Comentário Exegético – XXVI Domingo do Tempo Comum (Ano C)

EPÍSTOLA (1 Tm 6, 11-16)

(Padre Ignácio, dos padres escolápios)

ADVERTÊNCIA: Tu, porém, ó homem de Deus, estas coisas foge; mas segue a probidade, religiosidade, fé, amor, constância, mansidão (11). Tu autem o homo Dei haec fuge sectare vero iustitiam pietatem fidem caritatem patientiam mansuetudinem. Naquele tempo existiam os falsos doutores cujos frutos eram disputas e vaidades, de onde nascem invejas, provocações, difamações, suspeitas malignas, altercações sem fim…dos que supõem que a piedade é fonte de lucro (1Tm 6,3-5). Parece que temos uma monição do que hoje estamos vivendo em alguns lugares. Diante, pois, destes parágrafos que precedem nosso texto, Paulo exorta Timóteo a fugir desses desvios e seguir a norma da verdadeira religiosidade que não olha o lucro, mas se contenta com o necessário para viver. E esta religiosidade verdadeira é honesta, pois pretende a PROBIDADE [dikaiosynë <1343> =iustitia] que é a conduta irrepreensível, embora traduzida geralmente por justiça, mas sem muita precisão. Uma outra virtude é a PIEDADE,[RELIGIOSIDADE] eusebeia [<2150>=pietas], que é a reverência devida a Deus e que podemos traduzir, em termos cristãos, pelo amor a Deus que inspira fundamentalmente os atos religiosos e impregna a vida inteira dos seus devotos fiéis. FÉ [pistis <4102>=fides] que aqui pode tomar sua acepção primitiva  de fidelidade, como vemos em Mt 23, 23 em que está unida aos principais preceitos da Lei, como justiça, misericórdia e fidelidade. Ou em Tito 2, 10: não furtem, mas deem prova de toda fidelidade (pisteos). O adjetivo pistos [<4153>= fidelis] é traduzido por fiel, inclusive falando de Deus que é fiel [digno de confiança] de modo que não permitirá que sejamos tentados além das forças (1 Cor 10, 13), o que é confirmado em 2 Ts 3,3. AMOR [agapë<26>=caritas] é propriamente o amor, que traduz o hebraico ahabah [<0158>=caritas] usado como o amor de Deus com seu povo,  que o latim traduz por caritas; é o amor mais sublime e altruísta. Podemos dizer que é o amor de Deus que no homem tem um eco responsável de gratidão e afeição. CONSTÂNCIA [ypomonë <5281> = patientia] constância, firmeza, persistência, paciência, perseverança, é a virtude pela qual um homem permanece fiel a Deus, apesar das tribulações e contradições. Jesus disse que o Reino era tomado por esforço e os que se esforçam se apoderam dele (Mt 11, 12)  MANSIDÃO [praotës <4236>=mansuetudo] o praotës grego significa bondade, doçura, humildade, mansidão. Sai 9 vezes no NT e todas nas cartas paulinas, sendo em todas traduzido por mansidão, a condição benigna e suave, apacível, sossegada e tranquila de uma pessoa. Jesus a si mesmo se tornou modelo desta virtude quando afirmou: Aprendei de mim porque sou manso [praos<4235>=mitis] e humilde de coração (Mt 11,29). É, pois, a bondade unida à humildade que torna um homem bom e benigno para com os outros.

