Comentário Exegético – VI Domingo da Páscoa – Ano A

EPÍSTOLA (1Pd 3,15-18)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

CRISTO MODELO: Consagrai, portanto, o Senhor Cristo em vossos corações, preparados sempre para a defesa a todo aquele que vos pedir uma prova acerca de vossa esperança (15). Dóminum autem Christum sanctificáte in córdibus vestris, paráti semper ad satisfactiónem omni poscénti vos ratiónem de ea, quae in vobis est, spe.  SANTIFICAI: O grego agiasete [< 37>=sanctificate] é o aoristo imperativo do verbo agiazö, cujo significado é fazer, declarar ou designar como sagrado, santo ou divino um lugar, uma coisa ou uma pessoa. Daí consagrar e também venerar ou no caso adorar e cultuar. Com isto quer dizer o apóstolo que devemos render culto interior a Cristo como a nosso Senhor e Deus. PREPARADOS é a tradução de etoimoi[<2092>=parati] com o significado de prontos, preparados, dispostos a realizar alguma coisa. DEFESA é a tradução escolhida para o grego apologia [<627>=satisfactio] com o significado de defesa, argumento, alegação, testemunho, prova e razão. É a palavra que emprega Paulo quando prisioneiro diz aos de Filipo que os retem no seu coração, porque foram participantes tanto de suas prisões como na defesa [apologia] e confirmação do evangelho (Fp 1, 7). PROVA em grego logos [<3056>=ratio] é um vocábulo que em geral significa a palavra saída da boca, mas que tem uma série de significados, como decreto, mandato, preceito, profecia, declaração, aforismo, máxima, discurso, instrução, conversa, doutrina, razão, causa, consideração, avaliação, resposta a um juízo. Conforme esta última acepção temos escolhido PROVA ou talvez razão sobre a ESPERANÇA do grego elpis [<1680>=spes] com o significado cristão de alegre e confidencial expectação da eterna salvação. A esperança é uma virtude cristã própria, pois é a que nos propõe o triunfo da vida sobre a morte e da bondade sobre o pecado e a injustiça.

A CONSCIÊNCIA: Mas com mansidão e temor, tendo boa consciência, para que, no que sois caluniados, sejam confundidos os que ofendem vossa boa conduta em Cristo (15). Sed cum modéstia et timóre consciéntiam habéntes bonam, ut in eo quod détrahunt vobis confundántur qui calumniántur vestram bonam in Christo conversatiónem. MANSIDÃO do grego praytës [<4240>=modestia] com o significado de suavidade, brandura em disposição, bondade, mansidão, humildade. Este trecho está unido ao versículo anterior em algumas traduções como a KJV. Unida ao TEMOR, fobos [<5401> =timor]  medo, temor, pavor e, finalmente, reverência  que sentimos quando falamos com um superior a quem devemos obediência e respeito. E é neste último aspecto que devemos usar a palavra. A tradução direta de Lacueva diz em espanhol con mansedumbre e respeito. Esta é a tradução que parece mais conforme com o pensamento do autor. CONSCIÊNCIA [syneidësis<4893>=conscientia] em grego com os significados seguintes: ser conscientes de uma coisa, como em Hb 10, 5: purificados uma vez os ministrantes, nunca mais teriam consciência de pecado. A faculdade da alma que distingue entre o bem e o mal feito como em Rm 9, 1: Em Cristo digo a verdade, não minto (dando-me testemunho a minha consciência no Espírito Santo). No nosso caso é um impulso interior, dirigido ao bem de modo que a resposta a estímulos alheios seja para a vitória do bem. Assim, CALUNIADOS [katalaleisthe<2635>=detrahunt] do presente do verbo katalaleö com significado de falar contra ou mal de uma pessoa; literalmente eles falam mal  seguido de sejam CONFUNDIDOS [kataischynthösin <2617>=confundantur] do verbo kataischynö de significado desonrar, degradar, envergonhar, repulsar. Neste caso optamos por traduzir sejam envergonhados ou confundidos. E quais são eles? Pois os que OFENDEM [epëreazö <1908>=calumniantur] com o significado de insultar, tratar com desprezo, acusar falsamente, ameaçar, intimidar. Podemos optar por insultar ou acusar. Insultam ou acusam da CONDUTA [anastrofë<391>=conversatio] como conduta, modo de se comportar, procedimento.  Como conclusão, temos que Pedro escreve em momentos de perseguição, quando os cristãos eram levados à frente  das autoridades para serem interrogados sobre sua fé e sua conduta. As palavras gregas apologia e aitein logon eram términos legais, usados nos tribunais. Assim, ao se declarar seguidores de Cristo com a esperança posta na herança do Reino, sua conduta ratificaria de modo convincente, que não eram nem simuladores nem se serviam da mentira para própria vantagem e benefício.

