Comentário Exegético – II Domingo do Advento (Ano A)

EPÍSTOLA (Rm 15, 4-9)

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

ESCRITURAS: Quantas coisas, pois, foram antes escritas, para nossa instrução foram escritas a fim de que por meio da perseverança e pela consolação das Escrituras tenhamos a esperança (4). Quaecumque enim scripta sunt ad nostram doctrinam scripta sunt ut per patientiam et consolationem scripturarum spem habeamus. Estamos na parte final da carta de S. Paulo aos romanos. E neste versículo ele recomenda as ESCRITURAS [grafai <1124> =scripturae] era em singular um escrito e em particular os Escritos sagrados do AT como em Mt 21, 42: perguntou-lhes Jesus: nunca lestes nas Escrituras [en tais grafais]. Paulo apela aos escritos do AT em 1 Cor 15, 3: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras [kata tas grafas] e assim sem adicionar nenhum adjetivo, elas são os escritos que os judeus veneravam como Torah, Neviim e Ketuvim [Tanak] ou seja Lei, profetas e Escritos que também recebiam o nome de Mikra [o que é lido]. Paulo apela frequentemente a esses escritos que, como diz Pedro, são superiores a nossa própria experiência para conhecer a verdade por serem palavra profética [logos profetikos] (2 Pd 1, 16-19). E essas palavras foram escritas com anelação e tinham como objetivo a INSTRUÇÃO [didaskalia<1319>=doctrina] magistério, educação, instrução, ensino, doutrina e preceitos. O fim dessa doutrina ensinada pela palavra de Deus é a PERSEVERANÇA <ypomonë<5281>=patientia] é o estado de ânimo que suporta contradição e sofrimento que geralmente é traduzido por paciência, mas que pode ser firmeza ou constância; no NT sai 32 vezes. Unicamente em Lucas, dentre todos os evangelistas, 2 vezes: quando fala de que os que têm bom e reto coração frutificam com perseverança [en ypomonë] (8, 15) e a outra é na vossa perseverança [ypomonë] que ganhareis a vossa alma (21, 19). Logo aparece 17 vezes nas cartas de Paulo. Paulo chama a Deus o da paciência e consolação (Rm 15, 5) repetindo a frase do versículo anterior em que a paciência que temos traduzido como perseverança, mais parece ser uma qualidade do homem que um atributo de Deus. Já a CONSOLAÇÃO [paraklësis<3874>=consolatio] é uma citação, um chamado para ajudar, súplicas, pedido, solicitação, exortação, admonição, e com um segundo significado de consolação, conforto, conciliação. Na maioria dos casos é consolação, com exortação e conforto por esta ordem e em número cada vez muito menor como é traduzido o termo paraklësis. O próprio Messias era esperado como consolação de Israel, segundo vemos em Lc 2, 25 que narra a espera de Simeão e o segundo Consolador [o Espírito Santo] é chamado Paraklëtos [=consolador] e é com esta palavra que é traduzido às línguas vernáculas. Essa consolação tem como fim a esperança. Dificuldades, humilhações  e sofrimentos se têm um fim esperançoso e feliz, como diz a escritura, são recebidos com resignação e até com paciente alegria.

UM MESMO SENTIR: Portanto o Deus da perseverança e da consolação vos conceda sentir o mesmo de uns para outros segundo Jesus Cristo (5). Deus autem patientiae et solacii det vobis id ipsum sapere in alterutrum secundum Iesum Christum, E Paulo fala dessa perseverança e consolação como sendo raiz das mesmas e por meio delas a causa de conceder um mesmo SENTIR [fronein<5426>=sapere] do verbo froneö ser compreensivo, sensível, sensato, sabido, inteligente, juizoso, ter simpatia, discernimento. Também, neste caso, coincidir num mesmo sentir ou pensamento. É o que temos nos Atos que narra como perseveravam unânimes em oração (At 1, 14) e tinham um só coração e uma só alma e todas as coisas eram comuns (At 4, 32). Segundo os ensinamentos de Cristo Jesus, pois o seu rogo ao Pai é que os discípulos fossem um assim como Ele e o Pai eram um (Jo 17, 11). Porque – dirá Jesus- as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas; e nisso  sou glorificado (Jo 17, 10).

