes as declaravam como válidas e obrigatórias. Jesus ante este oprimente espetáculo, dirá de si mesmo, novo legislador: Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração; pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve (Mt 11, 28, 30). Os juristas da época chamavam ao conjunto dos Mitzvoth [preceitos], jugo da lei. Eles diziam que era a expressão da vontade divina que elevava o homem gradativamente à condição de Devekut, isto é, de vida em sociedade com Deus, e que foram compilados como Taryag Mitzvot [taryag=valor numérico das letras =613], pois eram em número de 613, aos quais os rabinos acrescentaram outros 7 chamados de Mitzvot Derabana [mandamentos rabínicos] (ver Is 14, 25 e Jr 2, 20). Vemos como estes preceitos estão ligados ao serviço e obediência que devemos à soberania divina. Parece que o que era mais pesado eram os preceitos sobre a impureza legal, enormemente dificultosos de levar à prática, especialmente para aqueles que tinham que ganhar sua vida com um trabalho duro de sol a sol. Que significa nem com um dedo querem move-los? Talvez porque não admitiam nenhuma dispensa ou epiquéia [interpretação moderada e prudente em casos de extrema dificuldade].

OSTENTAÇÃO: E fazem todas as obras a fim de serem vistos pelos homens; pois trazem largos filactérios, e alargam as franjas das suas vestes (5). Omnia vero opera sua faciunt ut videantur ab hominibus dilatant enim phylacteria sua et magnificant fimbrias. A afirmação de Jesus é rotunda: fazem todas as suas obras com o intuito de serem vistos pelos homens [no sentido de buscar seus aplausos] (5). E Jesus aponta uma série de exemplos: Alargam seus filactérios (5). Os filactérios [5440>=phylacteria] [Tefilim hebraico] eram duas caixinhas de couro contendo quatro trechos do Pentateuco que os israelitas usavam a partir dos 13 anos [maior de idade] durante as orações matinais, exceto aos sábados e dias festivos. Os tefilim colocam-se, um no braço esquerdo frente ao coração, e o outro na testa, ligados com fitas de couro, significando que os pensamentos e sentimentos humanos devem ser dirigidos a Deus, e sua Torah estar em nossos lábios. Os dois Tefilim simbolizam também os dois princípios da vida humana, teoria e prática, isto é: pensamento e ação. E o da mão acrescenta também o sentimento. Dentro das caixinhas estavam escritos os 4 textos do Shemá. Assim se guardava o mandato de Êx 13, 16 de ser como um sinal em tua mão e como um frontal entre teus olhos. O grego filacterion significa um lugar fortificado e também uma caixa para recordar, ou amuleto. Dentro das caixas encontravam-se enroladas as pequenas tiras de couro em que estavam escritas as palavras do Shemá; serviam, além do lembrete, como amuleto para evitar várias doenças ou males e afugentar demônios. Os fariseus acostumavam alongar as tiras e as caixas para mostrar que eles estavam mais empenhados do que a maioria em recordar a lei de Deus. Se um israelita devia tê-los postos na oração da manhã [Tefilá significa oração], um fariseu os levava durante todo o dia, expressando assim sua fidelidade à Lei. Os textos dentro das caixinhas eram: Dt 11,13-22; 6, 4-9 e Êx 13, 11-16 e 2, 10. Eram, pois, o cumprimento material de Êx 13, 9-16 e Dt 6, 8 e 11, 18. As franjas [kraspeda<2889>=fimbrias] do Talit: Os judeus cobriam com um chalé ou manto curto, a cabeça e os ombros durante a oração matinal. O Talit era de pano retangular de lã ou seda, com listas negras ou azuis paralelas e perto das bordas menores e um galão às vezes bordado com fios de prata ou ouro na borda que cobria a cabeça e rodeava o pescoço. Das quatro pontas pendiam os Tzitzit, borlas cujo número total de fios igual ao número de mandatos da Lei, segundo Nm 15, 37-41(ver figura). O Talit expressa a ideia de revestimento do espírito de santidade para executar os preceitos divinos e recordar que não devemos seguir os impulsos maus de nosso coração, nem tudo o que nossos olhos veem. O revestimento do Talit deve cobrir mais da metade da parte superior do corpo na sinagoga, é também exemplo de igualdade dos homens perante Deus, que não faz diferença entre ricos e pobres, pequenos e grandes. A palavra era Tzit significa escudo. Era a placa frontal usada pelo Sumo sacerdote, incrustada com as doze pedras preciosas coloridas, uma para cada tribo de Israel, nos ofícios litúrgicos do Templo. Hoje uma reminiscência da mesma é usada pelos judeus asquenazis, de origem oriental. Mas o Tzitzit em suas letras tem o valor numérico de 613, tantos como Mitzvot existiam na Lei. Como não se menciona o Yamulke ou Kipá usado nas sinagogas, daí que pensemos que os fariseus levavam estas vestes na rua em ostentação. Lucas resume para leitores ignotos dos costumes judaicos: gostam de levar vestidos ostentosos (Lc 20, 46). Este é também o resumo de Marcos: passear com vestidos ostentosos (12, 38).