ENTRE O BEM E O MAL: Pois melhor fazendo o bem padecer, se Deus quer, do que fazer o mal (17). Mélius est enim benefaciéntes (si volúntas Dei velit) pati, quam malefaciéntes, MELHOR [kreittön<2909>=melius] com o significado de mais útil, mais vantajoso, excelente. Como falta o verbo ser, podemos deduzir que o grego é uma tradução de um texto em aramaico, como dizem foi feito por Silvano (5, 12) ou Silas, companheiro de Paulo na primeira viagem (At 15, 22), do texto original, ditado por Pedro. PADECER [paschein<3958>=pati] infinitivo do verbo paschö, com o significado de estar afetado, ter uma experiência sensível para o bem ou para o mal e, neste caso, padecer. SE DEUS QUER, no grego ei thelei to thelëma tou Theou que em tradução direta é se quer a vontade de Deus. THELËMA [<2307>=voluntas]. É vontade, escolha, inclinação, anseio, desejo especialmente se tratando dos propósitos de Deus com respeito à salvação. Portanto, é excelente e está no propósito de Deus, padecer [perseguição] por fazer o bem, antes do que ser castigado por fazer o mal. Tenhamos em conta que Pedro escreve aos do Ponto, Galácia, Capadócia e Ásia Menor em momentos de perseguição. As perseguições não foram extensivas a todo o Império, a não ser a de Décio (250-51) e posteriores. É possível que não fosse a perseguição em si mesma, mas o que aconteceu com Paulo em diversas cidades, agitadas e rancorosas da parte dos judeus especialmente, pois a primeira perseguição em termos de morte por edito foi a de Nero (64-68), posterior a carta de Pedro.

PARADIGMA DE CRISTO: Já que também Cristo, uma vez padeceu pelos pecados, justo pelos injustos, para nós oferecer a(o) Deus; morto certamente em carne, mas sendo vivificado em espírito (18). Quia et Christus semel pro peccátis nostris mórtuus est, iustus pro iniústis, ut nos offérret Deo, mortificátus quidem carne, vivificátus autem spíritu. Pedro apela agora ao exemplo de Cristo, predestinado nos planos do Pai como paradigma do verdadeiro cristão e não unicamente como promotor da vida e reconciliação com Ele. O também [kai grego] indica que Jesus não ficou alheio a essa paixão e sofrimento de  que Paulo trata entre os cristãos da Ásia Menor no seu tempo. JUSTO pelos INJUSTOS, logicamente se refere a Jesus, que foi chamado o Justo (At 3, 14) pelo mesmo Pedro, no discurso do templo, após a cura do coxo de nascença. Como tal vítima, ele se ofereceu a Deus e foi sacrificado [morto na carne], mas, foi vivifivado em espírito. Esta última frase pode ter o sentido de que foi o Espírito de Deus que ressuscitou seu corpo  ou foi ele, como Deus que é espírito, quem viveu sem experimentar a morte e corrupção. Com essa frase, Pedro afirma indiretamente a ressurreição de Cristo, causa e modelo também dos que com ele, como diz Paulo, padecemos para triunfarmos com ele (Rm 8, 17).

