EPÍSTOLA (2 Tm 1, 8b-10)
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: A carta está dirigida a TIMÓTEO [=aquele que honra a Deus].Timóteo foi discípulo de Paulo, nascido em Listra [perto de Icônio, na Ásia Menor central], circuncidado, de mãe judia e pai pagão. Paulo encomendou-lhe as comunidades de Tessalônica, Macedônia e Corinto. Acompanhou Paulo a Jerusalém e, uma vez prisioneiro em Roma, necessitou da companhia de Timóteo. Após ser Paulo liberado, Timóteo o encontrou nas terras da Ásia Menor. Timóteo foi bispo de Éfeso. E ao denunciar uma festividade pagã, foi preso e morreu mártir. Ele é o receptor de duas cartas pastorais de Paulo, assim chamadas por tratar da organização eclesiástica, as obrigações do ministério e a unificação da doutrina e pautas que devem ser seguidas na administração das comunidades. Esta segunda carta a Timóteo tem sido chamada de testamento espiritual de Paulo. Foi escrita desde Roma, onde Paulo estava preso pela segunda vez, pouco antes de seu martírio. Chama Timóteo de meu caro filho e insiste em conservar a doutrina verdadeira intacta. Paulo se despede de seu discípulo enquanto espera a coroa do justo juiz que para ele está preparada. No trecho de hoje Paulo insiste na gratuidade de Deus e o sacrifício salvador de Cristo.
UMA PETIÇÃO: Sofre comigo com o evangelho segundo o poder de Deus(8b). Conlabora evangelio secundum virtutem Dei.SOFRE COMIGO: [synkakopatheson<4777>=conlabora] é o imperativo aoristo do verbo synkakopatheö, cujo significado é sofrer junto com, ser participante de uma aflição, junto à primeira parte do versículo, em que Paulo pede a Timóteo que não se envergonhe do evangelho, indica que, no seu tempo, os ministros do evangelho estavam sendo caluniados e perseguidos. Ordenado por Paulo como bispo de Éfeso é nessa ordenação que o poder de Deus deve ser achado, como fortaleza, caridade e prudência. O fato de Paulo estar na prisão era suficiente na época para se envergonhar de uma pessoa prisioneira da justiça. Daí o pedido do apóstolo para que Timóteo não se envergonhasse de quem aos olhos da justiça e do povo era um miserável, preso por algum crime indigno de um cidadão honesto.
A VOCAÇÃO: De quem nos salvou e chamou com vocação sagrada, não segundo as nossas obras, mas segundo seu plano e mercê concedida a nós em Cristo Jesus antes dos tempos eternos (9). Qui nos liberavit et vocavit vocatione sancta non secundum opera nostra sed secundum propositum suum et gratiam quae data est nobis in Christo Iesu ante tempora saecularia. E Paulo argui com uma prova irrefutável. A fortaleza, que deve robustecer todo prisioneiro do evangelho, provém de Deus; porque Ele chamou Paulo, salvando-o de sua intolerância e entregando-lhe um ministério como vocação sagrada [agia], que o ligava à divindade. VOCAÇÃO [klësis<2821>=vocatio] é um chamado, um convite, uma invitação, especialmente do chamado de Deus para adotar a salvação do Reino. Paulo não foi unicamente chamado para o Reino, mas sua vocação foi como ministro de Jesus Cristo (Rm 15, 16), do evangelho (Ef 3, 7 e Cl 1,23) e ministro do Novo Testamento (2 Cor 3,6). E Paulo reitera essa sua convicção de que foi um favor e uma mercê divina e não produto de méritos pessoais por boas obras, mas segundo os planos divinos que optaram por escolher em Cristo a salvação antes dos tempos perpétuos[pro chronön aiöniön]. O aiönios é adjetivo que significa sem fim, nem início.
A MANIFESTAÇÃO: Porém, manifestada agora através da presença de nosso Salvador Jesus Cristo, anulando certamente a morte, porém iluminando vida e imortalidade por meio do evangelho (10). Manifestata est autem nunc per inluminationem salvatoris nostri ça de Cristo Salvador Iesu Christi qui destruxit quidem mortem inluminavit autem vitam et incorruptionem per evangelium. Estes planos e desígnio de Deus são manifestados agora, no tempo de Paulo, pela presença de Cristo como Salvador. Um dos efeitos de sua ação salvífica é a morte da Morte. Não anula sua ação imediata, mas por meio da imortalidade pregada no evangelho, a vida será a vencedora. A morte será o último inimigo a ser vencido (1 Cor 15, 16). De modo que o triunfo sobre a morte é uma das verdades básicas do evangelho que a proclama e ilumina.
EVANGELHO (Mt 17, 1-9)
A TRANSFIGURAÇÃO
(Lugares paralelos: Mc 9, 2-13; Lc 9, 28-36)
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: Dentro da vida comunitária dos discípulos de Jesus, este momento da Transfiguração, como é chamado nas línguas vernáculas, é um fato especial. Os discípulos conviviam com um Mestre que era dotado de poderes extraordinários, como um profeta de Javé, mas não sabiam que ele era verdadeiramente o Deus conosco. E para esta experiência, Jesus toma seus discípulos mais íntimos, os três que foram sempre os chefes do grupo apostólico (Gl 2, 9) e as testemunhas de seu poder máximo de ressuscitar mortos (Mc 5, 37), mas também de sua fragilidade e temor diante dos sofrimentos e da morte em Getsêmani (Mt 26, 37). O fato de hoje é narrado pelos três sinóticos, sendo Lucas o mais independente entre eles, com mais detalhes ilustrativos, que apresentam o fenômeno como uma preparação para a paixão do Senhor.
