Comentário Exegético – IV Domingo do Tempo Comum – Ano A

EPÍSTOLA (1 Cor 1, 26-31)

(Padre ignácio, dos padres escolápios)

POBREZA DOS CORINTIANOS: Olhai, portanto, vossa vocação, irmãos; porque não muitos sábios segundo a carne; não muitos poderosos, não miitos bemnascidos (26) Videte enim vocationem vestram fratres quia non multi sapientes secundum carnem non multi potentes non multi nobiles. Paulo está descrevendo a sabedoria da cruz. Ou seja, esse instrumento de humilhação e sofrimento, de modo especial escolhido para salvar o mundo pela sabedoria divina. A cruz explica os planos ocultos de Deus e desvela sua economia ou política de salvação. Segundo essa economia divina, são os mais necessitados os que são preferidos para receber os favores de Deus [a graça, segundo o termo usado por Paulo]. Jesus ora comprazido e agradecido dizendo: Te louvo ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e letrados e as revelaste aos pequeninos (Mt 11, 25). É por isso que Paulo nota com ironia, como esta predição de Jesus se cumpria perfeitamente em Corinto: Nem SÁBIOS [sofoi], nem PODEROSOS [dynatai] nem NOBRES DE NASCIMENTO [eugenei], ou seja, os que o mundo inveja como brilhantes e poderosos, os que formam o modo de pensar do povo. De fato, tanto no tempo de Jesus como nos tempos apostólicos, sabemos que, os que receberam a nova doutrina foram gente humilde, a começar pelos pastores e os pescadores, escolhidos como apóstolos, aqueles pelo pai e estes pelo Filho. Tenhamos en conta que os pescadores eram considerados uma classe desprezível entre os judeus, um pouco superior à dos pastores; porque em seu ofício, a pesca de peixes sem escamas que eram impuros segundo a lei para logo destripar os peixes bons, o que era também um trabalho de impureza já que lidavam com animais mortos e suas vísceras os tornava impuros. Por isso eram evitados pelos verdadeiros israelitas. Sabemos como grande número dos primitivos cristãos eram da classe dos escravos e libertos. Atualmente encontramos mais fé e verdadeira entre a gente humilde do que entre os doutores escolastizados.

A ESCOLHA DIVINA: Mas Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e as débeis do mundo escolheu o Deus para envergonhar as fortes (27). Sed quae stulta sunt mundi elegit Deus ut confundat sapientes et infirma mundi elegit Deus ut confundat fortia. Paulo agora resume num parágrafo único toda a sabedoria divina em oposição à humana: As loucuras do mundo foram escolhidas para CONFUNDIR OS SÁBIOS. Essa regra e normas divinas as encontramos nos dias de hoje. Zola será o escritor que trama uma maquinação fantástica para a cura de Madame Marie Ferrand Bayllie. Ela não se cura e morre. Prefere a mentira a ter que aceitar o milagre. Era o pensar dos sábios da época e também o de Alexis Carrel. Mas o médico ateu viu diante de seus olhos como a moribunda se restabelece em poucos minutos. Carrel foi a Lourdes para demonstrar a patranha do que em Lourdes acontecia e de que tudo era uma mentira e uma fraude; mas com ânimo de que se ela curava então ele acreditava. E Deus lhe tomou pela palavra. Pois ante os olhos atônitos de Carrel, a mulher se curou da peritonitis tuberculosa que a tinha em estado de coma. Carrel deu testemunho diante de seus colegas e a reação dessa intelectualidade foi furiosa. Todo o âmbito acadêmico se transformou numa borrasca hostil que o obrigou a se trasladar para o Canadá e abandonar o exercício de sua profissão para dedicar-se à criação de gado. Somente uma necessidade do hospital local o obrigou a exercer sua profissão de médico, onde seus trabalhos e novas descobertas mereceram o Nobel em 1912.  AS FRAQUEZAS DO MUNDO: Se cumpre a promessa de Jesus a Santa Gertrudis: como os doutos não me compreendem, fabricando um Deus conforme seus intelectos, por isso prefiro me mostrar às mulheres. E se estudamos as grandes aparições de Maria, Juan Diego em Guadalupe, Bernardette em Lourdes e os três pastores em Fátima, vemos que do ponto de vista humano, são gente insignificante, como era a virgem de Nazaret, que exclamou: Ele teve consideração da insignificância de sua escrava (Lc 1, 48).

DEUS ESCOLHE O QUE O HOMEM DESPREZA: E as ignóbeis do mundo e as desprezíveis escolheu (o) Deus e as que não são para que as que são destruir (28). Et ignobilia mundi et contemptibilia elegit Deus et quae non sunt ut ea quae sunt destrueret. IGNÓBEIS [afenë<36>=ignobilia] literalmente sem família, que pode ser traduzido por nascido de baixa posição, ignóbel, pária, como são os intocáveis ou dalits entre as castas da Índia. Em alguns lugares da Índia existem os invisíveis, que só podem sair às ruas à noite. DESPREZIVEIS [exouthenëmena <1848>=contemptibilia] do verbo exoutheneö que significa não ter em conta, desprezar totalmente, como em Lc 18, 9 que fazia o fariseu com os outros homens que ele não considerava honestos [justos]. NÃO SÃO: Em Rm 4, 17, o apóstolo fala de que Deus vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem, palavras provavelmente referidas à criação. Mas parece que Paulo está pensando nos gentios, que, segundo os judeus, nada eram como vemos no apócrifo de 2 Esdras 6, 56-57: Enquanto os outros povos que nasceram de Adão, tu tens dito que eles são nada…Olha,  Senhor, que esses pagãos que foram reputados como nada começaram a ser nossos senhores e  a devorar-nos. Este dito farisaico parece concordar com o que Paulo afirma neste versículo, e que será uma espécie de profecia do futuro cristianismo: os gentios – que não são, ou contam no momento- serão os que substituirão os judeus –os que são- destruindo o antigo pacto que visava unicamente os filhos de Israel.

FINALIDADE: De modo que não se glorie toda carne em sua presença (29). Ut non glorietur omnis caro in conspectu eius. Nem os ministros [evangelistas] nem os ministrados [gentios de baixa estirpe] têm grande sabedoria, riqueza ou poder, de modo que o êxito não pode ser atribuído à eficiência pessoal. Ninguém pode dizer: Senhor, tu me escolheste porque era o melhor; mas todo o contrário: escolheu o lixo do mundo e  a escória de todos (1Cor 4, 13), de modo que Tácito declara em seus Anales que os cristãos do fim do primeiro século eram de baixa condição. TODA CARNE: é uma expressão semítica para todo homem de modo que ninguém possa se vangloriar diante de Deus; porque, como diz Paulo, quem dá o crescimento é Deus (1 Cor 3, 6).