EVANGELHO (Jo 14, 15-21)

DESPEDIDA. EXORTAÇÃO AO AMOR.

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Este evangelho é uma parte do discurso na última ceia de Jesus com seus doze discípulos. Um discurso de despedida como se fosse um testamento em vida. No trecho de hoje, encontramos quatro partes bem diferenciadas: A promessa do Paraklétos, uma breve separação, uma presença que só os discípulos experimentarão para entender que Jesus e o Pai são uma mesma coisa [um único Deus] e uma recomendação para os que o amam de guardar os mandatos como prova do amor e para que tanto o Pai como o Filho possam se manifestar a eles. João apresenta o Parákletos como o Espírito que comunica a Verdade, que sempre acompanhará os seus discípulos. Neste sentido será o Mestre interior que supre as palavras do Mestre exterior que era Jesus.

SE ME AMAIS: Se me amais, os preceitos, os meus, guardai (15). Si diligitis me mandata mea servate. OS PRECEITOS: O verdadeiro amor se distingue da paixão e do interesse, porque aquele se dedica totalmente à pessoa amada, é um serviço, cumprindo, antes de tudo, os desejos da mesma. Neste caso, os entolai, traduzido ao latim por mandata, são preceitos particulares ou recomendações de Jesus. O grego distingue entre nomos [a lei geral, essencialmente de Moisés], entolê [preceito, norma ou mandato particular que podemos traduzir por ordem] e dogma [decreto de uma autoridade,  promulgado publicamente].  Como preceitos especiais de Jesus são algo mais do que o mandato novo [entolé kainé] de se amarem como ele os amou (13, 43). Podemos afirmar que os mandatos, aos quais Jesus agora se refere, constituem todo o conjunto que chamamos de evangelho, e especialmente os trabalhos que deviam se realizar na difusão do mesmo. GUARDAI: O texto grego está no imperativo embora muitas traduções prefiram o futuro: Se me amais observareis meus mandamentos (Jerusalém). A tradução seria, pois: se me amais guardai meus mandatos. Mais que mandatos poderíamos traduzir por recomendações ou talvez melhor, ordens? Como resultado Jesus dirá no versículo 21: Quem se atém às minhas ordens e as cumpre, esse é que me ama. Como sabemos, as ordens entram no mundo íntimo e particular das pessoas por elas relacionadas. Ordem é algo que se faz de mim para ti, entre duas pessoas intimamente dependentes. Jesus aqui toma o lugar de Javé no AT, cujo Shemá [ouve] começava com estas palavras: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração (Dt 6, 5). Jesus exige esse amor que se tornará visível no cumprimento de suas exigências. O sentido é de que o amor é causa de que a palavra ouvida seja guardada como quem conserva, em depósito,  uma fórmula sagrada.

E EU SOLICITAREI: Pois eu rogarei ao Pai e outro Parácleto vos dará a fim de que permaneça entre vós para sempre (16). Et ego rogabo Patrem et alium paracletum dabit vobis ut maneat vobiscum in aeternum. O Verbo erotao é próprio de Jesus e mais que orar significa requerer, perguntar e, por isso, temos traduzido por solicitar. O verbo pedir, orar, próprio dos discípulos, é aiteuo. Jesus exige do Pai o Parákletos, sempre que os discípulos o necessitem para cumprir as normas recomendadas por Jesus para a difusão do evangelho. No versículo seguinte explicaremos o significado da palavra Parákletos. PARA SEMPRE: O envio do Espírito está submetido à ausência de Jesus. Mas sua permanência será eis ton aiona. In aeternum, traduz a vulgata. Para sempre. A palavra grega aion <165> é um nome masculino derivado de aiei [sempre] e on [estando] que significa tempo, duração, vida, eternidade, século, idade, geração. Tem diversos significados, como vemos, e tanto no plural como no singular, especialmente na frase de João eis ton aiona significa para a eternidade, ou como traduzem algumas bíblias, para sempre, para não confundir eternidade com o além. Precisamente, vendo a expressão, podemos deduzir que o quarto evangelho é o trabalho de um único redator. A frase sai 9 vezes em João e unicamente uma em Lucas (1, 55)  sendo outra vez no plural (1, 33) e com o mesmo significado. Duas vezes em Marcos (3, 29 e 11, 14) e só uma vez em Mateus (6, 13) e num versículo provavelmente adicionado ao Pai Nosso por outra mão: teu o reino, o poder e a glória para sempre. É interessante ver que aion significa, nessas passagens de João, a eternidade ou para sempre; isto é, sem limites, sem ser condicionado pela vida dos apóstolos ou, como diz Mateus, até o término do século.