A CONFISSÃO: Para que unanimemente com uma única boca glorifiqueis o Deus e Pai do Nosso senhor Jesus Cristo (6). Ut unianimes uno ore honorificetis Deum et Patrem Domini nostri Iesu Christi.UNANIMEMENTE [omothymadon <3661>=

unianimes] é um advérbio, cujo significado é com uma só mente, de acordo, com um só sentimento. Imagem própria do mundo musical quando notas diferentes se harmonizam em tom e timbre. Omos é igual e thymos é sentimento. BOCA [stoma<4750>=os] se confessares com tua boca: Jesus como Senhor e creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos –dirá Paulo- serás salvo. Não esqueçamos que Paulo tem uma tradição judaica muito marcada e que nesse acervo atávico os judeus oravam com todo o corpo e em voz alta, como vemos hoje no muro das lamentações. O mandato de amar Jahveh com todo teu coração, de toda tua alma e com todo teu poder (Dt 6, 5) obrigava a manifestar semelhante sentimento com toda a expressão corporal possível. E dentro desse amor estava o dever de dar glória a Deus, como vemos no quarto mandamento em que o amor aos pais se torna honra aos mesmos (Êx 20, 12) e no mandato primeiro: não te inclinarás às imagens dos ídolos nem as honrarás (Êx 20,5). E logicamente a honra ormas dada com a palavra ou boca é o homologëö [confessar] que também como o centurião no Gólgota é doxazö, pois deu glória a Deus dizendo: Verdadeiramente este homem era justo (Lc 23, 47). De tal modo que a glorificação mais importante que o homem pode dar a Deus é a manifestação tanto pessoal como comunitária da fé no mesmo.

ACOLHIMENTO: Portanto, acolhei-vos mutuamente como também o Cristo vos acolheu para a glória de Deus (7). Propter quod suscipite invicem sicut et Christus suscepit vos in honorem Dei. Dessa mútua concórdia, Paulo extrai uma outra consequência: o mútuo ACOLHIMENTO que em grego é verbo [proslambanö<4355>=suscipere] é receber na casa como hóspede como fizeram os malteses com Paulo e seus companheiros (At 28, 2) ou ter um acolhimento como amigo ao fraco e necessitado, como em Rm 14,1: acolhei o que é débil na fé. É assim que Cristo recebeu como amigos os rudes galileus que se tornaram discípulos: Já não vos chamo servos…. mas amigos (Jo 15, 15). MUTUAMENTE <allëlous<240>=invicem] literalmente uns aos outros. Paulo segue as normas de Jesus que disse: Nisto conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros [allëlois]. Como diz o Papa atual, o amor tem como distintivos a entrega [de quem ama] a acolhida [do amado] e a comunhão [entre os dois] (de Charitas in veritate). E no fim, tudo deve ser feito para a glória de Deus (1 Cor 10, 31).

CRISTO MINISTRO: Digo, pois, que Jesus Cristo tornou-se servidor da circuncisão por causa da fidelidade de Deus para confirmar as promissões dos pais (8). Dico enim Christum Iesum ministrum fuisse circumcisionis propter veritatem Dei ad confirmandas promissiones patrum. SERVIDOR [diakonos <1249> =ministrum] a palavra diakonos indica um servente à mesa, em que o ofício é um acidente e a pessoa não é totalmente escrava do doulos. As traduções preferem ministro como Paulo se considerava que era do evangelho, a cujo anúncio e propagação foi dedicado por vida (Cl 1, 23). Que significa da circuncisão? Pois que Jesus como Cristo só evangelizou os judeus como ele mesmo disse: Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 15, 24), povo que constituía a circuncisão. Pela razão da FIDELIDADE [alëtheia <225> =veritatem] Embora alëtheia tenha o significado de verdade, também pode ser traduzida por fidelidade como no caso de quem a si mesmo se chamava fiel [aman<0539>=pistos= fidelis], pois guardava o pacto e a misericórdia para os que lhe amam e guardam seus mandatos até as mil gerações (Dt 7, 9). Essa fidelidade que é cantada por Maria: Amparou a Israel seu servo, porque se lembrou de sua misericórdia….como prometera aos nossos pais (Lc 1, 54-55). Realmente a unidade das Escrituras é memorável, embora os autores humanos sejam tão diferentes.