CRISTO SABEDORIA DE DEUS: Pois dEle sois em Cristo Jesus, o qual foi feito para nós sabedoria da parte de Deus, também justiça e santificação e redenção (30). Ex ipso autem vos estis in Christo Iesu qui factus est sapientia nobis a Deo et iustitia et sanctificatio et redemptio. São duas afirmações que têm suas consequências: a primeira é que pertencemos como sagrados a Deus por causa de Cristo. A segunda é que esse Cristo é causa das qualidades com as que devemos nos revestir do novo homem, considerado digno da presença do espírito de Deus em seu interior. Essas faculdades são sabedoria de Deus, que consiste essencialmente na cruz. Justiça que para o Deus do NT é misericórdia que em nós pede como filhos, segundo Lc 6, 36: sede misericordiosos como vosso pai é misericordioso.  E finalmente, é por ele que estamos livres da escravidão do pecado e da morte, pois pagou o preço dessa liberdade com seu sangue, com sua vida, morrendo inocente, como culpado, para que vivessem os que culpáveis, nele encontraram a inocência. SABEDORIA [sofia<4678>=sapientia] Qual é a sabedoria da cruz? Quando, como destino na terra, Juan de Yepes pediu ao Senhor como prêmio sofrer e não morrer, ele entendeu perfeitamente a sabedoria da cruz e por isso pode trocar seu nome de Juan de S. Matias por Juan da Cruz. JUSTIÇA [dikaiosynë<1343>=iustitia] que, segundo Paulo, representa a limpeza de todo pecado, merecida pela cruz de Cristo e oferecida no santo batismo em seu Espírito [ele vos batizará em Espírito (Mt 3, 11)]. SANTIFICAÇÃO [agiasmos<38>=sanctificatio] agiasmos propriamente é consagração,  para a qual era necessária uma purificação que tornava imaculada a vítima ou o objeto a Deus reservado. Dai que se tornou sinônimo de Holiness em inglês, o adjetivo com o qual o Papa é designado, mas que em espanhol dizemos Santidade, sem que por isso declaremos que o Papa não peca ou não possa pecar. É, pois a consagração radical de todo batizado ao serviço divino, que conleva por parte do homem a séria intenção de cumprir os preceitos divinos. REDENÇÃO [apolytrösis<629>=redemptio] é a liberdade pelo pago do preço do resgate devido. Éramos escravo do pecado e da morte e fomos resgatados pelo preço do sangue de Cristo (Ef 1, 7).

A VEERDADEIRA GLÓRIA: Para que, como está escrito, quem se gloria, glorie-se no Senhor (31). Ut quemadmodum scriptum est qui gloriatur in Domino glorietur. Com estas palavras, Paulo afirma duas coisas: a primeira, que o livro de Jeremias, citado aqui, pertence ao conjunto de livros inspirados, chamados Escritos ou Escritura.A segunda, é que o verdadeiro prestígio e reputação que provém  de fatos ilustres não é produto de esforços humanos mas uma dádiva divina que como dirá Paulo em Rom 4, 2-4 no caso de Abraão, tem como base, não as obras, mas a fé e por isso não pode se vangloriar, pois a jstificação recebida não foi resultado de méritos, mas imputada; ou seja, obra da graça e favor divinos. E em Rom 8, 29 desde o início predestinou, chamou, justificou para finalmente glorificar a quem de antemão foram chamados segundo o seu propósito.  Dizia santa Terezinha que nossos passos estão determinados pela amorosa vontade de Deus, de modo que praticamente andamos como uma criança a quem a mãe segura em seus braços a sua criança enquanto a ensina a andar. E Teresa de Jesus propõe como base da humildade esta proposição: Todo bem procede de Deus e todo mal é nosso. Se acaso deveríamos gloriar-nos em nossas debilidades como diz Paulo em 2 Cor 12, 9, pois Deus mostra seu poder e amor preferentemente nas fraquezas humanas. É o bom pastor que busca a ovelha perdida, abandonando as outras que estão no redil.

EVANGELHO (Mt 5, 1-12)

(Lugar paralelo Lc 8, 20-23)

AS BEM-AVENTURANÇAS

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Dois evangelistas narram o que se tem chamado as bem-aventuranças. Mateus como parte do sermão da montanha, pois foi desta cátedra que Jesus falou (5,1) e Lucas que coloca o pequeno discurso paralelo numa planície (6, 17). Isso indica que a circunstância é redacional, independente das palavras e idéias a expressar. Também há uma grande diferença entre as oito ou nove bem-aventuranças de Mateus e as quatro de Lucas. Ambos, porém, usam a mesma palavra makarioi para designar os contemplados como prediletos do reino. Que significado tinha nos lábios de Jesus essa palavra e de que idéias hebraicas era tradução, de modo que os ouvintes a pudessem entender ? O grego makários significa tanto ditoso ou feliz como bendito do verbo makarizo que significa declarar afortunado.  No primeiro caso, indicaria uma situação determinista da vida mesma, sem ligação com ulteriores fins ou propósitos. No segundo caso, a palavra tem um conteúdo teológico de modo que implica uma providência divina que, pelo contraste com o sentir comum dos dirigentes religiosos, apontava uma nova era completamente revolucionária em perspectivas religiosas. Esse é nosso caso. No final do capítulo IV, em que Jesus percorre a Galileia pregando nas sinagogas a metânoia e a fé na Boa Nova. Agora, pela primeira vez, ele enfrenta as multidões. Não são unicamente os judeus, mas também acodem os gentios de Transjordânia, dos arredores de Tiro e de Sidônia, e da Idumeia (Mc 3, 8). Reunia-os especialmente a fama de curandeiro de Jesus e escutavam sua voz como a de um homem enviado por Deus. Na primeira parte do discurso, Jesus anuncia a esperança dos desvalidos [pobres]: São as bem-aventuranças. Logo apresenta a metânoia, conversão, com uma nova moral iniciada com a frase se vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus (5, 20). Por isso retifica a mesma dizendo: ouvistes que foi dito; eu, porém vos digo (5, 21). Logicamente era necessária uma conversão ou metânoia para esta nova ética que Jesus apresenta. E são os capítulos 5, 6 e 7 os que narram a chamada radicalidade cirstã. A fé racional da crítica não pode substituir a fé razoável eclesiástica, como afirma o Papa atual, pois seria a nossa razão o princípio de nossa vida religiosa e não a fé. A fé racional seria o mesmo que acreditar na ciência, como afirma Bacon, e não a fé transmitida pela boca dos apóstolos e profetas como fundamento da mesma (Ef 2, 20). Hoje, em que damos máxima importância à crítica [científica] devemos ler esta página das bem-aventuranças com a fé simples de quem ouve a verdade da boca do Filho de Deus, com fé religiosa [razoável=acreditável pelo testemunho; mas não racional=como imposta pela evidência crítica da razão].

O MONTE: Tendo, pois, visto as multidões, subiu ao monte e tendo-se ele assentado, se aproximaram a ele seus discípulos (1). Então, tendo aberto sua boca, os ensinava dizendo (2). Videns autem turbas ascendit in montem et cum sedisset accesserunt ad eum discipuli eius. Et aperiens os suum docebat eos dicens. Os comentaristas unem o sermão da montanha com a entrega da Lei por Javé-Deus no monte Sinai no A T. MONTE: Oros em grego, é usado por Mateus como um ambiente paralelo ao lugar em que Moisés recebeu a lei no Sinai, sendo que o cumprimento do primeiro mandamento receberia uma gratificação especial para os que fielmente o guardavam (Ex 20, 6). Jesus também, do monte, ensina a nova lei a seus discípulos. Porém, antes deve escolher o novo Israel, e daí as chamadas bem-aventuranças. Os que por elas são alcançados serão o novo Israel e, portanto, podem ser designados como verdadeiramente felizes. Jesus começa, pois, por essa distinção em que derruba o velho conceito de etnia e descendência como parte para formar a elite de Jahvé, e contrariamente, suscita um novo modelo de povo de Deus, cuja base é precisamente o infortúnio material. A eles Jesus abre um novo mundo de esperanças e felicidade. A lei, para os judeus, não era unicamente o nomos [preceito], mas também abrangia declarações, propostas e fatos de Deus em relação com seu povo escolhido. Neste sentido total e amplo, Jesus determina primeiro o âmbito de seus verdadeiros escolhidos. Logo propõe seus nomoi [preceitos], precedidos de uma retificação aperfeiçoada da antiga lei: ouvistes que foi proclamado, eu, porém vos digo (Mt 5, 21). Como mestre da nova Lei, Jesus adota uma postura frequente entre os rabinos ou mestres em Israel. Ele fica sentado, tendo seus discípulos e ouvintes ao seu redor, geralmente de pé, pendentes de suas palavras. Os rabinos explicavam a lei segundo as tradições [ouvistes que foi dito], mas Jesus explica a nova Lei como quem tem autoridade para propô-la e anunciá-la como novidade feliz a um público geralmente esquecido e desprezado. Constituía a esperança messiânica, já atuando como realidade nova e definitiva. Finalmente, uma palavra sobre o monte: Realmente, segundo Lucas, Jesus subiu ao monte para orar durante a noite (Lc 6, 12). Na manhã, escolheu seus doze discípulos e logo ao descer do monte, se deteve num lugar plano onde a multidão o esperava para ser curada de suas doenças.  Lucas, pois, circunscreve as bem-aventuranças a uma planície, embora tivesse como fundo o monte do qual acabava de descer. Também Lucas diz que elevando os olhos aos discípulos dizia (Lc 2, 20).