OUTRO PARÁCLITO: O Pneuma da verdade o qual o Kosmos não pode receber porque não o vê nem o conhece, mas vós o conheceis porque junto a vós permanece e em vós estará (17). Spiritum veritatis quem mundus non potest accipere quia non videt eum nec scit eum vos autem cognoscitis eum quia apud vos manebit et in vobis erit. PARÁKLETOS: A palavra é própria do evangelho de João e sai 4 vezes nos capítulos 14 a 16 e uma vez em 1 Jo 2, 1, esta última com um significado diferente como advogado defensor, intercedendo pelos pecados do discípulo. Neste caso esse advogado é Jesus Cristo. Vejamos o significado próprio de parákletos. Derivado do substantivo paráklesis [chamado de auxílio] significa advogado defensor [o counsel inglês]. Como termo evangélico tomado por João,  temos sua definição nas diversas passagens dos capítulos antes citados. Estas são as passagens das quais podemos deduzir, segundo o evangelista João, as qualidades e tarefas do Parákletos: 14, 26; 15, 26 e 16, 7. Em todas elas o latim traduz por paraclitus. Os evangélicos, seguindo a versão de Lutero, traduzem o grego original <3875> por Consolador ou Confortador. Num comentário bíblico dizem que tem o mesmo significado de MENAHEM <04505>, confortador, de 2Rs 15, 14 nome do rei de Samaria (752 aC742 aC.) e que este título era atribuído pelos judeus ao Messias. Também os judeus falam de Parákletos com o significado de advogado ou defensor com a seguinte frase: Quem cumpre um mandamento obtém um paráklito [sic em hebraico]; e quem transgride um mandamento, gera um acusador. Como vemos, os judeus contemporâneos de Jesus, usavam a mesma palavra de João para apontar o advogado defensor. As bíblias católicas, modernas, vernáculas, traduzem defensor [esp], protector [latino am], advogado [port], helper [ingl], protecteur[fra], e paraclito[it]. A natureza do Paráclito era ser Espírito. Logo não pode ser visto nem experimentado. Consequentemente não será visível, mas atuará no escuro e no silêncio. Aparentemente nada será percebido pelos que não são discípulos. Só pode ser notado nos seus efeitos ou atuações. E isto de duas maneiras: a mais frequente, modo humano, como dizem os teólogos místicos; neste caso, nem mesmo o possuidor do Espírito se dá conta de que sua mente e seus sentimentos proveem de uma causa superior e externa; pois parece que são próprios e encontrados por pesquisa ou por casualidade. A segunda é modo divino ou sobrenatural, em cujo caso, a intervenção do Espírito é clara a todos os presentes, como testemunhas. Tal foi o caso da xenoglossia [falar línguas estranhas] de Pentecostes (At 2, 4). Porém, neste caso, as palavras de Pedro, ditadas sem dúvida pelo Espírito, pareciam ter origem numa reflexão humana quando diz: Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Messias, esse Jesus a quem vós crucificastes (At 2, 36). Podemos dizer com Paulo que a mente e o coração [sentimento] do homem natural [psíquico] foram substituídos por uma mente e um sentimento superiores formando o homem espiritual (1 Cor 15, 44).  Atributos próprios: ele é Sagrado [ágios] que podemos traduzir por Divino, de natureza não criada, exatamente como o Deus de Israel (14, 26). Um outro atributo é de ser Espírito da Verdade (15, 26). Contrariamente ao mundo e ao seu príncipe [o diabo], ele é Espírito da Verdade e, como tal, verdadeira testemunha da principal verdade humana [ou respeito ao homem]: a verdade sobre Jesus. A VERDADE não vence, mas convence. Ela nos liberta do erro, da mentira e da morte que têm como origem e fruto o pecado, cujo pai é o diabo, aquele que disse: vossos olhos se abrirão [a uma falsa verdade] e  sereis como deuses (Gn 3, 5). Por isso, Jesus dirá aos judeus que não acreditavam em suas palavras [do Logo de Deus], que tinham como pai o diabo, o pai da mentira (Jo, 8, 48). A VERDADE  fundamental é conhecer e reconhecer [como Senhor] que Jesus é o Filho de Deus encarnado. Este reconhecimento nos torna livres, porque seremos amigos do Filho e não escravos, já que o amigo conhece a VERDADE do Filho (Jo 15, 15). Nós, os cristãos, não somos como os judeus, filhos de Abraão e, portanto, escravos na casa do Pai comum, mas amigos e livres pois o Pai nos tornou filhos no Filho pela fé em Cristo Jesus (Gl 3, 26). Assim se tornam os que se deixam guiar pelo Espírito de Deus (Rm 8, 14) que receberam o espírito de filhos adotivos que nos faz exclamar, Abbá (Rm 8, 15). Por isso a VERDADE  de Jesus se torna a nossa Verdade, a de filhos de Deus.  Nos liberta do pecado em que incorreram inicialmente os judeus e que consiste em não crer em Jesus (Jo 16, 9). Foi por isso que o julgaram como blasfemo e impostor [falso Messias]  e assim o entregaram à autoridade romana para que o condenasse à morte  e o crucificasse (Lc 24, 20). O Espírito  substitui Jesus, pois é necessária a ausência deste último para que ele o envie (16, 7). É, pois um Espírito enviado tanto pelo Pai (14, 16 e 26) como pelo Filho ( 15, 26 e 16, 7). Procede do Pai (15. 26) porque é o Espírito do Pai que falará em vós (Mt 10, 20). Ele é enviado, porque ele fala as palavras do Pai, assim como Jesus também falava, ele pode ser tanto chamado de o enviado do Pai como de o enviado do Filho. Está, pois, para o serviço dos homens, especialmente dos discípulos de Jesus. Sua atuação: Uma de suas tarefas é ensinar  e recordar as coisas ensinadas por Jesus (14, 26). Daí que as palavras dos discípulos tenham o selo de verdadeiras profecias, no sentido de serem palavras cuja origem é divina. Outra tarefa é ser prova testemunhal de Jesus como principal testemunha, acompanhando os testemunhos dos discípulos (15, 26) que escrevem ou são relatados em cartas e escritos por eles aprovados e que constituem o NT. É o Espírito, testemunho de cargo, que estabelecerá a culpabilidade e libertará da mentira do mundo, pois este último é causa do pecado por manter a injusta mentira de ver Jesus como culpado e ter dado origem a uma demanda de seus representantes, tanto