DEUS DE MISERICÓRDIA: Porém as nações por misericórdia (devem) glorificar a Deus como está escrito: por isso te confessarei entre as nações e cantarei a teu nome (9). Gentes autem super misericordiam honorare Deum sicut scriptum est propter hoc confitebor tibi in gentibus et nomini tuo cantabo. AS NAÇÕES [ethnë<1484>=gentes] a palavra ethnos indica multidão, uma companhia, tropa, enxame, agrupamento de indivíduos da mesma natureza ou raça, a família humana, tribo, nação, de modo que no AT era o conjunto de nações que não adoravam o único e verdadeiro Deus,e em geral, o conjunto das nações pagãs. MIERICÓRDIA [eleos<1656>=misericórdia] o Eleos grego e o amor ao inferior necessitado que traduzimos como misericórdia. É a benevolência, bondade e benignidade em favor do necessitado e afligido como o desejo de ajudá-lo. Se por razão da promessa o Cristo se tornou ministro e servidor dos circuncisos de Israel, agora é por causa da misericórdia que glorificou Deus por meio do ministério do mesmo Senhor. Deus que é definido como eleos  e alêtheia [=hesed ue emeth] misericórdia e fidelidade (Sl 84, 11) no momento da encarnação Paulo o descreve com estas palavras: se manifestou a bondade [chrëstotës] e a misericórdia [filanthröpia] de Deus, nosso Salvador para com os homens (Tt 3, 4). E isso foi também preanunciado com o salmo 18, 49: eu te glorificarei entre os gentios e cantarei louvores ao teu nome, indicando a conversão ao monoteísmo dos povos antes politeístas e idólatras.

EVANGELHO (Mt 3, 1-12)

TESTEMUNHO DO BATISTA

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: No evangelho de hoje, aparece a figura chave do Advento: João, o Batista. Ele representa o anúncio de Cristo que vem, e ao mesmo tempo a severidade de vida, própria dum tempo de austeridade, como era antigamente o Advento. Sua pregação era a metânoia <3341>, a mudança de atitude, tanto no pensamento como na conduta exterior, para um retorno a Deus, de modo que Este encontre seu caminho livre, frente a uma vontade humana que se submete aos seus planos, como um servo aceita a vontade de seu senhor. Hoje, que conhecemos como essa conversão tem como finalidade a transformação do homem em filho de Deus, as palavras de João, destas pedras Deus pode suscitar filhos de Abraão, são proféticas num sentido estrito. Para um judeu da época, a razão de sua eleição por Javé era ser filho de Abraão. Para um cristão, a eleição transformava sua vida inteiramente numa vida de um filho de Deus. Esta é a verdadeira conversão. O natal de Jesus deve ser também o nosso natal. A semelhança entre o profeta João e o Jesus dos evangelhos, que também proclama a metânoia [retorno, segundo autores modernos], é que ambos exigem o batismo para esse voltar a ser de novo: o primeiro, para uma volta à fé dos pais, de modo a se tornarem verdadeiros filhos de Abraão (Lc 1, 17); e o segundo, para iniciar a filiação, como filhos de um Deus que deseja ser seu verdadeiro Pai (Mc 16, 16 e Mt 28, 19). Mas vejamos os versículos e sua interpretação. Segundo palavras de J. Paulo II, um dos significados de Perestroika [reestruturação, reforma] é precisamente o de conversão, volta de um mal caminho empreendido. Assim se compreendem melhor as palavras da Virgem em Fátima: A Rússia converter-se-á.