A VOCAÇÃO: Combate o bom combate da fé. Toma posse da vida eterna para a qual foste chamado e confessaste a boa confissão diante de muitas testemunhas (12). Certa bonum certamen fidei adprehende vitam aeternam in qua vocatus es et confessus bonam confessionem coram multis testibus. COMBATE DA FÉ: em parte, em oposição ao combate ou guerra da Lei dos judeus. Chama este combate de bom, pois permanecer na fé encontrava muitos inimigos, tanto fora, como eram os judeus que diretamente combateram Paulo e seus auxiliares, como os costumes dos gentios que não favoreciam a fé por serem contrários à crença cristã e que precisavam de uma verdadeira conversão para aceitar as novas práticas que constituíam o caminho da salvação. Esse combate é para se obter a vida eterna que corresponde naturalmente à divindade e da qual somos herdeiros por meio de Cristo (Gl 4, 7), com Ele feitos filhos mediante a fé em Cristo Jesus (Gl 3, 26). FOSTE CHAMADO [eklëthës<2564>=vocatus es] como vemos por 1 Tm 4, 14 e 2 Tm 1,6, Timóteo foi chamado ao apostolado por meio da profecia e pela imposição das mãos, de modo a receber o dom de Deus como presbítero (no caso, como bispo) da igreja de Éfeso. CONFESSASTE [ömologësas <3670> = confessus] concordar, aceder, aprovar, expressar conformidade, admitir, confessar. Sem dúvida, Paulo rememora os fatos acontecidos em Listra, onde os cristãos davam bom testemunho de Timóteo (At 16,2) e por isso, quis Paulo que ele fosse em sua companhia (At 16, 3), de modo que  as igrejas eram fortalecidas na fé (idem 5). Esta presença foi, sem dúvida, um testemunho que Paulo afirma ser uma boa confissão diante dos muitos irmãos que foram confirmados na fé.

UMA ORDEM: Ordeno-te perante Deus que dá a vida a todas as coisas e de Cristo Jesus que testemunhou diante de Pôncio Pilatos a boa confissão (13), a guardar tu o mandato imaculado, irrepreensível até a manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (14). Praecipio tibi coram Deo qui vivificat omnia et Christo Iesu qui testimonium reddidit sub Pontio Pilato bonam confessionem, ut serves mandatum sine macula inreprehensibile usque in adventum Domini nostri Iesu Christi. ORDENO-TE [paraggellö <3853> = praecipio] transmitir uma mensagem, declarar, anunciar e também comandar, declarar, ordenar. É neste último sentido que devemos traduzir como em Mt 10, 5 quando o Senhor ordenou a seus discípulos não entrarem na região dos gentios. DIANTE DE PILATOS Jesus deu seu testemunho da verdade como diz o evangelho de João: Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade (Jo 18, 37). A fé agora se torna verdade opondo a mentira do politeísmo à verdade revelada em Jesus como filho único de Deus por nossa salvação crucificado e morto como vítima pela redenção dos pecados. Essa foi a confissão de Jesus diante de Pilatos, que este não quis escutar. Que é a verdade? (Jo 18, 38). O MANDATO [entolë<1785>=mandatum] o grego indica uma ordem, preceito, mandato, prescrição, mandamento. Em Mt 5, 19 Jesus fala daquele que viola um destes menores mandamentos [entolön] será chamado mínimo no reino dos céus. Qual é o mandato? Provavelmente o de ser testemunha da fé em Jesus Cristo, como quem dá testemunho de um Deus cujo poder estava acima do poder de Roma, pois Jesus afirmou nenhuma autoridade terias sobre mim se de cima não te fosse dada (Jo 19, 11). Num mundo em que a autoridade era o supremo valor da vida, conservar uma relação com a mesma, íntima e confiante, era escolher o caminho certo para a felicidade. MANIFESTAÇÃO: é a segunda vinda do Senhor, quando sua atuação será de Juiz e não de Redentor. Diante desta situação, o mandato é a matéria sobre a qual Timóteo deve ser julgado. Por isso, o mandato deve ser cumprido de forma irrepreensível e impoluta. Provavelmente Paulo confunde o juízo final com a destruição do templo e ruína de Jerusalém, preditas por Jesus em Lc cap 21, em que a perseguição dos discípulos precederá a ruína da cidade. Neste evangelho, próximo ao anúncio evangélico de Paulo, não vemos o fim do mundo, mas o fim do templo e de Jerusalém em termos apocalípticos e escatológicos, difíceis de interpretar, que Paulo traduz como manifestação clara do triunfo de Cristo.