DEPOIS DE SEIS DIAS: E depois de seis dias, toma Jesus o Pedro e Jacob e João, seu irmão, e os guia a subir, a um monte em extremo elevado, a sós (1). Et post dies sex adsumpsit Iesus Petrum et Iacobum et Iohannem fratrem eius et ducit illos in montem excelsum seorsum. Marcos e Mateus coincidem no tempo de seis dias, que são contados após a declaração de Pedro sobre o messiado de Jesus (Mt 13, 16). Após esta confissão, sabemos que Pedro não sabia nada sobre o verdadeiro ministério desse Messias que tão firmemente reconhecia. Podemos ver neste sucesso de hoje um outro reconhecimento, que tem como sujeito o próprio Deus. Deus se confessa, seria o subtítulo deste episódio. Lucas determina a origem da contagem do tempo, mas o intervalo é indeterminado: Passaram, pois, após estas palavras [a declaração de Pedro e o primeiro anúncio de Jesus de sua paixão] como oito dias. Quanto à divergência sobre o tempo transcorrido, não existe uma solução matemática a não ser que a contagem seja uma semana e que o sábado entre dentro da mesma ou caia fora. Parece mais importante a ligação lógica do depoimento humano de Pedro com o testemunho divino do monte, como se ambos estivessem ligados por um espaço de tempo breve. TOMA JESUS A PEDRO, A JACOB E A JOÃO: Mateus dirá que este último era irmão do anterior e Lucas coloca o nome de João antes do nome de seu irmão. Em todos os textos gregos o nome deste último é Iacobos. Este nome é o mesmo que Jacob do hebraico Ya`aqob < 03290>em grego Iakwb <2384>. O nome português Tiago, deriva do latim que por sua vez é uma latinização do nome hebraico Jacó [suplantador] porque nascendo depois de seu irmão gêmeo Esaú o suplantou, por meio de um prato de lentilhas, como primogênito, herdeiro da herança do pai. Santo Iago na pronúncia romance tornou-se Sant’Iago e daí São Tiago, de onde derivou o moderno antropônimo em português e espanhol, Tiago. Por uma falsa etimologia derivou a palavra San Diego originando assim o nome de Diogo. Com o decorrer do tempo o nome evoluiu em diversas línguas mantendo-se como Jakob em alemão, Jacques em francês, e James em inglês. De Jacome nasce o Jame ou Jaume e finalmente o Jaime que prevalece nos romances orientais da península ibérica. Pedro é o novo nome dado a Simão, filho de Jonas por Jesus que Mateus narra em 17, 18 e que o quarto evangelista dirá será chamado de Kefas ( que quer dizer rocha) (Jo 1, 43). João, sabemos que é o irmão de Tiago e filho, portanto, do Zebedeu. Estes três discípulos foram os que Jesus escolheu para momentos especiais, como a ressurreição da filha de Jairo (Mc 5, 37) e a sua agonia em Getsêmani (Mc 14, 33). E OS FAZ SUBIR: Esta é a melhor tradução do grego anaferei [levar para cima]. Indica que os chamou e pediu que o acompanhassem. A UM MONTE ALTO: Mateus nada diz da geografia do monte nem do nome do mesmo. Só que era alto. A tradição aponta o Tabor como sendo o monte da Transfiguração. Realmente desde Cesaréia ao Tabor há uma distância de 80 Km, facilmente alcançável em seis dias. O Tabor é um monte cônico, quase esférico, se levanta solitário frente à planície de Esdrelon e se eleva 500m sobre o vale que o rodeia. Seu cume oferece uma plataforma de 1200 m de comprimento por 400 de largura. Pode ser alcançada após uma hora de caminhada; e, do seu cume, se contempla uma das paisagens mais grandiosas e contrastantes da Palestina. Os árabes o denominam de Jebel et Tur [ monte dos montes]. Segundo vários estudiosos o monte foi lugar de cultos idolátricos a Baal Sedek [o senhor da justiça]. Recentes escavações confirmam a existência de um templo dórico na montanha. É por essa razão que a bíblia proíbe subir aos montes para orar, pois eles estavam dedicados a divindades pagãs. No AT o livro de Josué coloca o Tabor como ponto de convergência dos limites de três tribos [Zabulon, Neftali e Issacar] (cp 19). Em muitas religiões as montanhas tinham um caráter sagrado. Os israelitas não foram exceção. Foi nos montes Sinai e Horeb que Jahveh apareceu a Moisés e a Elias. E serão precisamente estes dois antigos profetas que aparecem a Jesus num outro monte: o Tabor. No episódio de Débora (Jz 4 e 5 ), que sucedeu no arredores do monte Tabor, vemos como nesse monte existia um culto a