AFORTUNADOS: Ditosos os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus (3). Beati pauperes spiritu quoniam ipsorum est regnum caelorum. A palavra, usada tanto por Mateus como por Lucas, no início de cada versículo é MAKARIOI, em grego, plural de Makarios <3107>. Logicamente Mateus e Lucas usam a palavra como tradução de um original aramaico usado por Jesus. Qual é essa palavra e que significado se encerra na raiz da mesma? 1º) No AT: . Existem no hebraico bíblico dois verbos com o sentido de abençoar. Um deles é Barak <01288> que é só empregado por Deus no Piel [intensivo ativo] indicando uma ação contínua, como em Gn 1, 22 : E Deus os abençoou [yebarek] dizendo: sede fecundos. Usando a mesma raiz, Deus abençoou também o dia sétimo. A setenta traduz por eulogesen louvar ou falar bem, que no inglês é traduzido por blessed. De barak temos baruk [bendito] e a palavra beraká [ bênção], cujo plural é berakoth. Todas as berakoth começam com Baruk Ata Adonai que pode ser traduzido por louvado seja meu Senhor [=Deus]. Os setenta traduzem baruk [bendito] por eulogetos ou eulogemenos (Dt 28, 3 +). O outro é Ashar <0833> cujo significado primitivo é avançar; também no piel significa pronunciar feliz; e pela primeira vez o encontramos em Gn 30, 13 em boca de Lia: Feliz, eu [beasheri], porque chamar-me-ão ditosa [asheruni] todas as mulheres. Nos setenta, os termos em colchetes são  traduzidos por makaria e makarizousin, a mesma raiz empregada nas bem-aventuranças. Não entramos em maiores detalhes. Só com o dito podemos dizer que barak [eulogeo<2127>,] é a palavra reservada para a ação divina, quando declara bendita uma pessoa; e asher [makarios<3107>] é a ação do povo que vê uma circunstância que torna feliz uma vida. Logicamente essa circunstância provém de Deus como causa principal. (Os números correspondem aos de Sprong). Os evangelistas têm muito cuidado nas palavras com que escolhem as ipsissima verba Christi e, portanto acreditamos que se ambos os evangelistas escolheram makarios como tradução das palavras de Jesus, este não quis dizer que eram abençoados por Deus, mas declarados felizes pelos homens. Jesus quer mudar o modo de pensar dos discípulos para que estes pudessem ver nos pobres, nos aflitos, nos humildes, nos famintos, uma classe de predileção divina que os tornava desejáveis e invejáveis. Jesus, praticamente, na sua primeira lição pública define a conduta humana diante da pobreza tanto material como espiritual do mundo que o rodeia. 2º) No grego clássico, a palavra makarios inicialmente significava livre dos cuidados e preocupações de todos os dias. O significado é afortunado. Assim, a ilha de Chipre é chamada de ‘e makaria [a afortunada] por ser uma ilha verde e próspera. Homero chama os deuses de ‘oi makarioi [os felizardos]  em comparação com os humanos que devem trabalhar para poder viver. Na linguagem poética, descreve a condição dos deuses e daqueles que compartilham da existência feliz deles. Aos poucos, perdeu seu significado original para se tornar num equivalente de nosso Feliz. Quando acompanhada de tu ou vós, se transforma em bem-aventurado, ou bem-aventurados, indicando um elogio por parte dos conhecedores do caso. Como tais, são parabenizados os pais por causa dos seus filhos, os ricos por causa de suas riquezas, os sãos pela sua saúde, os sábios por causa de seu conhecimento, os piedosos por causa de seu bem-estar interior, os mortos por terem escapado à vaidade das coisas. Indica, pois, como motivo, uma circunstância especial que acompanha uma certa classe de homens e que por esse requisito podem ser considerados afortunados. 3º) No grego bíblico makarios traduz o hebraico esher [felicidade], ashar [declarar bem-aventurado], ou asheré [bem-estar]. Vemos o asheré traduzido por makarios no salmo 2,12: Bem-aventurados todos os que nele se refugiam; ou o salmo 32,1 e 2: Bem-aventurado aquele…e bem-aventurado o homem a quem o Senhor não atribui iniquidade. Em ambos os casos makarios é usado como tradução de asheré. O homem é bendito, e especialmente esta bênção, provém de Deus. No NT  é claro que substituímos o asheré hebraico por Makarios. Makarios aparece 13 vezes em Mateus e 15 em Lucas e apenas duas em João: Bem-aventurados, pois, se praticares estas coisas(13, 17) e Bem-aventurados os que não viram e creram (20, 29). No caso de Mateus, os bem-aventurados não são os discípulos; mas, estando a frase em terceira pessoa é qualquer um que se encontra em semelhantes circunstâncias. A estimativa predominante do Reino de Deus leva consigo uma inversão de todas as avaliações costumeiras. E todos os que compartilham dessa experiência da chegada do Reino, nas circunstâncias reveladas na frase inicial, serão benditos por esse dom recebido de Deus de modo gratuito. 4º)  Mas vejamos as traduções: Dichosos ou Felices em espanhol, Beati em latim e italiano, Fortunate em inglês, embora a KJ traduzirá Blessed, Felizes em português e Hereux em francês. É uma palavra que indica completa satisfação ou felicidade. Todas elas cumprem as palavras de Dt 33, 29 em que o hebraico asherê é traduzido por makários  e por ditoso : Ditoso [makários] tu Israel. Quem como tu povo vencedor? Deus é o escudo que te protege, a espada em marcha que te conduz ao triunfo. Ou o salmo 144, 15: Ditoso [makarios] o povo que tem tudo isso; ditoso [makários] o povo cujo Deus é o Senhor. Em Baruc 4,4 temos: Felizes [makarioi] somos Israel, pois podemos descobrir o que agrada o Senhor. 5º) Como Conclusão podemos afirmar que a palavra grega makários tem o significado de homem, cuja vida é invejada por ser um privilegiado por Deus nos seus planos beneficentes. Em definitivo, podemos facilmente traduzi-la por BENDITO ou ABENÇOADO. Deus está no meio, por ser a causa de todos e verdadeiros bens. O Makarioi de Jesus entra, pois, nos planos divinos, como causa principal ao ser Deus o observador que escolhe seus eleitos, como declara Maria em seu canto: Exultou meu espírito em Deus meu Salvador porque ele fixou seus olhos na insignificância de sua escrava (Lc 1, 47-48). Até agora no mundo católico, quase de forma geral, as bem-aventuranças eram vistas como prêmio oferecido às virtudes dos que mereciam semelhante elogio. Hoje não são consideradas como recompensa de virtudes, mas como escolha divina, que em sua misericórdia quer favorecer os mais desamparados. Não é a virtude interior alcançada, que obtém um prêmio, mas são as circunstâncias que favorecem a ação divina em sua misericórdia. Deste ponto de vista, podemos enxergar todo o contexto como sendo uma política divina que dá uma reviravolta na totalidade do pensar e atuar humanos. Jesus, em nome de Deus, como seu profeta, declara quais deveriam ser chamados de ditosos ou afortunados. Assim começa a nova economia que inicia uma nova visão do mundo dos sofridos e despossuídos. Esta situação, no lugar de ser uma situação de infortúnio, ou um estado aparente de desdita, é, pelo contrário, uma condição de sorte, porque as riquezas divinas estão à disposição dos que se supõem ter herdado o azar como condição de suas vidas. Como diria Paulo, na fraqueza é que se manifesta (mais) o poder [de Deus] (2 Cor 12, 9). Por isso, todas as bem-aventuranças terminam com um porque em que Deus entra como causa ativa, subentendido na passiva do verbo correspondente, passiva que era praticamente usada só para atuações divinas. Talvez a melhor tradução seria: Sois abençoados por Deus vós os… O ESQUEMA: temos em cada bem-aventurança uma prótasis [primeira parte de uma poema teatral] e uma apódosis [explicação]. A prótasis ou primeira parte de cada oração é uma circunstância da vida, independente da vontade da pessoa respectiva. A apódosis é a explicação do porquê e como a sorte lhes favorece. Como caso curioso podemos ver que as quatro primeiras começam com a letra pi em grego: Ptochoi [mendigos], penthountes [chorantes], praeis [mansos] e peinountes[famintos]. Quando se sabe que a kabala era característica da interpretação das Escrituras, há uma pequena razão para pensar que Mateus, legista e intérprete da lei, tivesse alguma razão, por nós hoje desconhecida, de seguir seus ocultos princípios. PTÔCHOI: No AT ptochos aparece perto de 100 vezes e são a tradução de 7 palavras hebraicas: 1º) `anav  <06035> é sinônimo de humilde, especialmente quando em forma adjetivada acompanhado de Jahvé. Com seu número de Sprong <06035>  aparece 24 vezes, especialmente nos salmos e em Isaías, a começar por Moisés que é declarado o mais humilde, ou mais manso dos homens como traduz a vulgata. O anav desse número é geralmente traduzido por prays [manso](12), penes [pobre] (11) e tapeinós [baixo] (1). Na vulgata temos mites (6) mansuetus (6) e pauper (12). Existem duas frases em que anav  acompanha terra anave heretz. E que em ambos são traduzidos por prays ou mansos. 2º) ‘ani [37 vezes] <06041> que tem o significado de pobre, humilde, modesto, oprimido. A primeira vez que aparece é em Ex 22, 24: Se emprestares prata ao meu povo, ao pobre [ani e ptochós] que está contigo. Quando não se menciona o opressor, a palavra significa realmente pobre material, os que não têm terra. A Setenta traduz, indistintamente, ani por pobre ou humilde. 3º) `anah <06033>. A única vez que anah sai é em Daniel 4, 27: redime tua iniquidade para com os pobres <06033>  em grego penetön [=dos pobres].  4º) dal [22 vezes] <01800> baixo, fraco, pobre, magro. Fisicamente dal significa fraco e passa a ser empregado para as classes sociais mais baixas como camponeses, pobres, necessitados, sem importância. 5º) ebyon [11 vezes] <034> significa pedinte de esmolas, mendigo; ou seja, os muito pobres e sem lar. 6º)   rush [11 vezes] <07326> necessitado, pobre, é uma palavra que se emprega como contraste de rico. 7º) Misken.<04542>. Nos tempos mais modernos usa-se misken, um termo que os mendigos orientais empregam para definir a si mesmos. Que deduzimos então? Se o mendigo é precisamente o ebyon e equivale ao endeês [menesteroso em grego] o ptochós de nossa bem-aventurança pode ser pobre no sentido de desvalido, sem recursos, cujo único goel [defensor] era Jahvé,  em oposição aos ricos que dependiam de suas riquezas como base fundamental de suas vidas. Os textos mais modernos descartam o pobre material e traduzem o Ptochós como humilde, ou humilde de espírito (AV), ou os que têm o coração de pobre (francesa). A melhor exegese será, sem dúvida, a feita por Maria: Depôs poderosos de seus tronos e aos humildes [de baixa condição] exaltou. Cumulou de bens os famintos e despediu ricos de mãos vazias. Parece que Jesus aprendeu bem de sua mãe esta política divina que tão bem se realizou na sua família. Os rabinos louvavam a simplicidade e a humildade, mas nunca a pobreza porque, segundo eles,  nenhum dos males podia se equiparar ao mal da pobreza; daí que Mateus, legista e conhecedor das tradições judaicas, teve que acrescentar uma explicação ao simples fato de pobreza. Pois para esses mestres da Lei a riqueza era o prêmio justo da virtude e a pobreza era considerada como legítimo castigo. Porém, a pobreza entra nos planos de Deus e a sua aceitação coloca os pobres como escolhidos às portas do Reino do qual Jesus era o arauto ao proclamar as condições que o limitavam, segundo Is 61,1: Ele me enviou a anunciar a boa nova aos pobres [ptochoi em grego e humildes nas versões mais modernas como a italiana]. Na Historia do Israel antigo, após a economia inicial de troca, uma vez consolidada a monarquia, o dinheiro tomou conta da economia e muitos dos agricultores passaram a depender dos homens das cidades. Este empobrecimento não só se tornou um problema social, mas religioso como fruto da quebra da Lei, tornando-se uma injustiça, atacada pelos profetas do século VIII aC. que ameaçavam com o juízo divino os ricos que eram culpados. E é nesta situação histórica que podemos entender o significado de pobre e necessitado. O pobre que sofre injustiça porque outros se tornaram gananciosos, volta-se indefeso e humilde a Deus em oração, pensando que a ajuda divina em suas necessidades é a base da glória a Deus. Pobres, são os que se voltam a Deus em suas necessidades pois é um Deus-protetor dos pobres (Sl 72, 2): Com justiça ele [o rei] julgue o teu povo, salve os filhos dos indigentes [anawim e ptochoi] e esmague seus opressores. No salmo 132, 15 diz: De pão fartarei seus pobres [anawim e ptochoi]. A desgraça do exílio levou temporariamente ao emprego das palavras pobre e necessitado como termos coletivos para o povo. No judaísmo tardio, tanto a pobreza material como o aspecto da sua espiritualização têm características novas: Todos os grupos religiosos tinham suas formas especiais de obras de caridade. Nas sinagogas havia uma organização para ajuda dos pobres, existindo esmolas públicas semanais. Cada sexta feira, aqueles que viviam na localidade, recebiam dinheiro suficiente da cesta dos pobres [quppah] para 14 refeições ; os estrangeiros recebiam comida diariamente da comida dos pobres [tamhuy]; esta comida tinha sido coletada antes, de casa em casa, pelos oficiais dos pobres. Na diáspora, as sinagogas frequentemente estabeleciam uma comissão de sete para esse serviço, como fizeram os apóstolos em Atos 6, 1-6. A distribuição das esmolas era considerada particularmente meritória, se feita na cidade santa. A semelhança entre hoje e antigamente é tão grande –escreve J. Jeremias- que há algumas dezenas de anos encontravam-se leprosos, pedindo esmolas nos seus lugares habituais, no caminho de Getsêmani, fora dos muros da cidade. Em Jerusalém a mendicância concentrava-se em torno do Templo, como vemos em At 3, 1-8. Como temos visto, os setenta traduzem anawim por ptochoi. Portanto, esta palavra perdeu o significado de mendigo para denotar o homem indefeso, que só tem como avaliador Jahweh e que nele depositou sua inteira confiança. A palavra pobre não significava a mesma coisa para um grego que para um judeu. Para o grego era um mendigo; para o judeu era aquele que não possuía terras (Ex 22, 24). Naturalmente, neste último caso, os pobres eram também gentes desprovidas de influência social, frequentemente exploradas e humilhadas. Em grego, temos a palavra Ptochós [mendigo] com necessidade de pedir esmola para subsistir e a palavra Penes, o pobre que não é rico, mas tem necessidade de trabalhar para poder viver. Como temos visto, ao explicar as diversas palavras usadas no hebraico, pobres podem ocupar o lugar da palavra anawin, que tem um significado contrário ao de rico, com conotações religiosas de confiança em Deus. TO PNEUMATI: que pode ser traduzido em espírito ou de espírito. Evidentemente, o espírito é o espírito humano. Portanto, temos: Ou pobres de espírito, que significaria acanhados; ou pobres por espírito, por eleição, pessoas estas que aceitavam a pobreza como natural ou como voluntária.  O texto grego presta-se, pois, a duas interpretações: 1) pobres quanto ao espírito 2) pobres pelo espírito. A primeira pode ter um sentido pejorativo como homem de qualidades diminuídas. Ou um positivo como aqueles desapegados do dinheiro, embora o possuam em abundância, sentido este excluído pelo próprio Jesus em Mt 6, 19-24 e pela condição imposta ao jovem rico. Na tradição judaica, os termos anawim/aniyim designavam os pobres sociológicos, que punham sua esperança em Deus  por não achar apoio, nem justiça na sociedade. Jesus recolhe este sentido e convida a escolher a condição de pobres [opção contra o dinheiro e a posição social] entregando-se nas mãos de Deus. O termo “espírito” na concepção semita, conota sempre força e atividade vital. Neste texto, denota o espírito do homem. Na antropologia do AT o homem possui “espírito” e “coração”. Ambos os termos designam sua interioridade; o primeiro, enquanto dinâmica, sua atividade em ato; o segundo, enquanto estática, os estados interiores ou disposições habituais que orientam e matizam sua atividade. A interioridade do homem passa à atividade enquanto inteligência, decisão e sentimento. Dado o que Jesus propõe, é uma opção pela pobreza, e o ato que a realiza é a decisão da vontade. O sentido da bem-aventurança é, portanto “os pobres por decisão”, opondo-se aos “pobres por necessidade”. Transpondo o nome decisão pela forma verbal, tem-se “os que decidem escolher ser pobres”.  A vulgata usa pauperes spiritu do grego ptochoi to pneuma. A tradução da bíblia protestante na sua VA [versão autorizada] é: Bem-aventurados, os humildes em espírito. As bíblias católicas conservam a palavra pobres e traduzem pobres de espírito ou em espírito e algumas pobres de coração. Duas traduções fazem uma exegese particular: A versão AL [América latina] os que têm o espírito de pobres e a francesa: ceux qui ont um coeur de pauvre [que têm um coração de pobre]. A bíblia de King James traduz poor in spirit e comenta que ptochós é uma pessoa que não pode se ajudar, ao contrário de pénes, que,  sendo pobre, pode se virar, como dizem. E comenta: o primeiro passo para ser abençoado é a admissão da própria inutilidade espiritual. Enquanto Mateus dá uma explicação sobre o significado de Ptochoi [pobres], Lucas nada diz sobre a natureza da pobreza, aludida por Jesus na primeira bem-aventurança. Segundo Lucas, é a pobreza material a que abre as portas do Reino. Segundo Mateus, essa pobreza tem um matiz necessário: é a pobreza fomentada no espírito, no desejo, no interior ou pensamento, ou tomada como objetivo na vida, que implica não considerar as riquezas materiais como finalidade da vida. Na realidade, ambos os termos podem ser vistos com uma convergência: a pobreza material é um pré-requisito para a pobreza espiritual, muito mais difícil de se conseguir quando a riqueza é o berço em que fomos aninhados. Uma interpretação moderna é de que os homens só podem ser abençoados por Deus quando diante dele se comportarem como mendigos às portas de sua misericórdia. Vejamos duas interpretações: 1ª) Do ponto de vista católico e fundamentada em Mateus: a) a primeira Bem-aventurança seria a bênção divina para os que escolhem ser pobres, porque no lugar da riqueza, estes terão a Deus por seu único Rei, que por sua parte escolhe os válidos e preferidos entre os pobres e oprimidos. No texto de Mateus podemos interpretar pobres no espírito como aqueles que não têm ambições de riqueza, que não se deixam levar pela avareza. b) Finalmente, pobres no espírito podem significar aqueles que carecem de qualidades humanas. c) Qual delas é a mais correta na interpretação das palavras de Jesus? Segundo a maioria dos autores,  Ptochoi traduz o hebraico Anawim  que Jesus  explicará em Mateus 6, 19-21; 24 em que Jesus rejeita o desejo das riquezas e as antepõe ao serviço devido a Deus, já que não podemos servir a dois senhores. Quando da recusa do jovem a abandonar suas riquezas, Jesus comentará que é difícil para um rico entrar no Reino, pois na realidade ele está dominado pelo senhor contrário ao verdadeiro Senhor: Deus (Mt 19, 16+). E é nesta última situação que as palavras de Lucas adquirem o verdadeiro valor como Bem-aventurança. d) Um último comentário: Pelo que Mateus nos dá a conhecer sobre o sermão da montanha parece que as bem-aventuranças foram redigidas sobre a frase tão repetida neste capítulo V: Ouvistes que foi dito aos antigos; eu, porém vos digo. Isto é: nas sinagogas vos foi ensinado; porém, a verdade é outra diferente que eu vos declaro agora. Por isso a melhor tradução, sob o ponto de vista exegético, seria: Ouvistes que vos foi ensinado que os ricos eram benditos de Deus; eu porém, vos digo que são os mais pobres os escolhidos e os que verdadeiramente são os benditos de Deus, que na terra vão constituir seu Reino. De fato, Paulo dirá aos de Corinto: Não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa… Deus escolheu o que no mundo é vil e desprezado… a fim de que aquele que se gloria, glorie no Senhor. (1 Cor 1, 26-31). A bênção era tão inusitada para a época em que a pobreza era considerava pior que a lepra como castigo divino, que Mateus ou o seu copiador, se sentiu obrigado a introduzir um pequeno parêntese explicativo para restringir a pobreza a limites aceitáveis pelos seus leitores e assim fala dos pobres de coração que hoje chamaríamos pobres sem ambição, e que os evangélicos traduzem por humildes de espírito. Porém, devemos manter o original de Lucas que fala dos simplesmente pobres, indigentes, porque a bênção divina é tanto mais completa quanto mais miserável aparecer a condição humana. Assim se cumpre o dito de Jesus que afirma ter vindo salvar o aparentemente perdido. Como consequência, não devemos desprezar esses mendigos que tratamos de vagabundos, porque eles merecem um lugar de destaque no reino, e nosso amor para com eles só será um espelho do amor de Deus exemplificado nesta bênção. Em termos gerais, podemos considerar que se Lucas é o taquígrafo das palavras de Cristo, Mateus é seu intérprete e catequista. Daí as diferenças. Segundo as palavras de Jesus, citando, em Lucas, Isaías 61, 1: Ele me enviou a anunciar a boa nova aos pobres [anawim e ptochoi, o latim mansueti,  que traduz o italiano umili e a VA quebrantados] os pobres poderiam ser os aflitos por suas necessidades materiais. De fato, as classes inferiores, escravos e necessitados se beneficiaram do evangelho em forma tal, que Jesus teve que afirmar que dificilmente um rico entraria dentro do esquema do mesmo. Serão, pois, os pobres materiais os sujeitos da bem-aventurança embora devam ser excluídos da mesma, os que se rebelam contra sua pobreza e não a aceitando, rejeitam os planos de Deus que prefere os deserdados aos ricos e opulentos. 2ª) A evangélica de Robert H Mounce; em resumo será: Jesus exclama que não são os ricos e poderosos, mas os pobres e humildes de quem se pode dizer, na verdade, que são bem-aventurados. A apreciação de Jesus das coisas que constituem a vida, como deve ser vivida, ressalta em forte contraste com a sabedoria convencional… Na linguagem hebraica, pobre não era apenas a pessoa em desvantagem econômica, mas todos quantos, em sua necessidade, apelam a Deus em busca de ajuda ( Sl 69, 32 e Is 81, 11). Estes são os anawim, “os humildes pobres que confiam na ajuda de Deus”. Pobre de espírito significa depender totalmente de Deus para ajuda segundo o Salmo 34, 6: Clamou este pobre e o Senhor o ouviu; salvou-o de todas as suas angústias. REINO DOS CÉUS: A promessa mais explícita, como esperança de cada Bem-aventurança, é a entrada no Reino, que Mateus chama dos céus, especialmente explicitada na primeira e na última, oitava e final, da lista por ele apresentada. Mateus é praticamente o único evangelista que chama reino dos céus [15 vezes] enquanto os outros dois denominam Reino do (sic) Deus. Em que consiste esse Reino que parece ser a base da pregação de Jesus? Nas suas parábolas Jesus o descreve como um banquete nupcial (Mt 22,1+), como um precioso tesouro (Mt 13, 44). Mas, em que consiste? No AT só encontramos uma vez e em grego a frase Reino de Deus [basiléia theou] no livro da Sabedoria que não é admitido como canônico pelos evangélicos: Ela [a sabedoria] guiou por sendas retas o justo [Jacó], que fugia da ira de seu irmão [Esaú], lhe mostrou o reino de Deus e deu-lhe o conhecimento  das coisas santas [significando o governo do mundo por meio de seus anjos e em particular a bondade de Deus para com o patriarca] (Sb 10, 10).  Por Daniel, especialmente no capítulo 7, sabemos que os quatro reinos procedentes do mar [do abismo, símbolo do mal] foram substituídos pelo reino que procedia das nuvens do céu [de Deus]. Era o Reino dos céus segundo Mateus ou Reino de Deus do qual Jesus se diz representante, assumindo a figura de Filho do Homem (Dn 7, 13). Das palavras de Jesus dificilmente saberemos a resposta positiva; sabemos quais são as pessoas que entram facilmente [pobres, crianças] (Mt 5,3 e 19, 14) e quais as que têm dificuldade [ricos, autoridades religiosas] (Mt 19, 23 e 21, 31) . Sabemos que o Reino exige uma honestidade própria [mais estrita que a dos escribas e fariseus] ( Mt 5, 20). Que para um escriba era necessária uma espécie de renovação como novo nascimento, que é da água e do espírito ( Jo 3,5). Um reino que implica uma nova relação com Deus, não em forma aparente e externa, mas interior (Lc 17, 21). Um reino que consiste essencialmente em que a vontade divina seja a norma indispensável da vida (Mt 6, 10). Um reino que se mostrará patente após a morte de Cristo porque muitos dos ouvintes de Jesus estarão presentes a seu início visível (Lc 9, 27) para o qual haverá sinais prévios (Lc 21, 31). Reino que terá Pedro como supremo supervisor (Mt 16, 19). Os apóstolos, seguindo esta linha de Jesus, nos dizem que o Reino consiste em honestidade, paz e alegria no E. Santo (Rm 14, 17), não em palavras, mas em poder (1 Cor 4, 20). Não em comilanças e bebedeiras, mas em honestidade, paz e gozo no Espírito Santo; que nem luxuriosos, nem idólatras, nem adúlteros, nem depravados, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem injuriosos herdarão o mesmo (1 Cor 6, 9-10); coisa que repetirá Paulo em Gl 5, 21. Trabalham pelo reino os apóstolos e com eles os que os ajudam (Cl 4, 11). Deste reino, que podemos chamar na sua face terrena, chegamos ao definitivo ao eschaton do qual temos a palavra de Jesus que beberá do fruto da vide quando chegar o Reino de Deus (Lc 22, 18). Este é o reino que Jesus admite como próprio e do qual, como gozo definitivo, promete participar aos que nele confiam (Lc 23, 42-43). Podemos, pois, responder à pergunta qual é esse reino que a eles é prometido? Sem dúvida, que eles serão a maior e melhor parte desse novo povo de Deus que constitui o Reino por Cristo fundado e do qual ele era Senhor. Não é sem uma idéia proposta e preconcebida que Mateus escolhe no monte onde pronuncia a novidade do reino: os doze que deveriam ser os novos pais das novas tribos do novo Israel, não como genitores materiais mas como pais espirituais, dos quais todos nós recebemos a nova vida no Espírito. TÊM A DEUS POR REI: Esta é a tradução preferida pelos modernos intérpretes. Assim, o grego Basileia não significa aqui reino mas ‘reinado’. “Seu é o reinado de Deus” quer dizer que esse reinado se exerce sobre eles, que somente sobre eles age Deus como rei. A pobreza a que Jesus convida é a renúncia a acumular e reter bens, a considerar algo como exclusivamente próprio; esses pobres estarão sempre dispostos a compartilhar o que têm. A opção final que Jesus propõe, realiza o prescrito pelo primeiro mandamento de Moisés: Não terás outros deuses diante de mim (Dt 5, 7). A idolatria concretizava-se na posse da riqueza (6, 24); por isso o enunciado desta bem-aventurança é porque estes  e não outros, têm a Deus por Rei. A opção proposta pela primeira bem-aventurança leva à sua perfeição a metânoia  ou emenda, pois quem escolhe ser pobre, renunciando a monopolizar riquezas, e com isso, à posição social e ao domínio, exclui de sua vida a possibilidade de injustiça. É a visão da teologia da libertação. CONCLUSÃO: As palavras de Jesus são um convite a refletir de forma nova sobre fatos que consideramos desafortunados, mas que o evangelho torna afortunados. Entre eles a pobreza, considerada como um castigo divino, mas que agora devemos ver como uma circunstância providencial, uma verdadeira bênção do céu, porque facilitará a entrada no reino dos que a sofrem.