religiosos quanto civis, resultante numa condenação que não devia ter acontecido; porque a condenação foi injusta e falsa. Por isso poderá João afirmar que o mundo não o conheceu (1, 10). Nos julgamentos judaicos não existia o papel de advogado defensor que era substituído pelas testemunhas de descarga favoráveis ao réu. E este foi precisamente o rol do Espírito, testemunhar em favor de Jesus como diz 16, 8 estabelecendo a culpabilidade dos três grandes causadores da morte de Jesus: o mundo [inimigo do reino], o pecado [como se fosse um ser pessoal ao estilo de Paulo] e o Príncipe deste mundo, que é Satanás. O Espírito atuará como testemunha da santidade [justiça] de Jesus, como Filho do Pai, pois agora está à direita dEle. ESPÍRITO DA VERDADE: Pode ter dois significados: Verdade, como possessiva, e o significado seria essa Verdade como adjetivo ou qualidade do Espírito; sendo a sua tradução Espírito Verdadeiro contrário de espírito mentiroso. E uma segunda acepção: Verdade como objeto e a tradução seria Espírito que propaga a Verdade que é a testemunha da mesma e a protege, cooperando com ela. Neste sentido, acabamos de ouvir a homilia do novo Papa. Quando em 24 de março de 1977 aceitou, a pedido de seu confessor, o  cargo de Arcebispo de Munique, ele tomou como moto ou lema Cooperatores Veritatis [cooperadores da Verdade]. Este lema era precisamente o escolhido por S. José de Calasanz para indicar o espírito dos membros de sua Ordem, educadores dedicados às crianças nas suas escolas. A expressão é tomada da III epístola de João versículo 8. É acolhendo aos que pregam o nome de Jesus, que seremos cooperadores da Verdade, diz João. E o Papa é uma testemunha moderna das palavras de Jesus: Ele fala da Caridade da Verdade. Fazendo o bem, somos de Deus (3 Jo  11) afirma João, e assim seremos cooperadores da Verdade. O Espírito da Verdade não deve só mostrar a Verdade aos discípulos e ser testemunha da mesma perante o mundo, mas, dentro desse testemunho, entra o modo como essa Verdade é anunciada: por meio da caridade. A caridade é o amplificador que, no mundo moderno, tão surdo a outras maneiras de pregar a verdade, mostra-la-á com toda claridade, como diferente da mentira e hipocrisia que o dominam. Porém também a caridade ou o amor deve ser a lente com a qual devemos olhar os problemas do mundo e nossos problemas individuais. O aborto, a eutanásia, o relacionamento sexual julgam-se no mundo moderno partindo de bases diferentes do verdadeiro amor. Cortamos o vínculo fraterno que deve unir essas questões conosco e unicamente os julgamos do ponto de vista egoísta. Os princípios do mundo são a liberdade e a vantagem, esta última mascarada como felicidade: são os que dirigem o politicamente correto, o economicamente rentável e o socialmente desejável. Mas vemos que na convivência humana esses dois princípios [liberdade e vantagem] são insuficientes e até poderíamos dizer que constituem uma doutrina destrutiva socialmente. O amor, a entrega e o serviço são os únicos princípios válidos que unem e devem reger as mentes e governar as condutas para uma convivência pacífica. Princípios que aglutinam e não desagregam os diversos grupos humanos. Eles são a Verdade da vida. Por isso, como dizia um jovem, é hora de dizer basta já! Basta de consumismo, de dinheiro, de fama, de egoísmo; e vamos deixar passagem ao trabalho, à lealdade, ao bem comum. Vamos acreditar de novo na bondade das pessoas e viver de novo  o amor. Esse amor que constitui a essência divina revelada ao homem em Jesus; porque o Pai tanto amou o mundo que entregou seu Filho (Jo 3, 16). E foi esse mesmo Espírito Divino que por meio de Jesus afirma que veio não para ser serviddo, mas para servir e dar a vida em resgate (Mc 10, 45). Vida que encontraremos, perdendo-a,  em proveito dos outros (Mc 8, 35).  O KOSMOS: A palavra grega na realidade significa ordem, um sistema harmônico como amostra de beleza, do qual o universo é uma imagem perfeita pela harmonia dos astros e sua beleza noturna. Daí passou a determinar a terra, centro do mesmo, e a humanidade, parte essencial desta última. No evangelho de João, o mundo em geral, é considerado como inimigo do evangelho. Evidentemente que usando os princípios do egoísmo, anteriormente enunciados, o Espírito de Amor e Verdade não pode ser recebido pelo mundo porque o Kosmos não o vê, nem o sente; já que a vista do Espírito se identifica com o sentimento que ele deixa naquele que o recebe como presença viva. O mundo não o conhece: tudo que o Espírito pede e exige é absurdo diante de um egoísmo frontal que tem sido o deus do mundo ou o espírito do mesmo. O Espírito busca a verdade em princípios opostos aos do mundo. Segundo os princípios do mundo os outros estão para me servir e o domínio exercido sobre eles é a base do próprio engrandecimento e felicidade (Mc 10, 41). Por isso o politicamente correto, o economicamente rentável e o socialmente majoritário não devem ser as metas dos discípulos de Jesus. OS DISCÍPULOS devem reconhecer unicamente a base do amor e do serviço, como eticamente verdadeiros para lograr como fim a convivência humana. O outro, sua felicidade, seu bem-estar, serão a base de meu pensamento, de minha atuação como discípulo de Cristo, porque devemos amá-lo como a nós mesmos (Mt 22, 39). Jesus, pois, afirmará: vós, pois,  conheceis o Espírito, pois entre vós permanece e dentro de vós estará. O conhecimento do Espírito deu-se em primeiro lugar quando abandonaram tudo e seguiram Jesus (Mc 10, 28). Compreenderam que nesse seguimento e discipulado tinham encontrado as palavras de Vida Eterna, palavras da Verdade, una e indivisível, pois em Jesus está a luz e a luz é a vida do homem (Jo 8, 12). A fé, confirmada pelas aparições de Jesus, tornava os discípulos verdadeiros mestres da Verdade, essa Verdade que não era conhecida nem reconhecida pelo mundo, mas que espalhar-se-ia como fundamento do Reino em que Jesus era também caminho e vida.