JESUS O BENDITO: A qual em tempos próprios mostrará o Bendito e único Poderoso, o Rei dos reis e Senhor dos Senhores (15). Quem suis temporibus ostendet beatus et solus potens rex regum et Dominus dominantium. Essa manifestação será a revelação clara e pública daquele que é o BENDITO [makarios <3107> =beatus] era um título próprio de Deus para não pronunciar o Nome Santo, [=haShem] como fez Caifás quando interrogou Jesus se ele era o Cristo, o Filho do Bendito (Mc 14, 61).  ÚNICO PODEROSO [monos<3441>dynastës<1413>=solus potens], nome que é usado por Jesus no lugar de Jahveh ao responder a Caifás quando responde: Vereis o filho do Homem assentado à direita do Poder [dynamis]. Tanto num caso [bendito] como no outro [poder], é Deus o assim nomeado. Logo, Paulo iguala Jesus com o Deus dos judeus, ou seja, com o Deus único dos cristãos. E também o compara com os poderosos da terra dando a Ele o título supremo de Rei dos reis e Senhor dos senhores, título que os judeus davam a Jahveh, igualando assim o Filho com o Pai. Assim temos o versículo do Apocalipse (19, 16):  que tem no seu manto e na sua coxa o título: Rei dos reis e Senhor dos senhores. Como os judeus tinham dado a Jahveh o mesmo título, daí a correspondência exata entre a carta paulina e o Apocalipse de João.

JESUS O ÚNICO: O único tendo imortalidade, luz habitando inacessível ao qual não viu homem algum nem pode ver, ao qual honra e poder eterno. Amém (16). Qui solus habet inmortalitatem lucem habitans inaccessibilem quem vidit nullus hominum sed nec videre potest cui honor et imperium sempiternum amen. IMORTALIDADE [athanasia <110> = inmortalitas] Uma vez ressuscitado, a imortalidade era atributo de Cristo. Em corpo e alma sua eternidade estava segura como era a vida atribuída a Deus. Além da vida, da qual Jesus tinha dito que ele era dono [sou o caminho, a verdade e a vida] ele era também LUZ [phos<5457>=lux] oposta às trevas como afirma João, que também une vida e luz no prólogo: e a vida era luz dos homens (1, 4). Só que desta vez era luz INACESSÍVEL [aprositos<676>=inaccessibilis] derivado do verbo prosiemi (ir a) com o a negativo e contrário de não poder ser alcançado. Deus identificava-se com a luz como lemos em Is 60, 19: o Senhor será a tua luz perpétua e no Salmo 104, 2, fala de Deus como coberto de luz como de um manto. Como vemos, Paulo e o Apocalipse usam termos que, na tradição judaica, eram representativos da divindade. Precisamente nas revelações místicas essa luz aparece como manifestação da divindade. Essa luz não foi vista por homem algum e é, sem dúvida, uma experiência paulina como ele descreve sua incursão no terceiro céu onde ouviu palavras inefáveis, as quais não é lícito ao homem referir (2 Cor 12, 4) em consonância com o que o mesmo Paulo diz em 1 Cor 2, 9: Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. HONRA e PODER ETERNO, é a doxologia final que se refere ao Cristo já divinizado  no céu, ou seja, mostrando seu poderio final, em que a majestade corresponde à honra com que deve ser adorado. AMÉM é o final de toda oração que implicava o desejo de ser ouvida complacentemente por Deus.