OS QUE CHORAM: Ditosos os que pranteiam. Eles serão consolados(4). Beati qui lugent quoniam ipsi consolabuntur. O latim e a maioria das traduções modernas modificam a ordem desta bem-aventurança colocando-a em terceiro lugar. Mas que significa o verbo grego penthountes<3996>? Ele significa propriamente lamentar os mortos ou seja prantear, derramar lágrimas por alguém, estar de luto. Precisamente a palavra luto deriva do latim lugere de onde luctus.O grego pentheö [lugere latino] sai 4 vezes nos evangelhos: Duas em Mateus e uma em Marcos e Lucas. É traduzido por lugere, enquanto o pranto ou choro como o de um menino é klaiö. Pedro chorou [eklausen, ploravit]  amargamente após suas negações (Mt 26, 75). As carpideiras, ou pranteadeiras, choravam [klaiontas, flentes] na casa de Jairo por causa da morte da filha (Mc 5, 38). Lucas, neste lugar paralelo, usa klaiö em vez de pentheö de Mateus (Lc 5, 21). Sobre pentheö temos  Mt 9, 15 que diz que os amigos do noivo não podem estar de luto no dia da boda do mesmo. Marcos diz que a Madalena anunciou a Ressurreição aos que estavam lamentando [penthosin, lugentibis] e chorando [klaiousin, flentibus]. Os mesmos dois verbos sucessivos usa Lucas em 6, 25.  Também o grego admite como tradução os que se lamentam ou estão afligidos, como aceitam traduções modernas. Poderíamos traduzir por os que sofrem. A razão que motiva esta bem-aventurança é a de que encontrarão consolação a sua dor. Logicamente o pranto não é devido a uma dor física mas a uma perda de uma pessoa amada ou de bens estimados necessários para a vida: um infortúnio, uma desgraça. Alguns traduzem: os que sabem o que significa a tristeza. É o próprio Deus que será seu consolo, segundo Is 61, 2: A consolar todos os que choram. Lucas, como a vulgata de Mateus, traz esta bem-aventurança em terceiro lugar e a palavra usada é Klaiontes [o latim flentes, derramando lágrimas] que como sempre traduz muito literalmente o grego. O texto não diz as razões que motivaram as lágrimas. Mas no texto de Isaías, citado por Jesus quando do início de sua missão, encontramos: que foi enviado a consolar [parakalesai] os que estão tristes [penthountas]. Usa, pois, Mateus os dois verbos que a setenta, a bíblia-guia dos primitivos cristãos, emprega. Poderíamos afirmar que o consolador é o próprio Jesus na sua função de Messias Salvador, ou Cristo. Ele toma as funções divinas atribuídas a Deus na passiva do verbo correspondente. Recorda a passagem: Vinde a mim todos vós que estais cansados…e eu vos aliviarei(Mt 11, 28).