Jahveh (4, 6), pois manda as tropas se reunirem no monte, não para lutar, mas para rezar antes da batalha. Porque era o monte em que o redator de Dt 33, 18-19 escreve como bênçãos de Moisés: Prospera Zabulon em tuas expedições e tu, Issacar em tuas tendas! Na montanha em que o povo se reúne para pregar, eles oferecem sacrifícios. Tabor era a única montanha em que ambas as tribos tinham uma fronteira comum. O Tabor era a montanha em que os madianitas mataram os irmãos de Gedeão (Jz 8, 18). Depois de Débora, o ídolo da montanha parece que foi restaurado porque as tribos do norte continuaram a praticar um certo sincretismo de culto, iniciado com Jeroboão (930-910). Debelada a idolatria por Elias, não parece que teve um êxito total e assim, o profeta Oseias na segunda metade do século VIII clama: Ouvi isto, sacerdotes! Atende, casa de Israel, …fostes um laço para Masfa e uma rede estendida sobre o Tabor (Os 5,1). Jeremias considera o Tabor junto com o monte Carmelo como símbolos de preeminência, comparando a superioridade de Nabucodonosor como era a do Tabor entre as montanhas e o Carmelo sobre o mar (48, 18). Finalmente no salmo 89 : Tabor e Hermon se rejubilam a teu nome [Javé] (versículo 13). Não era um monte qualquer. Era um monte com uma tradição javista particular, que tinha sido retomada após um parêntese de sincretismo idolátrico. Jesus quer com sua escolha, mostrar um paralelismo exemplar com Moisés e Elias. À PARTE, SÓS: Lucas acrescenta para orar. Destaca Marcos a eleição e a particularidade de estarem os quatro sós, fora de qualquer outra pessoa que pudesse ser tomada como visão acompanhante a Jesus. À parte de serem os mais íntimos de Jesus, todos os três receberam apelidos com os quais seriam conhecidos pela primitiva igreja. Simão [=famoso] seria Kefas[=rocha] ou Pedro, e os dois filhos do Zebedeu [=Javé deu] seriam batizados por Jesus como Boanerges [filhos do trovão] (Mc 3, 17) ou filhos da voz de Deus, voz de vingança como diz I Sm 2, 10. Provavelmente foram assim denominados por quererem que o fogo descesse sobre uma aldeia de samaritanos, como vingança divina, por não quererem hospedar o colégio apostólico, já que este ia a caminho de Jerusalém. Nesta perícope serão testemunhas especiais da divindade de Jesus, que sempre acompanha o Filho de Homem, que, na realidade, é Filho do Deus (vivo). É por isso que Pedro poderá afirmar: Não foi segundo fábulas sutis [as contadas nas mitologias de gregos e romanos], mas por termos sido testemunhas oculares de sua majestade que vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo ( 2 Pd 16). Contrariamente ao que ordenavam a lei e o costume judaico, Jesus sobe ao cume de um monte alto. Não era para sacrificar, mas para estar a sós, já que essa região era como se fosse proibida e não se esperava que a multidão estivesse lá. Era o medo aos Bamá, os lugares cúlticos nos cumes dos montes, como em 1 Samuel 9, 13, em que os setenta retêm a palavra BAMÁ, onde se celebravam os banquetes rituais após os sacrifícios. Eram lugares, onde a deusa feminina da fertilidade, Asherá, estava representada por um poste de madeira e a divindade masculina ou Matsebá por uma ou duas colunas que a simbolizavam (2Rs 3,2), à semelhança dos totens indígenas. Seriam as duas colunas, Jokin (ele estabelecerá) e Boaz (em força) (2 Cr 3, 17), que estavam diante da porta do templo de Salomão, uma representação de Javé, como Deus masculino? Em Levítico 26, 30, Deus diz: ¨Destruirei seus bamoth¨. Antes da monarquia os lugares altos eram lugares de culto a Javé, como vemos em Samuel, no lugar antes citado. Depois da construção do templo por Salomão, os lugares altos representavam o envolvimento pecaminoso em cultos pagãos. Salomão construiu lugares altos para agradar suas mulheres (1Rs 11,7), que só 300 anos depois, na época de Josias, foram destruídos (2Rs cap 23). Jeremias ( Jr 19, 5) afirmará que as Bamoth [plural de bamá], que nos seus dias eram lugares de sacrifícios humanos, constituíram parte da razão da catástrofe de Jerusalém, ao ser conquistada por Nabucodonosor em 586 aC. Os samaritanos adoravam no monte Garizim (Jo 4, 20). Jesus, que repudiou o uso mercantil do templo, acostumava orar no alto das montanhas (Mt 5, 1).