EVANGELHO (Lc 16, 19-31)

O RICO EPULÁRIO

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: A parábola é própria de Lucas. Junto com a chamada do filho pródigo constitui uma das bases da teologia de Lucas ou de Paulo como própria da misericórdia divina com a qual Deus olha o mundo e define sua atitude perante os problemas definitivos do homem. A quem Deus escolhe definitivamente como membros do novo Reino e como convivas do banquete eterno? A resposta está nesta parábola porque a declaração de Abraão é propriamente a moral da história: Recebeste boas (sic) na vida e Lázaro as más. Agora ele é consolado, e tu atormentado (25). Se a parábola do filho pródigo era a parábola da misericórdia, esta é a parábola da justiça, derivada dessa misericórdia. Todos têm sua chance de experimentar os bens: ou nesta vida ou na outra. A outra conclusão é que a eternidade depende da conduta presente dos vivos. Como nota importante está a conclusão de que a fé forma parte de uma tradição e não de uma vivência ou experiência particular. Quem não está disposto a escutar as palavras proféticas não escutará as que um ressuscitado possa testemunhar. A primeira parte da parábola -inversão dos bens devido à morte- tem paralelos na literatura universal. A segunda parte -a dificuldade de conversão de um rico- é própria de Jesus e narrada especialmente por Lucas.

O RICO EPULÁRIO: Havia, pois, certo homem rico, e se vestia de púrpura e de bisso, banqueteava-se todo dia esplendidamente (19). Homo quidam erat dives et induebatur purpura et bysso et epulabatur cotidie splendide. RICO [plousios<4145>=dives]. A tradição o chama de epulário, do latim epulari. O nome epulário significa conviva ou comensal; provavelmente deduzido do castelhano que é epulón, homem que come e bebe muito, derivado por sua vez do latim épulo quem da um convite ou também convidado, comilão. O latim o usa mais frequentemente no plural e eram assim designados os três varões romanos [triumviri epulones] que cuidavam dos convites oferecidos aos deuses. Como nota curiosa vamos aportar alguns dados sobre o sacerdócio romano e seus colégios, entre os quais podemos incluir o dos epulones. Da história romana sabemos que o último rei Tarquínio foi deposto para dar passo à república em 509 aC após seu filho violar Lucrécia, dama romana que para defender sua honra se suicidou. Ao se proclamar a república, esta teve que dividir o poder entre rex romanorum [rei dos romanos] cujo papel foi dado aos cônsules e rex sacrorum [rei das coisas sacras]. Assim o mantenedor deste título recebeu o nome de Pontifex maximus  e era o chefe do Colégio dos pontífices ou flâmines. Três eram os flâmines maiores: Dialis de Júpiter, Martialis de Marte e Quirinalis de Quirino [antigo deus da guerra]; e 12 menores, entre eles por exemplo flamen Cerialis de Ceres, deusa da terra e das colheitas. Existia também o colégio dos augures, que se distinguiam por predizer o futuro pelo voo dos pássaros ou como nos pullaius pela conduta dos frangos na comida. Temos os duoviri sacris facundis, que foi aumentado até 15, encarregados dos livros da Sibila, consultados quando os raios ou outros portentos aconteciam. Temos o colégio dos Fetiales, de 20 em número, que eram os que declaravam a guerra que só era justa [bellum pium] se declarada pelos fetiales. Outro grupo era o dos arúspices em número de 60, mas sem formar collegium, que adivinhavam através das entranhas dos animais sacrificados. Temos os triunviri Epulones inicialmente três, mas depois unidos num colégio cujo número foi incrementado