OS MANSOS: Ditosos os mansos porque eles herdarão a terra (5). Beati mites quoniam ipsi possidebunt terram. PRAEYS <4239>: é palavra própria dos mansos, benignos, não violentos, o mites ou mansuetus latino, que aceitam sua fragilidade e sua situação social sem revolta, mas com a confiança em Deus que será o último fautor da História. É uma imagem tomada do Salmo 37, 11: Pois os mansos herdarão a terra e se deleitarão na abundância da paz. É notável como as palavras prays e klëronomeö são também as usadas pelo salmista. O sentido claro é que definitivamente o Reino é um reino de paz e que os não violentos são os herdeiros desse reino que substitui o antigo Israel, a verdadeira terra bíblica. Por isso, Jesus afirma que os contrários do Reino são os violentos que estão a destruí-lo (Mt 11, 12). No tempo de Jesus os Zelotas pensavam fosse a terra [nome dado à Palestina pelos israelitas] matéria de conquista e guerra. Jesus, porém, toma a palavra do profeta no salmo 37, 8-9 para indicar que não é a violência que conquista a terra. Deixa a violência, abandona o furor, não te inflames: só farias o mal; porque os maus vão ser extirpados e os que aguardam o Senhor possuirão a terra. De Si mesmo dirá que devemos aprender porque é manso [prays] e humilde [tapeinos] de coração (Mt 11, 29). De novo temos a presença de Jesus nesta bem-aventurança, agora como modelo humano e não como Deus que cumpre uma promessa. Esta bem-aventurança é uma antecipação da número 7: os fazedores da paz. Só que neste último caso a situação é ativa e na nossa 3a bem-aventurança o sujeito é passivo: pacífico. Terra [gë] era o termo com o qual declaravam os judeus a porção geográfica que Jahweh tinha dado a eles por herança (Dt 1, 36 e Nm 26, 53) que Dt 9, 29 identifica com o povo de Israel, de modo que podemos afirmar que unicamente os pacíficos ocuparão o espaço dos que pertencem ao Reino.