NO DESERTO: Ora, naqueles dias, apresenta-se João, o Batista, pregando no deserto da Judeia (1). In diebus autem illis venit Iohannes Baptista praedicans in deserto Iudaeae. NAQUELES DIAS: É uma maneira de unir um relato novo com o anteriormente narrado. Equivale, pois, a uma conjunção copulativa. Quem realmente coloca o tempo com maior aproximação é Lucas: a época do imperador reinante servia, como no Japão dos últimos tempos, para delimitar a história no tempo. Daí que sabemos que no décimo quinto ano do imperador Tibério (Lc 3, 1) foi o início destes eventos proféticos com os quais se inicia a nova época que chamamos evangélica.  JOÃO, O BATISTA: O grego traz o verbo no presente histórico: apresenta-se ou aparece. Também o latim respeita o tempo verbal. A pessoa que aparece como uma visão fantasmagórica é João, conhecido como o Batista. Era uma figura tão importante na sua época que não merecia outra apresentação a não ser o nome. É como dizer hoje Churchill ou De Gaulle. Isso indicava um evangelho escrito antes dos anos 70, quando a memória desses fatos tinha sido esquecida e era inútil a sua memória. Quem nos dias de hoje entre os judeus, se lembra de citar esse nome que aparentemente é contrário ao Talmud? Vemos como Paulo encontra discípulos de João em Éfeso (At 19, 3-4). A data de sua pregação é aproximadamente o ano 28 de nossa era, devido a que não sabemos se Lucas conta o início do ano em outubro [ano sírio] ou em janeiro [romano] e se é contado o primeiro ano de sua sucessão. Temos, à parte dos evangelhos, um relato contemporâneo de Flávio Josefo: João era um bom homem que tinha ensinado os judeus a adorar a Deus, a levar vidas honestas e a praticar a justiça com os outros. Ensinava que não devia ser usado o batismo para obter o perdão dos pecados cometidos [contra o batismo cristão], mas como forma de consagração do corpo… Começaram a se reunir grandes multidões ao redor de João, por causa de sua pregação e Herodes tinha medo de que seu grande poder de persuasão sobre os homens desse lugar a uma rebelião. Portanto, decidiu que seria melhor matá-lo antes que se iniciasse um levantamento. Foi levado encadeado, para a fortaleza de Maqueronte e foi morto nesse cárcere. Como vemos coincide, em grande parte, com os relatos evangélicos , embora a divergência maior seja sobre o batismo de João, que por não confundi-lo com os dos cristãos, claramente retira dele o que os evangelistas dizem  ser batismo para o arrependimento (Mt 3, 11) que Marcos dirá ter como fim a remissão de pecados (1, 4) [=baptisma metanoias eis afesin amartiön, batismo de arrependimento para remissão de pecados] que Lucas repete com as mesmas palavras. Já o quarto evangelista, fora de toda discussão, distingue os dois batismos: o de João era um batismo [submersão] em água e o de Jesus em Espírito Santo [=en pneumati agiö]. Se o do Batista perdoava os pecados pela disposição do batizado [a conversão, e ex opere operantis], o de Jesus era uma imersão no Espírito de Deus, que logicamente ia muito além, por ser ex opere operante e que torna o batismo de água [o de João] inferior ao de fogo  [o de Cristo] que penetra até o fundo dos seres. O que João viu em Jesus ao ser batizado [abriram-se os céus e o Espírito em forma de pomba pousou sobre Jesus, ao mesmo tempo em que a voz do Pai declarava-o como Filho muito amado] realiza-se em todo batizado em nome do Pai,  do Filho e Do espírito Santo, de forma substancial, sem serem visíveis seus efeitos a não ser em tempos apostólicos. Confirma-o o relato dos Atos  19,2-6. Outro ponto é o batismo em fogo, que tanto Mateus (3,11) como Lucas (3, 16) acrescentam como qualidade que acompanha o Espírito. O DESERTO DA JUDEIA: A palavra eremos <2048>[ em latim desertum em inglês widelness] significa lugar despovoado ou inabitado, não o deserto de areia que todos temos em mente como o de Sahara. Seguido do determinante da Judeia parece significar a longa faixa de terra entre Jerusalém e o mar Morto de 25 Km de largura e 80 de comprimento. Mas vejamos: Judeia pode ter vários significados: 1º) a Judeia propriamente dita, governada pelo procurador romano nos tempos de Jesus adulto que se distinguia especialmente da Galileia em mãos de Antipas como em Belém da Judeia (Mt 2,1). 2º) Com uma acepção mais ampla que podia abranger todo o território da que hoje denominamos Palestina, como parece indicar Marcos que diz vinham a escutar o Batista de toda a região da Judeia e de Jerusalém. 3º) Finalmente tendo um significado mais amplo do que a Judeia própria como em Mateus 19, 1: Jesus saiu da Galileia e foi para a Judeia ao outro lado do Jordão [peran tou Iordanou] em que peran é o advérbio grego que significa ao outro lado, além de. Como vemos neste versículo, Mateus emprega a Judeia como se formasse parte de terras que hoje chamamos da Jordânia e que nunca imaginaríamos formassem parte da antiga Judeia propriamente dita. Daí que o deserto de Judeia tem que ser considerado em termos amplos, incluindo as margens do Jordão perto de Jericó e outros lugares como diz Lucas ao afirmar que percorria toda a região do Jordão (3,3) ou como afirma João que o fato se deu ao outro lado do Jordão [peran tou Iordanou] onde João batizava (1, 28).