a sete. Sua função era supervisar os ritos sacros no opulum Jovis, ou festa de Júpiter que era celebrava junto com os Ludi Romani e os plebeus, onde exerciam funções que anteriormente eram próprias dos pontífices. Os ediles organizavam os jogos, mas os epulones visavam os ritos sacros dos mesmos. Todos estes eram os chamados maiores pontífices, pois também existiam os menores, chamados sodales. Como vemos o nome epulón dado ao rico é um tanto impróprio e traduzi-lo por epulário [conviva] é ainda mais inadequado. Qual era o nome do rico já que epulón ou epulário não é correto? Alguns manuscritos antigos falam de Níneve que lembra a grande cidade que percorreu Jonas anunciando a destruição. Na realidade as escavações de Nínive deram como resultado palácios em que Senaquerib e Assurbanipal tinham as maiores riquezas de todos os seus saques nas guerras, como vemos em Baltazar em que os vasos sagrados do templo de Jerusalém eram os recipientes do banquete (Dn 5, 2). Portanto chamar de Nínive ou Níneve o rico é uma conveniência dos leitores que veem o nome do pobre e não encontram o nome do rico. PÚRPURA E BISSO: A púrpura era uma cor vermelha forte que se parece com a cor violeta ou roxa. Historicamente, pelo seu preço e raridade era a cor purpúrea utilizada pelos reis e imperadores. Na antiguidade a cor era extraída das pequenas quantidades existentes em alguns moluscos das costas orientais do mediterrâneo. O molusco, de grande tamanho, segrega uma substância amarela que ao contato com o ar se transforma em cor vermelha violácea. A terra hoje do Líbano era chamada Fenícia que em grego significa vermelho [foinós], pois na época sua indústria de cor púrpura era famosa. O líquido do molusco, espécie de concha, era misturado com sal e cozido de modo a obter duas cores diferentes: uma de azul violeta ou púrpura e outra de cor vermelha. Dada a grande quantidade de moluscos necessários para tingir uma túnica compreende-se que a púrpura fosse a veste do Sumo sacerdote e o ornato luxuoso do templo e o distintivo de reis e pessoas muito ricas ( Jz 8, 26 e Jr 10, 9). Os romanos da república não a vestiam na sua tradicional sobriedade, mas era considerada, junto com o ouro e a prata, botim precioso de guerra. Daí a raridade e o preço que a acompanhavam. O Byssus ou bisso era uma tela de linho finíssima, quase transparente, de cor branca ou bege, que junto com a púrpura violeta ou escarlate foi oferecida para fabricar a tenda do tabernáculo no deserto (Ex 25, 4). O bisso seria o que os romanos chamavam de linum candidissimum [lino branquíssimo]. Se a púrpura era um produto de exportação, especialmente produzido em Tiro, o bisso era importado do Egito. Ou seja, em questão de vestidos o nosso rico era singular e extraordinário, da creme e nata dos melhores. BANQUETEAVA-SE: O verbo eufrainizo [<2165>=epulari] significa regozijar-se, recrear-se, ter momentos alegres, gozar da vida. O advérbio LAMPRÖS [<2988>=splendide] [esplendidamente] indica que não havia prazer que ele não degustasse, tanto na comida como nas festas lascivas que acompanhavam os banquetes. Como banquete esplêndido temos o dado pelo imperador Vitélio: antes de ser destronado esteve comendo um menu de vinte pratos, entre eles miolos de cotovias com mel. Marco Aurélio Antonino [Heliogábalo]  mandou servir 1500 línguas de flamingo a seus convidados. Maximino Trácio que numa só jornada chegou a ingerir 16 quilos de carne e 32 litros de vinho. O banquete mais numeroso foi  dado por Júlio César a 200 mil pessoas em 22 mil mesas, durante várias jornadas.