FOME E SEDE DE JUSTIÇA: Ditosos os famintos e sedentos de justiça, porque serão saciados (6).Beati qui esuriunt et sitiunt iustitiam quoniam ipsi saturabuntur. Esta bem-aventurança está refletida, mas de modo material, na segunda de Lucas: Os famintos [peinontes] agora, pois serão saciados. Esta oposição à materialidade de Lucas nos descobre uma interpretação espiritualista de Mateus das palavras de Jesus. Ao mesmo tempo, Mateus conecta com o AT segundo sua proposição de que Jesus veio não para revogar a Lei mas para completá-la (Mt 5, 17). São duas as passagens de Isaías que falam sobre sede e fome: 55, 1 e 65, 13. Especialmente nesta última Jahweh se refere a seus servos que terão comida e bebida em abundância. Mas que significa a justiça que é a fonte ou motivo de sede e fome? Em grego dikaiosyne significa: 1) Justiça divina que premia o bem e castiga o mal. 2) Justiça humana equivalente a santidade moral. Homem justo é um homem virtuoso. 3) Fidelidade divina que cumpre sempre suas promessas, que vem ser sinônimo de salvação. 4) Justiça distributiva humana que respeita o direito e defende em nome de Deus os mais necessitados. Qual delas é a justiça de nosso versículo? Provavelmente, a terceira. A justiça bíblica é sinônimo de santidade ou correção de vida em conformidade com a vontade divina. Não é a justiça comutativa mas a essencial da qual nos fala Paulo e que em certo modo se identifica com salvação e santidade. O lugar paralelo é Mt 6, 33 no qual a justiça está unida ao Reino. Justos eram aqueles cujo sangue foi derramado desde Abel até o último profeta (Mt 23, 33). Uma salvação que inclui também o primeiro significado. Era o desejo manifestado por Simeão: Meus olhos viram a tua salvação (Lc 2, 30) porque essa salvação foi comparada a um banquete no qual todos podiam entrar, ricos e pobres, sãos e aleijados, bons e maus. A entrada é livre, pois a justiça divina se transformou em misericórdia. Unicamente os convivas deveriam ter uma veste limpa: não buscar a própria exaltação como os fariseus, mas revestidos de Cristo (Rm 13, 14) de sentimentos de compaixão, benevolência, humildade, doçura, paciência (Cl 3, 12).