A METAMORFOSE: E foi transfigurado diante deles e brilhou a sua face como o sol e também suas roupas tornaram-se brancas como a luz (2). Et transfiguratus est ante eos et resplenduit facies eius sicut sol vestimenta autem eius facta sunt alba sicut nix. A palavra empregada por Mateus é metermorföthe <3339> derivado de meta [entre ou indicando uma transferência ou seqüência] e morphóö [formar, modelar adaptar], indicando uma transformação do sujeito de maneira permanente, à diferença de metaschêmatizo, mudar ou modificar o aspecto de modo temporal. Metemorphöthe é também a palavra usada por Marcos. Lucas, porém, usa uma outra maneira de descrever o fenômeno da transfiguração: e aconteceu ao estar ele orando, a aparência de seu rosto, outra ( Lc 9, 29) [A tradução é o mais literal possível]. Marcos diz: E foi transfigurado na sua presença. A voz passiva do verbo indica uma ação divina. E, segundo o mesmo evangelista, a transformação ou transfiguração deu-se na presença dos três discípulos. A vulgata traduz transfiguratus est que as vernáculas traduzem por foi transfigurado, ou mudou de aspecto. A palavra grega significa uma mudança de forma ou de ser. O que podemos deduzir dos evangelistas é que a transformação do corpo de Jesus foi completa, tendo como base ou causa a oração, segundo Lucas. DESCRIÇÃO DO FENÔMENO: A) O ROSTO [prosopon]. O grego de Mateus, lampö <2989>, significa emitir luz, brilhar. Segundo o trecho de hoje, em Mateus, essa luz era como a do sol. Marcos usa o verbo stilbö, do qual temos o particípio stilbonta, indica brilhar, de modo que o planeta Mercúrio era chamado stilbontes, o brilhante. Lucas dirá que o aspecto do seu rosto era outro (9, 29). De tudo isso, podemos afirmar que o corpo de Jesus foi transformado em corpo de luz [doxa <1391> grego, gloria latino, que se traduz em claritas em Lc 2, 9 ou majestas em 9, 31], como diz Paulo dos ressuscitados, após falar dos diversos brilhos dos corpos, tanto celestes como terrestres (1 Cor 15, 40), e que no caso dos ressuscitados serão reluzentes de glória (1 Cor 15, 43). Essa glória [doxa ou majestas] é o resplendor com o qual foram vistos os dois personagens que apareceram junto a Jesus e do qual ele também participava (Lc 9, 31-32), pois segundo Mateus, seu rosto brilhava como o sol. Essa doxa da qual Pedro dirá que o temos visto em todo seu esplendor (2 Pd 1, 16). Essa mesma doxa, majestas, ou resplendor, era a que os israelitas viram no rosto de Moisés [dedoxasmenê ê opsis, resplandecente a aparência] após sair este da tenda onde se comunicava com Jahveh (Êx 34. 30). O texto original usa o verbo [kâran, que significa emitir chifres e, simbolicamente, emitir raios de luz] como vemos na famosa estátua de Moisés de Miguel Ângelo. A tradução inglesa NIV (New International Version), muito fiel aos textos massorético e grego, diz: his face was radiant [sua face estava radiante]. É o que os evangelistas dizem sobre Jesus e os dois personagens que com ele estavam. Os chifres eram símbolo da divindade, porque era nos animais, o touro, a força, o poder, que se atribuíam aos deuses. E se, como em Moisés, eram resplandecentes, o caso não admitia dúvidas. Era o poder divino que era transmitido a Moisés no decurso de sua conversa com Yahveh no tabernáculo. Não esqueçamos isto, que comentaremos mais tarde. B) OS VESTIDOS, [ himátia<2440> , vestimenta, vestidos ou garments], são os vestidos em termos gerais, embora, como particularidade, se usa também no lugar do clamis, clâmide militar ou manto em geral. Mateus dirá que se tornaram brancos como a luz (17, 2) e que a Vulgata traduz como a neve. Tomado de Marcos, 9, 3: E suas vestes tornaram-se brilhantes, extremamente brancas como neve, como nenhum alvejante da terra poderia branquejar. Lucas fala do vestuário no sentido de sua vestimenta, branca reluzente (9, 29). A tradução da Vulgata de Mateus [como a neve] é errônea do ponto de vista literal, mas conforme a realidade porque a luz não tem cor. Vamos explicar o alvejante de Marcos. Traduzido por fullo latino [pisoeiro], ou seja, o artesão que na base de golpes [no século XVIII substituído por uma máquina], desengraxava e amaciava os panos para depois serem alvejados com um alvejante, que recebe em inglês o nome de fuller´s earth, à semelhança do conjunto de cinzas que como lixívia [ou barrela], usavam nossas avós. Poderíamos traduzir o pisoeiro [espanhol bataneiro] sobre a terra, pelo fuller’s earth inglês e, portanto, alvejante, não o de uma pessoa mas o de um material, como era a lixívia? Sem dúvida. O outro evangelista, Lucas diz que sucedeu que a aparência de seu rosto ficou outra e sua veste brilhou de brancura. Assim era a cor das vestes dos anjos do sepulcro (Lc 24, 4). O branco era a cor da vitória sobre o pecado (Is 1, 18), a veste dos vencedores do cordeiro (Ap 6, 11), a cor do cavalo vencedor (Ap 6, 2), diferente da cor preta da fome (Ap 6, 5), ou esverdeada da morte (Ap 6, 8). Como curiosidade podemos relatar que era também a cor da túnica dos aspirantes a um cargo público, com ela como vestido, se indicava a ausência de corrupção dos chamados, por isso, candidatos [=que vestiam uma veste cândida ou branca]. Tudo isto indica que estamos numa nova dimensão da vida de Jesus. Do Jesus terreno, homem igual a nós, passamos ao Jesus celeste, fonte de luz como dirá o evangelista João (1, 9), com toda probabilidade uma das testemunhas da transfiguração. Na história eclesiástica, temos casos similares a este da transfiguração. A glória refletida no caso de Jesus era também um atributo que podemos ver em Moisés (Êx 34, 29). Essa transformação do rosto do grande líder era devida a sua conversa com Deus. Deus é luz e por isso os que a ele se aproximam recebem essa luz como parte integral de suas vidas. Daí a aureola dos santos que corresponde muitas vezes a fatos reais de suas vidas. A transfiguração tem, pois, na história, fatos reais que a confirmam. A Transfiguração é o modo de ver Jesus através da glória divina, que nele se manifesta no Tabor. Estando o verbo na passiva, significa que é uma obra de Deus e que, portanto, deve-se a uma atuação direta de Deus. A cor dos vestidos era um reflexo do resplendor interior do corpo que resplandecia como o sol. Segundo os comentaristas, a transformação de Jesus é uma prolepsis [antecipação] de sua ressurreição. Os judeus tinham a ideia de que todas as criaturas celestes se tornavam resplendentes na presença divina que estava revestida de luz (Sl 104, 2). Na ausência do Deus Javé, o próprio Jesus era a divindade presente.