O PREGÃO: E dizendo: Arrependei-vos! Porque se tem aproximado o Reino dos céus (2). Et dicens paenitentiam agite adpropinquavit enim regnum caelorum. ARREPENDI-VOS: É o metanoia, o tornar ao Deus de Israel que procurava corações retos, mudar de pensamento como diz o livro da sabedoria (12, 10). Como diz o anjo a seu pai, Zacarias converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus…a fim de tornar o coração dos pais aos filhos, a fim de preparar ao Senhor um povo bem disposto (Lc 1, 16-17). Aparentemente, o texto está tomado de Isaías, porém é Sirac ou Eclesiástico que em 48, 10 fala do profeta Elias e diz que foi destinado a reconduzir o coração do pai ao filho e restabelecer as tribos de Jacó [epistrepsai kardian patrós prós yion kai katastrepsai fylas Iakob, ou em latim conciliare cor patris ad filium et restituere tribus Iacob. A nova Vulgata traduz convertere no lugar de conciliare]. Elias foi o restaurador da religião de Israel e nesse sentido foi também João o que realmente tentou repor no estado primitivo a decaída piedade dos israelitas no tempo de Jesus.  O REINO: Os modernos, para distingui-lo dos reinos geográficos e materiais, do tempo, falam de REINADO, ou seja, SENHORIO que implica domínio por parte de quem é considerado rei e obediência da parte de quem se torna súdito. Para diferenciá-lo dos reinos terrestres, está em Mateus o determinante dos céus, que os outros evangelistas preferem de Deus.

A PROFECIA: Este mesmo, pois, é o anunciado por Isaías o profeta dizendo: Voz gritando no ermo: esteja preparado o caminho do Senhor! Retas fazei as suas veredas (3). Hic est enim qui dictus est per Esaiam prophetam dicentem vox clamantis in deserto parate viam Domini rectas facite semitas eius. Isaías (40, 3), ou melhor, o segundo Isaías, trata no lugar citado sobre a esperança da volta dos cativos da Babilônia num conjunto que é chamado da Consolação de Israel. Há uma pequena diferença entre o hebraico e o grego da Setenta: neste último, fala na estepe ou como traduz a nova Vulgata in solitudine antes das veredas. E no lugar de suas teremos de nosso Deus na Setenta. Fora disso, o grego de Mateus e o grego da Setenta coincidem palavra por palavra. Sem dúvida que foi uma acomodação a Jesus feita por Mateus, ao eliminar nosso Deus da citação. No quarto evangelho, o evangelista põe em boca do Batista como resposta: e tu quem és? Esta citação: Eu sou a voz que grita no ermo: endireitai o caminho do senhor, como disse Isaías, o profeta (1, 23).

A DESCRIÇÃO: Ele mesmo o  João, porém, tinha o vestido dele de pelos de camelo e um cinto de couro ao redor de seus rins; mas sua comida era gafanhotos e mel silvestre (4). Ipse autem Iohannes habebat vestimentum de pilis camelorum et zonam pelliciam circa lumbos suos esca autem eius erat lucustae et mel silvestre. O BATISTA: Devemos distinguir entre a figura externa e a mensagem de João. Ele se apresentava vestido como um dos antigos profetas, especialmente Isaías (2 Rs 1, 8). A bíblia hebraica apelida a Isaías de baal sear [= maestro do pelo] que a Vulgata traduz por vir pilosus [a nova Vulgata diz: Vir in veste pilosa] ou homem de muito pelo. Ele vestia uma túnica de pele sujeita com um cinto e por cima dela um manto solto.  Esta forma de vestir foi copiada pelos outros profetas. A vestimenta externa, ou manto de João, era um tecido de pelos de camelo o mesmo com o qual se teciam as lonas das tendas dos nômades do deserto. Servia de proteção contra os raios solares e impedia a chuva como capa. E unicamente se servia de um cinto de couro para ajustar aos lombos uma túnica de pele interior. Além dessa veste extremamente rústica, havia na vida de João um outro detalhe que chamava a atenção das multidões: sua comida, que eram gafanhotos e mel silvestre. Este mel que tem em grego o sobrenome de silvestre é provavelmente a exsudação de certas árvores como o Tamarix mannifera, de gosto insípido, e abundante na região de Jericó. Tudo indicava a austeridade de João e sua independência dos homens de modo a depender unicamente de Deus. O povo assim o entendia, pois não comia nem bebia (Mt 11, 18). Seu terreno de pregação era o outro lado do Jordão (Jo 1, 28) na Pereia, terra de Herodes Antipas (Jo 10, 40), onde ele tinha seu castelo de Maqueronte que seria o cárcere do profeta.