OS MISERICORDIOSOS: Ditosos os misericordiosos porque serão tratados com misericórdia (7). Beati misericordes quia ipsi misericordiam consequentur. Eleëmones<1655> é o termo grego significando que tem compaixão. Eles alcançarão essa mesma compaixão que têm com os homens, mas da parte de Deus. Eleemones só sai esta vez nos evangelhos. A palavra que é usada da mesma raiz é eleeö, <1653>[miserere, ter compaixão]. É o verbo usado pelos pedintes para uma cura de Jesus, como os cegos, a mulher cananéia, o pai do filho epiléptico, etc. É o verbo usado por Jesus na parábola do servo devedor, a palavra que usa o rico para pedir de Abraão uma gota d’água. É a compaixão para com aquele que está necessitado ou pede perdão de uma dívida impagável. O próprio Lucas traduz a perfeição cristã por misericórdia: sede misericordiosos como vosso Pai (Lc 6, 36). A palavra usada por Lucas   oiktirmon <3629> [misericors, que tem pena de] é mais próxima de compaixão que de misericórdia. Precisamente a  eleëmosunë <1654> eleemosina latina [esmola portuguesa] provém dessa raiz grega. Daí o grande motivo para dar esmolas entre os cristãos.

LIMPOS DE CORAÇÃO: Ditosos os limpos no coração porque eles verão a Deus(8). Beati mundo corde quoniam ipsi Deum videbunt.  KATHAROI <2513> [mundi, limpos]. Na verdade, o latim com mundo corde diria: ditosos (aqueles) com coração limpo. O coração limpo, por outros traduzido por os puros de coração nada tem a ver com a castidade, mas visa os de intenções limpas, os não malvados, nem torcidos em seu íntimo entre pensamento, palavra e ação por terem o pensamento diverso de sua palavra mentirosa. Ou seja, os não hipócritas, os que só pensam em fazer o bem, sem outras intenções espúrias ou indignas por segundos interesses.  Limpos de coração é tomado do Salmo 24, 4: Quem é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à falsidade, nem jura dolosamente.  O salmo 15, 2 fala de quem vive com integridade e pratica a justiça, e, de coração, fala a verdade, o que não difama com sua língua, não faz mal ao próximo nem lança injúria contra seu vizinho. Esta é a limpeza do coração, mente, ou intenção diríamos hoje. O prêmio desta vez é que verão [opsontai] a Deus. Quando? Evidentemente na figura de Jesus. Como exemplo: os fariseus viram o demônio expulsando seu colega, quando a gente simples via o dedo de Deus na expulsão do  demônio feita por Jesus (Mt 12, 22-24).  Por outro lado, eles, os limpos de coração, são os que buscam a verdade e a encontrarão e por isso verão a Deus em suas vidas porque Deus é a única verdade. Na epístola aos Hebreus se afirma que sem a santificação é impossível ver a Deus (Hb 12, 14). Não se trata unicamente do além, mas do tempo presente em que a premissa básica para encontrar o verdadeiro Deus é a pureza de intenção. Precisamente Jesus dirá que é no coração onde se prepara e cozinha a maldade (Mt 16, 19). A presença de Deus era o Templo, onde Deus estava assentado sobre os querubins da arca (1 Sm 4, 4). Agora o verdadeiro templo é o crente (1 Cor 3, 16), e só se Deus é adorado em verdade (Jo 4, 24) é que estará ali como estava sobre os querubins no antigo Templo (1 Sm 4, 4). E nesse templo interior, Ele se manifestará.