ELIAS COM MOISÉS: E eis que foram vistos por eles Moisés e Elias, conversando com Ele (3). Et ecce apparuit illis Moses et Helias cum eo loquentes. A pergunta é como sabiam os três discípulos que eram precisamente Moisés e Elias? Sabemos que Moisés podia ser reconhecido pelo brilho de seu rosto, que, na figuração cristã, aparece com dois chifres de luz e que Elias era o profeta vestido como o Batista. Mas tanto um como outro não poderiam ser identificados unicamente por esses sinais, porque também estavam em majestade (em glória) segundo Lucas, ou seja, deslumbrantes de luz. Ambos, segundo a tradição, deviam voltar nos tempos do Messias. De Elias, temos o testemunho de Lc 1, 17 sobre o Batista: caminhará com o espírito e o poder de Elias; ou Jo 1, 21: és tu Elias? Perguntam ao Batista. De Moisés, temos as palavras do Dt 18,18: um profeta como tu suscitarei do meio de teus irmãos. Em I Mc 15, 41 os judeus nomearam Simão, chefe e supremo sacerdote, até que se erguesse um profeta fiel. Por isso também João, o Batista, é interrogado se ele era o Profeta (Jo 1,21). Os judeus não tinham, como nós, figuras em que se apoiar para distinguirem os patriarcas e profetas. Logo, ou foi no decurso da fala entre as três figuras, ou foi depois, o próprio Jesus que, perguntado, desvendou a personalidade de seus dois companheiros, embora antes de falar com Jesus, Pedro já sabia a natureza dos personagens (vers 4). Moisés era o protótipo da antiga lei, o maior profeta de Yahveh, conhecido e admirado como tal pelos judeus. Elias tinha sido o restaurador da lei e do judaísmo em tempos em que a idolatria parecia ter tomado a quase totalidade dos pensamentos dos israelitas de seu tempo. Sou o único dos profetas de Yahveh dirá ele antes do teste do Carmelo (1 Rs 18, 22). Ambos representavam a Lei, um no seu fundamento, outro na sua reabilitação. No mínimo, Jesus estava no mesmo nível que os dois profetas que formavam a coluna da religião de Israel. A preposição grega meta [junto a, ou com] indica que Elias era o acompanhante de Moisés, figura, pois, principal nessa visão. Ambos representavam o AT: a lei e os profetas. Jesus está rodeado, mas supera tanto a lei como os profetas, estes últimos interpretando-a como tradição. Os dois personagens estão com Jesus como interlocutores e, como diz Lucas, em glória, ou seja, resplandecentes como Jesus. Por Lucas também sabemos que a conversa era sobre a morte de Jesus em Jerusalém. Isso indica que essa morte era uma coisa prevista e determinada, da qual dependia o futuro do povo. O motivo da conversa, as palavras posteriores do Pai, indicam claramente que a morte de Jesus devia ser considerada como um triunfo, uma vitória, uma conquista, porém dolorosamente alcançada. Moisés e Elias, ambos profetas máximos, como interlocutores de Jesus avaliavam a conversa, como sendo palavra de Deus que reafirmava tudo o que era conversado. Eles foram vistos em glória ou majestade como alguns preferem traduzir a DOXA grega (Lc 9, 31), ou seja, deslumbrantes de luz. Luz que é imagem do relâmpago que precede a presença divina, porque era a realidade da abertura dos céus, acompanhada pelo trovão, a voz do Senhor (Sl 29,2-3) como apareceu no batismo de Jesus (Mc 1, 10). E essa voz também existiu no Tabor. Deus é luz (I Jo 1, 5) e é na sua luz que vemos a luz (Sl 36, 10). O fato da presença da luz, que precede à revelação divina, é confirmado pelas visões modernas em Lourdes e Fátima, entre outras aparições recentes.