O MENDIGO: Porém havia certo mendigo de nome Lázaro, o qual jazia à sua porta coberto de chagas (20), e desejando se satisfazer das migalhas que caiam da mesa do rico; mas até os cães, chegando, lambiam as suas chagas (21).Et erat quidam mendicus nomine Lazarus qui iacebat ad ianuam eius ulceribus plenus. cupiens saturari de micis quae cadebant de mensa divitis sed et canes veniebant et lingebant ulcera eius. Seu nome era LÁZARO[=Eleazar, Deus ajudou]. A descrição da vida do infortunado mendigo era totalmente realista. O esquecimento dos homens, a doença de suas chagas, a sua morte inglória tudo está conforme ao que inclusive atualmente conhecemos desses pobres seres humanos. Se, na atualidade, uma percentagem dos mesmos é parte dos eufemisticamente chamados débeis mentais, na época de Jesus eram cegos, mancos e outros aleijados. A sorte do nosso pobre era ainda mais infortunada ao ouvir os cantos, os risos e o regozijo e barulho dos convivas dentro da casa. É uma descrição para opor a sorte de um e o infortúnio do outro. Um detalhe que depois ver-se-á repetido, mas de forma contrária, é que nem mesmo as migalhas do banquete lhe eram fornecidas. Os cães da rua eram os únicos que aliviavam suas chagas.