ÓRFÃOS: Não vos deixarei órfão: estou vindo a vós(18). Ainda um pouco e o mundo não mais me vê, mas vós me vedes porque eu vivo e vós vivereis(19). Non relinquam vos orfanos veniam ad vos. Adhuc modicum et mundus me iam non videt vos autem videtis me quia ego vivo et vos vivetis. A palavra órfão significa abandonado e os apóstolos não se sentirão abandonados porque Jesus, além de voltar, lhes deixa o Confortador. O grego emprega o presente ercomai <2064> [erchomai] que a Vulgata traduz pelo futuro  veniam, virei. Indica que a presença de Jesus é imediata, com uma ausência temporal muito breve, isto é, minha partida não será definitiva, porque me vereis em breve, embora não me manifeste ao mundo. Porque eu vivo, também vivereis vós (19). Que significa esta última frase? O emprego em presente dos verbos indica uma tradução literal de uma linguagem semítica, que devemos interpretar temporalmente. Eu vivo seria o mesmo que eu estou sempre vivo e não vou morrer definitivamente. E a minha vida é causa de que a vossa esteja também viva e a morte não possa terminar a sua obra definitiva. Jesus aponta que a sua ressurreição é a causa da ressurreição de todos os discípulos.

NAQUELE DIA: Naquele dia conhecereis que eu no meu Pai e vós em mim como eu em vós (estou). In illo die vos cognoscetis quia ego sum in Patre meo et vos in me et ego in vobis. No grego falta o verbo, que temos colocado ao fim da frase como estou e que bem podia ser sou. Precisamente esse verbo não existe no aramaico como no hebraico e assim vemos como o texto é fiel ao original. A Vulgata coloca o verbo na primeira parte da frase correspondente: sum in Patre, assim corrigindo gramaticalmente o texto original. Que significa esta afirmação de Jesus? A tradução do estou não é completa. Com um exemplo o veremos melhor. Para dizer o livro é vermelho, em hebraico diríamos o livro vermelho. O verbo que falta é o verbo copulativo ser. Podemos, pois, traduzir a frase como eu vivo [sou] no meu Pai como vós viveis em mim e eu estou vivo em vós. É uma identidade de vida ou comunhão de existência que implica unidade de espírito, manifestada em pensamento e vontade, conseguida pela entrega total, pelo amor. Daí a conclusão do versículo seguinte. Com este versículo, assim como com Rm 8, 9-11 Jesus aponta para a inhabitação trinitária.