A FAMA: Então saiam em busca dele, Jerusalém e toda a Judeia e toda a região do Jordão (5). E eram batizados no Jordão por ele, declarando seus pecados (6). Tunc exiebat ad eum Hierosolyma et omnis Iudaea et omnis regio circa Iordanen. Et baptizabantur in Iordane ab eo confitentes peccata sua. AS MULTIDÕES: O relato de Mateus parece um tanto hiperbólico, mas encontra um paralelo em Marcos: Iam até ele toda a região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém (1, 5). Lucas fala de multidões (3, 7). Logicamente, devemos concluir que o Batista atraía grandes multidões que o buscavam para ouvir suas palavras e depois serem imersos nas águas do rio Jordão. BAPTIZO: Porque o significado de Baptizo é imergir, enquanto bapto é mergulhar. De modo que baptizo é estar imerso como um pepininho em vinagre e bapto seria o mergulho de quem se banha numa piscina. Baptizo indica, pois, uma imersão permanente, uma impregnação total do líquido em que se está submerso. CONFISSÃO: Declarando [exomologomenoi <1843>= confitentes latino], professar ou reconhecer publicamente uma dívida ou um agradecimento. Aqui,  evidentemente, se trata de admitir em público os pecados [dívida é o nome de pecado em hebraico], não os declarando em espécie, como na confissão sacramental, mas em geral, com fórmulas conhecidas na época, como: reconheço que sou pecador (Lc 18, 13).

OS FARISEUS: Tendo visto, pois, muitos dos fariseus e dos saduceus vindo para seu batismo, disse-lhes: Estirpes de víboras! Quem vos fez ver (como) fugir da ira iminente? (7). Fazei portanto,frutos dignos de arrependimento (8). Videns autem multos Pharisaeorum et Sadducaeorum venientes ad baptismum suum dixit eis progenies viperarum quis demonstravit vobis fugere a futura ira. Facite ergo fructum dignum paenitentiae. FARISEUS E SADUCEUS: Segundo Lucas (3, 7-8) é a multidão o objeto das invectivas de João. Mas a versão de Mateus parece ser a original. A razão para Lucas não podia ser outra que a de que seus destinatários, sendo gentios, não entendiam nada das seitas judaicas e não era o momento de explicar as diferenças. Por isso engloba em termos gerais de multidão o que, na realidade, era particular de uma classe. Fora disso, ambos os evangelistas coincidem palavra por palavra. Por nossa parte, sabemos como os fariseus eram hipócritas em suas condutas já que diziam e não praticavam (Mt 23, 3) e que honrando de boca o Senhor, seu coração estava bem longe dEle (Mc 7,1) como tinha profetizado Isaías (29, 13). Sabemos também como os saduceus eram enormemente positivistas e materialistas. Sob sua influência, o templo tinha-se transformado num mercado público (Jo 2. 16). Pedir, pois, o batismo, era um ato hipócrita que constituía parte de sua vida de ostentação e em busca do aplauso popular (Mt 6,2). VÍBORAS:  [gennemata<1081> echidnön <2191>= progênies viperarum] temos traduzido por progênies de víboras. A frase sai 4 vezes nos evangelhos [3 delas em Mateus], divididas em dois grupos de imprecações: duas originadas no Batista (Mt 3, 7 e Lc 3, 7) e outras duas, saídas dos lábios de Jesus, em Mateus (12, 34 e 23, 33).  Segundo o  dicionário ON LINE  é o rótulo merecido metaforicamente por pessoas astuciosas, malignas e perversas. Jesus ao chamar os fariseus raça de víboras declara: como podeis falar coisas boas se sois maus? (Mt 12, 34). Jesus completa as 6 maldições sobre os escribas e fariseus a quem tacha de hipócritas, com o apelativo de serpentes, raça de víboras (Mt 23, 33). Como diz Tuya, a doutrina dos fariseus era corruptora porque esterilizava a Lei de Deus, até chegar a traspassar os preceitos pelas tradições e doutrinas dos homens (Mt 15, 3). Daí deduzimos duas conclusões: 1º) Que tanto João como Jesus dirigiam essas invectivas aos fariseus e escribas  e não às multidões como parece indicar Lucas. 2º) Que o próprio Jesus dá a definição de por que merecem esse apelativo: a sua língua é como a das víboras, só serve para difundir o mal, como se fosse o bem. O Batista comina-os com a ira divina, implícita na frase de ira iminente. Após o ódio, o pecado que não tem perdão é o de não querer admitir a verdade quando ela contradiz nossos interesses. Tornam-se filhos do diabo, o pai da mentira, e por isso, não podem escutar as palavras de Deus (Jo 8, 44 +) Essa ira será explicada pelo Batista quando afirma que o que vem depois dele queimará a palha no fogo que não se apaga (vers 12). Consequentemente, o Batista pede frutos que demonstrem realmente o arrependimento, a conversão.