SORTE POSTERIOR DO MENDIGO: Sucedeu, pois, morrer o mendigo e ser ele levado pelos anjos ao seio de Abraão. Porém morreu também o rico e foi sepultado (22). Factum est autem ut moreretur mendicus et portaretur ab angelis in sinum Abrahae mortuus est autem et dives et sepultus est (in inferno). Sem que houvesse intervenção humana, o mendigo é levado por anjos ao seio de Abraão. É a primeira vez que os anjos aparecem como mensageiros divinos após a morte. O saduceu, seguindo o AT, diria que tudo acabava com a morte. Jesus, pelo contrário, afirma que tudo começa quando tudo acaba. Só que as sortes estão trocadas. SORTE DO RICO: Seu corpo foi sepultado como convinha a sua riqueza, sem dúvida, mas sua alma entrou no profundo dos infernos, o Hades, que vamos descrever no que é possível segundo as poucas e parciais referências de que dispomos. Na realidade, só a Vulgata fala do inferno; o grego termina com o sepulcro do rico. Mas, evidentemente, a sorte do rico foi o inferno como veremos depois, pois a Vulgata traz neste versículo o que o grego acrescenta ao seguinte.

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O SHEOL OU HADES: E no Hades, levantando seus olhos, estando em tormentos, vê Abraão de longe e Lázaro em seus seios (23). [in inferno] Elevans oculos suos cum esset in tormentis videbat Abraham a longe et Lazarum in sinu eius. HADES [<66>=infernus], que em latim é infernus e em hebraico Sheol. O significado de sheol se distribui entre a tumba, o mundo de ultra tumba e o estado depois da morte. A ideia de que os mortos existiam num mundo que os babilônios chamavam de Aralu, e os ugaríticos de Oeres era comum aos povos antigos. O sheol era um lugar abaixo da terra (Ez 31, 15) um espaço de pó (Jó 17, 16), de trevas (Jó 10, 21), de silêncio (Sl 94, 17) e esquecimento (Sl 88, 13). Algumas vezes as distinções existentes na vida terrena são descritas como continuando no sheol; mas sempre este é um lugar de fraqueza e tristeza. Nalgumas passagens do AT o sheol tem um aspecto punitivo (Sl 49, 13-14) e, portanto uma morte prematura é uma forma de penalidade. O AT considera a vida terrena como a arena para demonstrar o serviço devido a Deus. Portanto, estar no sheol é estar fora do âmbito divino. Sheol dizem que significa destruição, poço, cova, ou corrupção. Na literatura perto do NT encontramos no Sheol divisões que distinguem os malvados dos justos nos quais eles desfrutam de seus últimos destinos como vemos na parábola de hoje. O Hades representa o mundo de ultra tumba ou dos mortos nos clássicos gregos. A setenta traduz Sheol por Hades. Logo podemos dizer que Hades equivale ao Sheol como vemos em At 2, 27. Jesus fala das portas do Hades que não prevalecerão (Mt 16, 18). A defesa das portas de uma cidade era essencial para não ser conquistada; eram, pois, figura do poder da mesma. A frase descer ao Sheol (Mt 11, 23) é metaforicamente entendida como cair na profundeza da degradação. GEHENA: Uma outra palavra que descreve o destino de ultra tumba é gehena (Mt 5, 22 Mc 9, 43 e Lc 12, 5). A palavra deriva de ge-bene-hinoum. Ou seja, Vale dos filhos de Hinnom. Era um vale perto de Jerusalém onde crianças foram sacrificadas e queimadas ao Baal ou deuses gentílicos. Era o lugar de punição para pecadores, descrito como espaço de fogo incombustível, fogo que é a medida do castigo divino (Dt 32, 22). Os rabinos da época distinguiam entre um fogo temporal e purgativo, um fogo totalmente destrutivo e um fogo eterno. Esta eternidade está claramente indicada em Mateus (9,43; 18, 8; 25, 46). Eternidade que é confirmada no Apocalipse para a besta e o profeta, para a morte e o inferno, para o Diabo e os agentes da maldade (Ap 20,10. 14-15  e 21,8), lançados ao lago de fogo que constitui a segunda morte. Esta Gehena que é lugar de suplício é traduzida por 2 Pd 2, 4 como Tártaros. Na mitologia grega o Tártaro representa a região mais profunda, situada no fundo dos infernos, onde Urano primeiro e Cronos depois,  lançavam, finalmente, para Zeus, os que o tinham ofendido. Segundo Homero, era a prisão dos deuses vencidos e dos heróis que tinham agravado a Zeus. No século VI aC se transformou no lugar onde os homens culpáveis deviam cumprir seu castigo. Na Eneida, Virgílio o descreve como uma grande prisão onde moravam as Fúrias. Situavam-no principalmente perto do Averno, nome poético do Inferno. Devemos distinguir entre Inferno e infernos. Este último termo indica o mesmo que Sheol, ou seja, os lugares inferiores dentro da terra, enquanto moradas dos mortos. O Inferno propriamente dito é a sorte [não falamos hoje de lugar] do ser humano que voluntariamente se separa de Deus, como fonte de vida, por opção definitiva. O NT o define com diversas imagens com a ajuda de diversas metáforas ou mitologias: Abismo, trevas exteriores, fogo inextinguível, lago de fogo, etc. Com tudo isso define-se a sorte do pecado e do ser humano que com ele quer se identificar. SEIO DE ABRAÃO: é esta passagem a única, em que se descreve o que em outras passagens é chamado o Édem. Uma outra vez em Jo 13, 23-25 temos a descrição de alguém se reclinar no seio de outra pessoa: é o discípulo amado reclinado no peito de Jesus. Precisamente por esta circunstância e a de que o Reino é comparado com um banquete, podemos deduzir que agora o banquete era aquele em que participava Lázaro, apoiado no regaço do pai comum de todos os israelitas. É um paraíso ao estilo alcoranista que Jesus deve descrever para ser melhor entendido por seus ouvintes. O Paraíso é uma palavra que aqui não é usada. A distinção está entre seio de Abraão e o sheol não entrando o paraíso como termo comparativo. De fato, a palavra paraíso significa jardim ou parque. Desde o Gênese, em que o homem foi colocado nele e tinha a árvore da vida para ser expulso, uma vez cometida a desobediência, a palavra paraíso [paradeisos grego] não sai, a não ser três vezes, no NT. No AT temos o jardim do Édem que é traduzido ao grego por paraíso de delícias e em outras passagens por Paraíso de Deus. O seio de Abraão formava parte do Hades [infernos] no interior da terra e o paraíso era no terceiro céu segundo o que diz Paulo (2 Cor 12, 2), pois o identifica a continuação com o paraíso (idem 4). Foi esse paraíso que Jesus prometeu ao malfeitor arrependido (Lc 23, 4) e que no Apocalipse descreve-se como contendo ainda a árvore da vida (2, 7). Consequentemente a descrição de Jesus pertence ainda ao AT e não podemos deduzir dela verdades absolutas. Só que antes do ato redentor já existiam no outro mundo, no sheol, duas esferas: uma superior [levantou os olhos (23)] de relativa felicidade, semelhante ao que na terra podemos chamar de bemaventurança; e outra de tormentos, com um fogo que aumentava a sede.