OS QUE TRABALHAM  PELA PAZ: Ditosos os que trabalham pela paz porque eles serão chamados filhos de Deus(9). Beati pacifici quoniam filii Dei vocabuntur. Os EIRËNOPOIOI <1518> grego [ pacifici latino], têm como tradução direta os que fabricam a paz, que infelizmente o latim traduz impropriamente por pacifici e que a maioria das bíblias adotou como pacífico; mas pacífico corresponde a 3a bem-aventurança com o nome de praeis. Uma coisa é ser pacífico ou afável, e outra é trabalhar pela paz. Um comentarista diz que um trabalhador pela paz é um homem que experimentou a paz de Deus e pretende levar a mesma aos que com ele convivem. De fato, esta é a única vez que é empregada no NT. SERÃO CHAMADOS FILHOS, está no lugar de serão verdadeiros filhos de Deus. Precisamente, segundo Isaías, o filho que nos foi dado, terá como nome Emanuel [Deus conosco] e será chamado Príncipe da paz (9,5). Esse Jesus que, como rei da paz, entra em Jerusalém montado num jumento e não num cavalo, montaria de guerra, para anunciar a paz às nações (Zc 9, 9-10). Os pacificadores são os verdadeiros continuadores do labor feito por Jesus, levam a paz entre os homens e a paz para com Deus. Trabalham como Jesus trabalhou, com o mesmo objetivo e o mesmo motivo: reconciliação e amor.

OS PERSEGUIDOS: Ditosos os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus (10).  Beati qui persecutionem patiuntur propter iustitiam quoniam ipsorum est regnum caelorum. PERSEGUIDOS [dediögmenoi <1377> =persecutionem patiuntur], perseguidos é o particípio passado passivo do verbo Diökö <1377> buscar ou acossar alguém de modo a ter que fugir por causa do acossamento.  Esta deveria ser a oitava e última bem-aventurança, mas nos encontramos com um makarismo a mais, o nono. A justiça é, como temos explicado no parágrafo de sede e fome de justiça, a correção de vida que se ajusta aos planos divinos, e que no AT consistia no cumprimento exato dos preceitos da Lei, como era o caso de José, esposo de Maria, que devia por lei denunciar Maria publicamente, mas pensava em repudiá-la ao modo antigo, ou seja secretamente (Mt 1, 19). Jesus claramente abona a idéia de que a moral entra dentro dos planos divinos.

A JUSTIÇA DO REINO: Ditosos sois quando vos tenham reprovado e perseguido e dito palavra má contra vós, mentindo por minha causa (11). Beati estis cum maledixerint vobis et persecuti vos fuerint et dixerint omne malum adversum vos mentientes propter me. Parece que este é o nono macarismo, porém os autores afirmam que ele é a explicação do oitavo, indicando qual é a justiça e a perseguição dos justos. De fato, neste último macarismo Jesus passa da terceira pessoa, em termos gerais, para a segunda pessoa dirigindo-se a seus ouvintes: vós. A justiça é a que está representada na pessoa de Jesus [por causa de mim]. A perseguição ou os perseguidos, do verbo diökö, são os buscados ou acossados pelos inimigos de Jesus, porque  atrás deles está o Mestre, como Ele disse a Saulo, perseguidor dos seus discípulos (At 9, 4): Saulo, Saulo, por que me persegues? O grego usa neste versículo o mesmo verbo diökö. Dentro da explicação, vemos que a perseguição implica a injúria, o acossamento e a mentira. Todos eles, os perseguidos,  pertencerão ao Reino e são os verdadeiros membros do mesmo, o constituem. A última bem-aventurança promete a mesma recompensa do que a primeira: o Reino.

A RECOMPENSA: Ficai alegres e exultai porque vossa recompensa (é) grande nos céus. Assim também perseguiram os profetas, os anteriores vossos (12). Gaudete et exultate quoniam merces vestra copiosa est in caelis sic enim persecuti sunt prophetas qui fuerunt ante vos. A recompensa, ou melhor, o salário   [misthós<3408>] é uma remuneração que só Deus pode dar e que ninguém poderá diminuir ou anular, como é o tesouro que as riquezas bem repartidas adquirem para os que delas se desprendem. Assim podeis comparar-vos com os profetas que me precederam. A ação profética é precisamente o testemunho de suas vidas, aparentemente desperdiçadas inutilmente, maltratadas e vilipendiadas pelos que tinham a obrigação de ouvir e respeitar seus testemunhos. É uma profecia do que aconteceria após a morte e ressurreição de Jesus, do qual eles se tornariam testemunhas e profetas.

PISTAS: 1) Jesus [ou a Igreja primitiva] coloca as bem-aventuranças no início da sua atuação pública, imediatamente após a escolha dos doze. Pelos detalhes de Mateus elas ocupam o lugar dos mandamentos recebidos por Moisés no Sinai; ou seja, Jesus prega uma Boa Nova em oposição a Moisés que proclama uma lei de servidão.

2) É um evangelho positivo no qual Deus quer mostrar a sua face de bondade e salvação. E são precisamente esses homens passivos da ação divina que o mundo pensaria serem os de pior sorte, os que são beneficiados [makarioi, ditosos] pela riqueza e misericórdia de Deus.

3) Não se trata de uma moral nova a ser cumprida –à parte o capítulo V- mas de umas circunstâncias nas quais Deus quer se mostrar magnânimo e divinamente generoso. Por isso as Bem-aventuranças estão sendo proclamadas a todos os que de alguma maneira encontram em Jesus o seu Mestre e Salvador.

4) As bem-aventuranças resumem o espírito evangélico, ou apresentam um modo novo de olhar para a realidade crua, dos discípulos de Jesus? Antes parece um juízo feito pela sabedoria divina dos momentos e das pessoas que nós consideramos desafortunados. Nessas situações tão indesejáveis, a esperança provém do olhar para a verdadeira essência das coisas: ver a realidade como Deus a vê.

5) As primeiras constituem a bênção de circunstâncias que podemos chamar de infortúnio. Estar nas mesmas não é um azar, mas uma sorte do ponto de vista da providência divina. As segundas implicam uma recompensa para determinadas virtudes que são essencialmente cristãs. Todas constituem a Boa Nova para necessitados ou almas de boa vontade. A Boa Vontade divina agora inclui a boa vontade humana.

EXEMPLO: Um mestre oriental contava de si mesmo: Na juventude, eu era um verdadeiro chefe revolucionário e rezava assim: dá-me energia, ó Deus, para mudar o mundo! Mas notei, ao chegar à meia-idade, que metade da vida já havia passado sem que eu tivesse mudado homem algum. Então mudei a minha oração, dizendo a Deus: Dá-me a graça, Senhor, de transformar os que vivem comigo, dia a dia, como os meus familiares e os meus amigos. Com isto eu já fico satisfeito! Agora que sou velho e com os dias contados, percebo bem o quanto fui tolo rezando assim. A minha oração agora é apenas esta: Dá-me a graça, Senhor, de mudar a mim mesmo! Se eu tivesse rezado assim desde o princípio, não teria esbanjado a minha vida e o mundo seria bem melhor.

FRASE: Dos modernos, que tanto confiam na ciência como verdade absoluta, podemos afirmar com o Papa: apesar de terem deuses, estão sem Deus e, com muitas esperanças, falta-lhes a suprema e última esperança.

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