AS TENDAS: Tendo, pois, respondido Pedro, disse a Jesus: Senhor é bom para nós estarmos aqui. Se quiseres, faremos aqui três tendas: para ti uma, e para Moisés uma e uma para Elias(4). Respondens autem Petrus dixit ad Iesum Domine bonum est nos hic esse si vis faciamus hic tria tabernacula tibi unum et Mosi unum et Heliae unum. A visão era estupenda e, como toda obra divina, deixava nos assistentes uma paz e satisfação únicas. O texto indica uma tradução de uma redação aramaica ou semita ao começar com respondendo, disse. Pedro pensava que estava no paraíso. O ambiente mais próximo em alegria e contentamento era o da festa das tendas ou tabernáculos. A semana da festa [Hag] ou festa das choças [Hag Sukkoth] era a grande semana de exultante alegria entre os judeus; era um verdadeiro carnaval judaico, entre cantos e danças de alegria, como comemoração dos tempos felizes do deserto em que o Senhor era o verdadeiro dirigente do povo. Era uma semana especialmente dedicada às crianças, cheia de símbolos ricos e coloridos. Erguia-se uma tenda ou cabana [suká] com uma estrutura improvisada de tábuas e teto de folhas e ramos, como eterna lembrança das habitações precárias utilizadas pelos israelitas, nos anos de peregrinação, através do deserto. A cabana estava decorada com frutas da estação outonal e a comida era servida dentro da própria cabana. Tendo em vista esta festa, Pedro pensa que uma coisa semelhante poderia se formar no alto da montanha, quer seja temporal ou permanentemente. Na mente simples de Pedro não existia outro termo de comparação mais exato do que a festa que tanto animava os judeus com sua alegria e felicidade.
A NUVEM: Ainda, estando ele falando, eis que uma nuvem luminosa fez-lhes sombra e eis que (saiu) uma voz, de dentro da nuvem, dizendo: Este é o meu Filho, o amado, no qual encontrei minha satisfação. Ouvi-o (5). Adhuc eo loquente ecce nubes lucida obumbravit eos et ecce vox de nube dicens hic est Filius meus dilectus in quo mihi bene conplacuit ipsum audite. NUVEM: Segundo o grego a palavra usada é NEFELE: Também temos nefos, esta última como palavra geral (nuvens diríamos em português) e nefele como massa limitada, uma nuvem bem formada com contornos definidos. Em hebraico temos `anan <06051> [nuvem nimbo] usada para a coluna de nuvem de Êx 13, 21, que no hebraico é nuvem densa, ou capa de nuvens baixas que preconizam tormenta. A vulgata latina fala da nuvem que serve de estrado quando o Senhor vem julgar seus inimigos ( Is 19, 1) cavalgando numa nuvem ligeira ou finalmente como em Mt 24, 30 o Filho do Homem sobre as nuvens do céu. A palavra ANAN sai 80 vezes no AT, indicando em 75 delas a presença de Javé no tabernáculo. É a nuvem que pousará sobre o templo em I Rs 8, 10-11, manifestando a glória de Javé. Essa nuvem era escura durante o dia para se transformar em nuvem de fogo à noite. Era a Shekiná do deserto. Manifestava a oculta face de Jahveh e era, porém, sinal visível, ao mesmo tempo, da presença divina (Êx 16,10 e Lv 16, 2) pousando sobre o Tabernáculo (Êx 40, 35) que era a morada de Deus com seu povo. Tanto estava ligada a Shekiná com o povo, que os comentaristas judeus afirmavam que ela estava também exilada após a destruição do segundo templo [ano 70 dC], sendo que a Shekiná, no Exílio, acompanhava o povo; e entre os homens santos israelitas da Europa oriental, existia o costume de vagar de cidade em cidade como mendigos e enlutados, a fim de poderem partilhar do Exílio da Shekiná expressado no exílio de Israel. Agora, a Shekiná está em Jesus e seus acompanhantes como estava em Moisés, que, segundo a tradição, (Êx 34, 29), o acompanhou de modo especial no momento de sua morte, envolvendo o corpo amorosamente nas suas asas. Esta glória divina era esperada para o tempo final: Então aparecerá a glória do Senhor, assim como a nuvem, como se manifestava nos tempos de Moisés e quando Salomão rezou para que o lugar fosse grandiosamente consagrado (2 Mc 2, 8). A nuvem rejeita as choças de Pedro. Deus tem sua moradia e sua tenda própria. Os personagens, dois deles falecidos, estão numa outra dimensão que não a de Pedro, esta, demasiada materialista, para entender vidas de homens não carnais, totalmente enobrecidas pelo Espírito (1 Cor 15, 44). A presença de Moisés e Elias claramente era um argumento de que existe vida e vida melhor, no além. O verbo episkiazo [episkiazousa autois, obúmbrans eos], que também usa Lucas, não significa necessariamente fazer sombra, que é seu sentido material, mas pode ser traduzido por toldar, encobrir: assim, traduziremos por os rodeou ou cercou-os. Em definitivo, os ocultou ou os envolveu, como traduzem os evangélicos, pois poderíamos pensar que, fazendo sombra, a nuvem era escura e o tempo era de dia; mas tudo isto está contra os textos recebidos. A VOZ: Existe uma semelhança com o batismo de Jesus. No batismo, Jesus recebe o aplauso de sua futura missão, que se inicia com a sua submissão ao rito de um inferior como era o Batista. É uma clara alusão à sua missão de servir aos homens. Aqui, ele recebe a confirmação da mesma missão. A voz é a fórmula desse novo batismo, transformando inteiramente seu corpo como imerso na luz da divindade. Deste batismo foram testemunhas os discípulos que participaram externamente, mas viram claramente a nuvem