A ESCUSA: E não intenteis dizer dentro de vós: temos como pai Abraão. Pois vos digo que pode [o] Deus destas pedras erguer filhos para Abraão (9). Et ne velitis dicere intra vos patrem habemus Abraham dico enim vobis quoniam potest Deus de lapidibus istis suscitare filios Abrahae ABRAÃO: Na sua escolha, Javé lhe disse que seria uma bênção e nele seriam abençoadas todas as comunidades da terra (Gn 12, 2-3). Daí deduziam que eles, os descendentes de Abraão, eram uma raça abençoada por Deus e, consequentemente, não tinham por que temer a ira divina.  A tradição judaica relacionava os gentios com as pedras. E aparentemente João jogava com abim [filhos] e abanim [pedras]. Daí que o gesto do Batista tinha um sentido mais profundo do que atualmente lhe atribuímos. É interessante notar como esse grupo, entre si dividido, dos fariseus e saduceus, formaram um grupo unido contra João e contra Jesus. Não sabiam o que contestar ante a pergunta de Jesus: o Batismo de João é do céu ou dos homens? Porque não creram nele (Lc 20. 4) ao contrário do povo simples que viu em João um profeta. E temiam mais a ira do povo que a ira de Deus.

A ESCATOLOGIA: Agora, pois, já está o machado assentado junto à raiz das árvores; toda árvore, portanto, não produzindo fruto bom, é cortada e é lançada ao fogo (10). Iam enim securis ad radicem arborum posita est omnis ergo arbor quae non facit fructum bonum exciditur et in ignem mittitur. Era crença comum entre os judeus, que a vinda do Messias estaria precedida de um severo julgamento (Jl 4, 1-16; Sf 1, 14-18 e Mq 3, 1-3). Era tal a crença em momentos de angústia e sofrimento predecessores dessa vinda, que era comum a frase de Parto do Messias. O Batista, como eco dessa tradição, afirma que quem não se arrepender e não fizer o bem com suas obras não entrará a formar parte desse novo Reino. Como acontece com uma árvore frutífera que é estéril, assim será feito com aqueles que não ofereçam frutos dignos do novo reino. Aquela só serve como lenha para o fogo e, de modo semelhante, será cortada a vida dos que não vivem em conformidade com a Lei. Esta fórmula de João lembra as palavras de Jesus, narradas pelo quarto evangelista em 15, 6, sobre os sarmentos que não dão fruto, que serão cortados e, recolhidos, lançados ao fogo.