OSTENTAÇÃO: E Mateus prossegue: Amam os primeiros lugares nos jantares [banquetes] e as primeiras cátedras [os primeiros assentos] nas sinagogas (6). E as saudações nas praças, e o serem chamados pelos homens: Rabi, Rabi. Amant autem primos recubitus in cenis et primas cathedras in synagogis et salutationes in foro et vocari ab hominibus rabbi. Eram estes os lugares de preferência que denotavam a sabedoria dos que os ocupavam e de modo especial nas sinagogas eram os bancos que estavam de frente ao público de onde se podia encarar a congregação. Lucas dirá unicamente ocupar os primeiros postos nas sinagogas (20, 46), porque os não-judeus nada sabiam sobre os banquetes de fim de semana, aos sábados, em que os fariseus compartiam sua fraternidade. E Mateus termina o relato dos vícios dos escribas dizendo que gostam de serem saudados nas praças e serem chamados pelos homens de Rabi, Rabi [mestre meu] (7). Tinham, pois, em grande estima sua ciência e sua preponderância. Por isso agora compreendemos melhor a razão de Jesus ao afirmar: aprendei de mim que sou manso e humilde de coração (Mt 11, 29).

A CONDUTA CRISTÃ: Vós não queirais ser chamados de Rabi, pois um só é o vosso Mestre e todos vós sois irmãos (8). E não chameis Pai a ninguém na terra; pois um é vosso Pai, o celeste (9). Nem ambicioneis ser chamados de Guias [kathegetai], porque um só é vosso guia, o Messias (10). Vos autem nolite vocari rabbi unus enim est magister vester omnes autem vos fratres estis et patrem nolite vocare vobis super terram unus enim est Pater vester qui in caelis est. Nec vocemini magistri quia magister vester unus est Christus. Era costume entre os discípulos de chamar seus mestres de Rabi, significando mestre meu, mas que provém da raiz Rab [grande] e que poderia significar meu grandioso, meu Senhor. Também chamavam de Pai o Rabi, o mestre, porque a ele deviam a honra que se dava ao pai natural. Era também o título dos membros do Grande Conselho ou Sinédrio de Jerusalém. Esta perícope é dirigida aos discípulos de Jesus para evitar atitudes farisaicas que acaba de rejeitar como vício de orgulho e ostentação entre os sectários daquela organização. Pai significava transmissor de tradição e modelo de vida. Temos que olhar mais o espírito [a fome de ser distinguidos] do que a materialidade das palavras. Por isso estão redigidas as frases na passiva: não ambicioneis ser chamados. Jesus não impede o nome, mas a ambição do título. E ao mesmo tempo dá a razão do porquê não é lícito desejar tais títulos: Na realidade só existe um Mestre [Jesus] e só um Pai (espiritual) [o celeste].  Porque este deve ser o verdadeiro sentido da palavra.  A palavra grega kathegetes [<2519>=magister] significa conselheiro e guia espiritual. Algum comentarista descobre aqui uma referência ao grande Mestre da Justiça dos essênios de Qumrã.

CONSELHOS POSITIVOS: O maior de vocês será vosso servidor (11); porque quem se exalta a si mesmo será abaixado e quem se abaixa será exaltado (12). Qui maior est vestrum erit minister vester qui autem se exaltaverit humiliabitur et qui se humiliaverit exaltabitur. A palavra maior evoca o Rab [grande] de Rabi. E é como se dissesse quem quer se tornar Rabi que seja o servidor [diakonos] de todos. Ele dará uma lição inesquecível: a da verdadeira humildade, base da relação não unicamente do homem com Deus, mas dos homens entre si. A última frase é um provérbio que já foi usado no AT em Provérbios 29, 23: A soberba do homem o abaterá, mas o humilde de espírito obterá honra.

PISTAS: 1) Há duas repulsas da conduta dos escribas e fariseus que também podem ser atuais: a hipocrisia e a ambição. A hipocrisia, especialmente a religiosa, é a maior mentira ou falsidade pessoal que podemos encontrar num líder no qual temos depositado a nossa confiança. Pois por trás da hipocrisia se oculta um desejo de aproveitar-se da sinceridade dos outros. E se a hipocrisia é religiosa, afeta a fé, a mais íntima das convicções humanas. É uma total destruição do que temos de mais venerado e santo em nossas vidas. Já podemos desconfiar de tudo e de todos, pois o engano se reveste de sinceridade, e a mentira se torna verdade e as trevas se revestem com o manto da luz.

2) A ambição: O verdadeiro religioso é um servidor de Deus e dos homens. Como ele poderia, ao mesmo tempo, servir-se só a si mesmo? Pois a ambição é um culto à própria personalidade que logicamente está contra o verdadeiro culto a Deus e do serviço ao próximo. Compreende-se agora por que Jesus dirige suas mais terríveis imprecações contra esse tipo de pessoas que tanto dificultam a verdadeira religião: Ai de vós legistas e fariseus hipócritas!

3) O serviço religioso é considerado uma liderança e, portanto, pode dar lugar à vaidade. É possível que grande parte dos fracassos na evangelização tenham como causa a vaidade dos evangelizadores, dispostos a se atribuírem os êxitos quando estes são produto da graça de Deus. Por isso, Jesus dirá: depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis porque fizemos apenas o que devíamos fazer. (Lc 17,10).

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