OS PRECEITOS: Quem conserva meus preceitos e os guarda, esse é quem me ama. Quem, pois, me ama será amado por meu Pai e eu o amarei e me manifestarei a ele (21). Qui habet mandata mea et servat ea ille est qui diligit me qui autem diligit me diligetur a Patre meo et ego diligam eum et manifestabo ei me ipsum. O evangelista será mais explícito em 14, 23 onde pressupõe o amor como base dessa inhabitação: o amor, que repetirá na sua carta em 1 Jo 4, 16. Leão XIII dirá: Deus, por meio de sua graça, está na alma do justo em forma a mais íntima e inefável, como em seu templo. E disso se segue aquele mútuo amor pelo qual a alma está presente em Deus e está nele mais do que acontece entre os amigos mais fieis, e goza dEle com a mais gostosa doçura. E esta união admirável, que propriamente chamamos de inhabitação, só em condição e não em essência, se diferencia da que constitui a felicidade no céu… morada que se dá na alma amante de Deus. Vivida experimentalmente [a manifestação de que fala Jesus] constitui o último degrau da mística. Essencialmente, segundo S. Tomás, consiste: 1º) numa presença física das Pessoas Divinas que produzem e conservam em nós a graça e os demais dons sobrenaturais e que ele denomina de presença dinâmica. 2º) Presença intencional que não é outra que a potestade de gozar de Deus pela inteligência e vontade em modo sobrenatural e amigável, como uma antecipação do gozo eterno. Essa presença intelectual e volitiva não é por motivos naturais, como são a razão e a submissão de uma criatura para com seu Criador, mas implica a fé e a caridade pelas quais nos encontramos com um Pai e gozamos de um amigo íntimo, que em nós inspiram um amor superior a todo outro conhecido. Por isso dirá Jesus que o modo dEle de permanecer entre os seus discípulos é o amor. O amor não só é símbolo, mas produz a união mais íntima e verdadeira. Portanto será no cumprimento dos preceitos que será reconhecido esse amor. Um modelo perfeito é o cumprimento dos planos do Pai por Jesus que por isso foi causa da complacência do mesmo. Também o discípulo que ama Jesus será amado do Pai e Jesus o amará e se manifestará a ele.