e a transfiguração de Jesus, que representavam a presença da divindade, tanto na cena externa como no interior de Jesus. A mensagem será a confirmação do messiado do Mestre que se torna oculto na sua morte em Jerusalém, como início do triunfo final: O seu reino começaria desde a cruz e teria como elemento básico e essencial a cruz, símbolo da humilhação e do sofrimento. Ao mesmo tempo em que se aprova o verdadeiro sentido do ministério messiânico, a voz confirma a superioridade de Jesus sobre o AT declarando: Este [unicamente este] é o meu filho, o amado. Hoje diríamos o único, segundo demonstra a parábola dos vinhateiros, em que o dono envia seu filho amado, o herdeiro (Lc 20, 13). Moisés e Elias se tornam os parceiros que hoje o acompanham e que outrora o precederam. Mas a quem devemos obedecer é a Jesus, que neste momento se encontra escolhido e ungido particularmente como verdadeiro e único Filho de Deus. Amado, como Isaac foi por Abraão, filho único a ser imolado, mas poupado (Gn 22,2) no último momento. Jesus também filho único, será imolado e não poupado; mas será depois ressuscitado. Também no monte, a exemplo de Moisés, os discípulos recebem o mandato que representa o Thelema tou Theou [= a vontade do Deus (vivo)] porque ele é o Logos tou Theou [= a palavra do Deus] que deve ser ouvida. Temos um novo decálogo, reduzido a um novo mandamento: aceitar a pessoa e a voz de Jesus que está no lugar do decálogo [Torá] e da tradição [Mishná]. FILHO: A palavra filho [‘yios, filius latino] designa o filho, dando como preeminência a legalidade da descendência, mais do que a biológica que tem como representativa a palavra teknon que representa mais o aspecto biológico do descendente. O AMADO: A palavra ‘o agapêtós, é traduzida ao latim por carissimus em Marcos, dilectus em Mateus e Lucas. Mais parece uma palavra legal, técnica, que indica o herdeiro, o único. A passagem é uma repetição da teofania do batismo com as mesmas duas palavras gregas [‘yuiós e agapêtós] que são traduzidas ao latim por filius e dilectus. Unicamente, que no latim e na maioria das traduções vernáculas, perdem-se as ênfases do grego com os artigos determinantes. A tradução própria seria o filho meu, o amado. No batismo, a voz do Pai encontra suas delícias nele. No monte, o Pai pede obediência ao filho. Duas questões podemos deduzir desta última intervenção: 1a) O Filho era natural, ou significava unicamente uma filiação como a dos reis do AT? Porque também em Sl 2, 7 o rei, recém-coroado, recebe de Jahvé o mesmo apodo de filho. Talvez o sobrenome de o amado, único, seja a solução. Não existe no AT a união de filho com amado, e só encontramos as passagens do novo testamento dos evangelhos nas duas teofanias relatadas. 2a) Que aqui esse filho referido a Jesus, toma o papel de Moisés e de Isaías juntos. A voz do Pai, que é Deus, o indica como única fonte de direito por assim dizer. Ele se transforma em representante único de Deus na terra e a voz de Jesus é a voz de Deus. DELE ME ORGULHO: Jesus cumpre a vontade do Pai e representa os planos da grande obra salvífica que está prestes a revelar no seu êxodo em Jerusalém. O Pai deixa nas mãos de Jesus o novo Reino, que se mostra independente da tradição e dos profetas. O Pai oferece o Reino ao Filho, porque o Filho oferece a vida ao Pai incondicionalmente. Esse reino é visto em seu esplendor pelas testemunhas escolhidas. Na antiga Esparta, uma mãe disse a seu filho, que partia para guerra: Ou com este [o escudo] ou sobre este, indicando que morto seria repatriado como herói sobre o escudo. Jesus, nessa batalha contra o mal, estaria sobre o seu escudo: a cruz. E essa morte era vitória para os novos filhos e alegria de enorme satisfação para o Pai comum.
O TEMOR: E, tendo ouvido, os discípulos caíram sobre seu rosto e temeram grandemente (6). Et audientes discipuli ceciderunt in faciem suam et timuerunt valde. Com razão, os discípulos atribuem a voz de dentro da nuvem a Jahveh. Por isso, procedem a praticar a proskinese, a adoração, diante do fato de estarem na presença divina. E existia entre os judeus a tradição de que não se podia ouvir a voz de Javé e ficar com vida: Não nos fale Javé para que não morramos (Êx 20, 19). E se continuarmos a ouvir a voz de Javé, nosso Deus, nós vamos morrer (Dt 5, 25). Daí o temor de que estavam possuídos.
JESUS OS ANIMA: Então, tendo se aproximado, Jesus os tocou e disse: Erguei-vos e não temais(7). Et accessit Iesus et tetigit eos dixitque eis surgite et nolite timere. Os discípulos estavam a certa distância de Jesus. Porém, ao ver os discípulos com o rosto em terra e tremendo de medo, Jesus, complacente, se aproxima para animá-los. Estavam como desmaiados e sem forças para reagir. Mas não deviam temer pelo que tinham visto e do qual eram testemunhas. A voz de Jesus era uma voz amiga e não a voz da nuvem como a de um Deus ditando um mandato de vida ou morte. O ofício de Jesus era o de amigo e protetor da humanidade, de modo especial com respeito a seus discípulos. Não temais, foi a palavra de J. Paulo II o vigário desse Jesus que estava revestido da autoridade do Pai, com as palavras: Escutai-o. Antes de chegarmos a Ele, Jesus se aproxima e sua voz é a voz da tranquilidade e da esperança. Recorda a famosa jaculatória: Coração de Jesus, em vós confio.