AUTODEFINIÇÃO: Pois eu vos batizo [submerjo] em água para arrependimento, aquele, porém vindo depois de mim é mais poderoso do que eu, do qual eu não sou digno de carregar as sandálias; ele próprio, batizar-vos-á em espírito e fogo (11). Ego quidem vos baptizo in aqua in paenitentiam qui autem post me venturus est fortior me est cuius non sum dignus calciamenta portare ipse vos baptizabit in Spiritu Sancto et igni  O BATISMO: Aqui, João declara que ele não é o fim e que seu batismo, não tem o sentido de uma purificação total, mas só é o início da mesma, que unicamente será completada pelo seu sucessor, do qual ele, João, era o mais humilde dos escravos. Esse seu sucessor oferecerá a verdadeira limpeza e purificação que será uma imersão total no Espírito e no fogo. Temos explicado que o significado de Baptizo é o de estar submerso, como um barco que se afunda e o do bapto é ser lavado. Temos o texto clássico de  Nicander, médico do ano 200 aC,  que diz que para fazer uma conserva em salmoura, primeiro a verdura deve ser lavada [bapto] em água fervente, e, então, submergida [baptizo] numa solução de vinagre. Bapto é temporal e baptizo produz uma mudança permanente. Por isso o baptizo do NT produz uma união e identificação com Cristo, à semelhança do que acontece com a verdura dentro do vinagre. Podemos, pois afirmar que bapto seria o realizado pelo Batista para deixar o baptizo ao realizado por Jesus. É por isso que João distingue seu batismo ou mergulho na água do mergulho no Espírito e no fogo de Jesus. Sobre esta última expressão, podemos dizer que 1º) Espírito e fogo podem designar uma mesma coisa, sendo o fogo, que altera os metais, como purificador mais completo, chegando até as maiores profundezas da alma. Assim foram as línguas de fogo no dia de Pentecostes. 2º) O batismo para os bons será a purificação do espírito, mas o fogo será o batismo de destruição dos maus como veremos no seguinte versículo. O ESCRAVO: Se Mateus fala de carregar as sandálias o evangelista João fala de desatar as mesmas (1, 27). Na realidade era o mais baixo dos ofícios correspondente a um escravo doméstico. No Talmud pergunta-se: Qual é o serviço de um escravo? E responde: Ele afivela os sapatos do senhor, os desata, e os carrega antes dele ao banho. Esta era a maneira com a qual um discípulo devia tratar seu mestre, pois todo o serviço que um escravo deve fazer a seu amo deve realizar o discípulo a exceção de desatar seus sapatos. Por isso, Mateus unicamente não narra este último detalhe em particular, caso que o quarto evangelista traz como palavra do Batista. Pois este último ofício, desatar os sapatos, só poderia ser feito por um escravo cananeu [pagão] não hebreu, já que esse serviço era odioso e extremamente degradante. É assim, como último escravo, que o Batista se considerava diante da figura da qual ele era o arauto e precursor.

O JULGAMENTO: Do qual, a pá em sua mão; e limpará completamente a sua eira e recolherá seu trigo no celeiro; a palha, porém, queimará no fogo inextinguível (12).  Cuius ventilabrum in manu sua et permundabit aream suam et congregabit triticum suum in horreum paleas autem conburet igni inextinguibili. É evidente que este versículo nos introduz numa ação executiva final, complemento de uma avaliação formal sobre a multidão, dividida entre os que representam o trigo [bons] e os indesejáveis ou descartáveis como a palha [maus] que só servem para o fogo e que, neste caso, toma o caráter de inextinguível, cunho que assim recebe também a seleção executada. Com isso, entramos numa visão definitiva e última do mundo: a figura que João designa como mais poderosa é mais do que um profeta, é o dono do mundo, que separará os salvos da ira e deixará que esta se torne justiça com os malvados.

PISTAS: 1) A austeridade é um dos valores mais apreciados em todos os tempos como garantia de um homem de Deus. Mas nem sempre essa é a realidade suprema. No século 13 os cátaros eram muito mais austeros do que os membros oficiais da Igreja. E não obstante estavam errados, porque tem mais importância a verdadeira humildade que nos aproxima de Deus e nos inferioriza diante do próximo. É por esta razão que a austeridade de João é autêntica: ela está a serviço de seu Senhor.

2) O mais importante no homem é sua disposição de se arrepender e mudar de vida diante do evangelho. Radical como este é, hoje também temos muito a confessar como mal feito, ou bem descuidado, e existe, nestes tempos do advento, uma boa chance de conformar a vida com o evangelho. Essa deve ser a nossa metánoia.

3) Nos tempos modernos, temos abandonado o temor e sempre deixamos nosso último destino em mãos de um Deus, que deve absolutamente perdoar qualquer pecado, porque nos consideramos filhos dele, assim como os antigos saduceus e fariseus se consideravam filhos de Abraão. João diz que a única razão de não sermos castigados são os frutos de penitência.

4) Em todo arauto de Cristo, a humildade que vemos em João, é fundamental. Que Ele cresça e que eu diminua (Jo 3, 30) foi o conselho dado pelo Batista aos seus discípulos. E essa deve ser a nossa resposta quando a inveja impede ver o bem que outros fazem em nome de Cristo. Se Ele cresce, que importa que nós diminuamos? Nós que realmente só devíamos ter como amo e senhor o Cristo Jesus, como intentamos a glória pessoal por considerar sermos seus precursores?

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest
Pocket
WhatsApp

Veja Mais