PISTAS: 1) O Espírito da Verdade instaurou no Ocidente o lema filosófico fundamental: Vita impendere vero [arriscar a vida pela verdade] que foi pela primeira vez enunciado por Juvenal. Hoje nos perguntamos se são realidades fundamentais o amor, a justiça, o próximo, a paz, ou pelo contrário, o poder, o prazer, o imediatismo e o lucro, os que medem o valor das coisas e das pessoas?

2) Nesta luta cada vez mais atual entre as trevas e a luz pretendemos encontrar um terreno neutro como é o agnosticismo e o relativismo de uma posição cômoda sem compromissos?

3) Uma modernidade que podemos denominar selvagem em que a liberdade cega os olhos para não ver que a verdade é custosa porque nos limita; e que se nos deixarmos guiar pela liberdade como único norte, terminamos na libertinagem, porque seremos nós os que põem os limites que aliás só a nós favorecem. De fato, esta libertinagem  está tomando conta da vida individual e social, destruindo a convivência e a paz.

4) Um olhar só para as ideias, sem se deter nos homens, é uma falsa doutrina porque coloca as coisas por cima das pessoas. As ideias, como os sujeitos, só serão boas se servirem para melhorar as pessoas. E o mundo só será melhor se as pessoas forem melhores.

5) Os momentos místicos de união são a prova mais relevante de que as palavras de Jesus eram verdadeiras. A manifestação de sua presença deu-se através dos séculos até os atuais em que sua presença foi sentida pelas almas místicas.

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