PETIÇÃO DO RICO: E ele clamando disse: Pai Abraão, tem compaixão de mim e envia Lázaro para que mergulhe a ponta do seu dedo em água e refresque minha língua porque estou sofrendo nesta chama (24). Porém disse Abraão: Filho, relembra que tu recebeste as tuas boas (coisas) em tua vida e Lázaro de modo semelhante as más; agora, pois, aqui  é consolado tu porém és atormentado (25). E além de tudo entre nós e vós um grande abismo está presente de modo que os que desejam passar daqui para vós não podem, nem os dali para nós passar (26). Et ipse clamans dixit pater Abraham miserere mei et mitte Lazarum ut intinguat extremum digiti sui in aqua ut refrigeret linguam meam quia crucior in hac flamma. Et dixit illi Abraham fili recordare quia recepisti bona in vita tua et Lazarus similiter mala nunc autem hic consolatur tu vero cruciaris   Et in his omnibus inter nos et vos chasma magnum firmatum est ut hii qui volunt hinc transire ad vos non possint neque inde huc transmeare. Era uma migalha de água à semelhança da que ele tinha negado como comida a Lázaro. Mas era impossível porque o que separava ambos os grupos não eram umas portas de uma casa, mas um abismo [chasma em latim, com o significado de apertura na terra ou entre nuvens] ou fenda, que impedia o intercâmbio entre as duas esferas: a dos que sofrem e a dos que estão sendo consolados. Abraão apela também à justiça que no novo mundo estabelece uma mudança de papeis para que não sempre os desafortunados tenham os mesmos destinos. Não são os mais venturosos os que determinam a justiça, mas os mais desfavorecidos são os que pautam a justiça que busca a igualdade de oportunidades. Essa foi a resposta de Abraão que o rico não pode refutar.

SEGUNDA PARTE: Então disse: então te rogo pai, para que envies  a ele à casa de meu pai (27). Pois tenho cinco irmãos para que testemunhe a eles de modo que eles  não venham também a este lugar de tormento (28). Diz-lhe Abraão: Têm Moisés e os profetas: Os escutem (29). Porém ele lhe disse: Não, pai Abraão, mas se alguém dentre os mortos for ter com eles converter-se-ão (30). Então lhe disse: Se a Moisés e aos profetas não ouvem, nem se um dentre os mortos ressuscitar, acreditarão (31). Et ait rogo ergo te pater ut mittas eum in domum patris mei. Et ait illi Abraham habent Mosen et prophetas audiant illos. At ille dixit non pater Abraham sed si quis ex mortuis ierit ad eos paenitentiam agent. Ait autem illi si Mosen et prophetas non audiunt neque si quis ex mortuis resurrexerit credent. O anúncio aos vivos. Nesta circunstância o rico se torna altruísta e pede que seus irmãos sejam oportunamente avisados para evitarem o lugar de tormentos, onde ele agora se encontra submergido. A resposta de Abraão é terminante: Se não ouvem Moisés e os profetas, isto é, as palavras da Escritura, a palavra de Deus, nem se um morto ressuscitar, escutarão seu testemunho.

PISTAS: 1) A distinção entre ricos e pobres parece uma injustiça que clama ao céu como última causa. Por isso a parábola é uma resposta sapiencial de Jesus: a justiça será corrigida quando as sortes forem trocadas na outra vida, que por ser eterna merece o título de verdadeira.

2) Embora de modo imperfeito a distinção entre os dois lugares, o de tormentos e o de consolação, demonstra que existem prêmios e castigos na vida além túmulo. E que essa distinção não pode ser mudada pelo querer do homem. É definitiva, mas pode ser prevista pela conduta humana neste mundo.

3)O milagre não convence. Porém firma a fé dos que já estão convencidos. A palavra da Escritura salva unicamente quando ela é escutada e obedecida.

4) Para que a palavra seja eficaz devemos estar preparados para escutá-la, retirando obstáculos, de modo que quem não deseja ouvir a voz de Deus na palavra revelada não encontrará outra palavra eficaz ou fato suficiente para convidá-lo à reflexão e arrependimento.

5) A conduta do rico é escandalosa e modelo de muitas condutas atuais pelo seu esbanjamento e falta de consideração com seus semelhantes.

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