JESUS SÓ: Tendo, pois, elevado seus olhos, não viram ninguém senão Jesus só (8). Levantes autem oculos suos neminem viderunt nisi solum Iesum. Os evangelistas enfatizam o fato de que uma vez ouvida a voz do Pai, Jesus ficou sozinho, desaparecendo as outras duas figuras. Pode ser que a realidade seja uma imagem futura da nova era. Nem Moisés nem Elias seriam os condutores do novo povo de Israel. Jesus era o único a ser ouvido e seguido. De fato, quem dos cristãos de hoje se lembra de ambos os profetas do AT, como sendo os líderes de sua religião?
O SILÊNCIO: E estando descendo eles do monte, ordenou-lhes Jesus dizendo: A ninguém digais a visão até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dentre os mortos(9). Et descendentibus illis de monte praecepit Iesus dicens nemini dixeritis visionem donec Filius hominis a mortuis resurgat. Reduzidos a puro acidente histórico, Moisés e Elias, a lei e os profetas, Jesus ordena que as testemunhas calem até o momento da sua ressurreição. Porque as revelações extraordinárias não são absolutamente necessárias e só podem ser compreendidas nos acontecimentos que vaticinam e representam. Só na ressurreição, os discípulos puderam entender a transfiguração e a morte de Jesus. Realmente o silêncio dos apóstolos era fundamental. Primeiro, porque, sendo poucas as testemunhas, a sua fala poderia favorecer um descrédito geral. Segundo, porque unicamente a ressurreição forneceria luz suficiente para entender tanto a paixão como a transcendência da epifania do Tabor e o significado da Ressurreição. Terceiro, porque uma evidência que destacava a pessoa de Jesus seria uma blasfêmia contra a fé judaica que descartaria ainda mais a boa nova do evangelho. Daí que o silêncio sobre o messiado de Jesus fosse necessário nesse tempo em que sua missão ainda não podia ser conhecida, pois faltava a morte e ressurreição, constituindo o segrego messiânico de Marcos. A morte de Jesus, instigada pelas autoridades judaicas, não era unicamente um meio divino de sabedoria que confundia a sabedoria humana, mas também uma ruptura com a antiga Lei que tinha se transformado em costumes humanos (Mt 15, 6).
PISTAS: 1) Jesus nos mostra nesta perícope sua doxa, mas também seus sofrimentos, para indicar que aquela era fruto destes últimos. O mérito do filho do homem, ou melhor, do Homem Jesus, é precisamente sua paixão e sua morte em obediência. A unicidade da pessoa com o Verbo não tira nada da vontade ou da liberdade do homem Jesus, de forma que podemos dizer que ele é um de nós em tudo. Poderia ser eu mesmo o escolhido como tal filho de Homem. Por isso, esse mesmo mérito o temos que alcançar de modo individual e não coletivo. Portanto, a glória da ressurreição que também se manifestará em nós, é dependente de nossa obediência, que inclui especialmente a nossa própria paixão e morte. Nosso espelho é Jesus homem. E se a ele, Deus o exaltou devido à sua obediência (Fp 2, 9), essa será também a base de nosso destino.
2) Pedro dirá em sua epístola, que ele mesmo foi testemunha ocular da majestade [atributo próprio da divindade] de Jesus. Porém, isso só foi uma confirmação da palavra de Deus. A fé será sempre um dom do Espírito por cima, não em contra, de nossa razão e sentidos. Já que só a fé dá uma resposta razoável ao que vemos e sentimos como coisa fora do racional e de nossa comum e diária experiência. O milagre confirma a fé, não a produz. Também os fariseus e escribas eram testemunhas dos milagres e prodígios de Jesus, porém não os quiseram interpretar corretamente.
3) Claramente, Jesus é o centro de um mistério, compreendido em parte pelos apóstolos, testemunhas dos fatos. A Lei nova não suprime a antiga, senão que a completa e aperfeiçoa: o temor como impulso da ética, é substituído pelo amor; a materialidade deixa passo ao espírito, mais abrangente e completo.
4) A nuvem: Deus se manifesta no meio da escuridão. Ouvimos sua voz, porém não vemos seu rosto. A voz de Deus é seu Logos, seu Verbo feito carne e carne frágil. Sua voz não é o trovão do Sinai, mas a voz de um homem simples e comum. Jesus é o homem para todos, mas é o Unigênito para o Pai e o Senhor para os que nele depositam sua fé, esta, como norma de sua vida.
5) O mandato novo é de obediência ao representante de Deus na terra. Quem me ouve, ouve o Pai. Mais: quem a vocês ouve é a mim que ouve (Lc 10, 16). Não somos divinos, nem únicos, para determinar nosso ego e nossas circunstâncias. Por isso todo aquele que quiser ter uma vida própria e independente não segue a norma dada por Jesus: a da obediência. A regra da vida plena não é a conveniência, mas a obediência, manifestada nas palavras da nuvem. A vontade divina manifestada na Palavra que desceu do céu, demonstra a vontade divina que é a norma das vidas dEle dependentes. O não serviam [não servirei] se repete de contínuo em muitas vidas e é a origem de sua condenação; mas quem busca a Palavra e encontra o plano de Deus em sua vida é como quem encontra o tesouro que a enriquece (Mt 13, 44).