A natureza de Deus e seu agir

Diante da palavra de Deus que se revela somente cabe ao homem a adoração e o agradecimento; o homem cai de joelhos diante de um Deus que sendo transcendente é mais interior a mim que eu mesmo.

1. Quem é Deus?

Ao longo da história, todas as culturas se fizeram esta pergunta; tanto é assim que os primeiros sinais de civilização se encontram geralmente no âmbito religioso e cultural. Crer em Deus está em primeiro lugar para o homem de qualquer época [1]. A diferença essencial está em qual Deus se crê? De fato, em algumas religiões pagãs o homem adorava as forças da natureza, enquanto manifestações concretas do sagrado, e contavam com uma pluralidade de deuses, ordenada hierarquicamente. Na Grécia antiga, por exemplo, também a divindade suprema, em um panteão de deuses, era regida, por sua vez, por uma necessidade absoluta, que abarcava o mundo e os próprios deuses [2]. Para muitos estudiosos da história das religiões, em muitos povos ocorreu uma progressiva perda, a partir de uma “revelação originária”, do único Deus; mas, em todo caso, inclusive nos cultos mais degradados, podem ser encontradas chispas ou indícios em seus costumes da verdadeira religiosidade: a adoração, o sacrifício, o sacerdócio, o oferecimento, a oração, a ação de graças, etc.

A razão, tanto na Grécia como em outros lugares, tratou de purificar a religião, mostrando que a divindade suprema devia identificar-se com o Bem, a Beleza e o próprio Ser, enquanto fonte de todo bem, de todo o belo e de tudo o que existe. Mas isto sugere outros problemas, concretamente o afastamento de Deus por parte do fiel, pois desse modo a divindade suprema ficava isolada em uma perfeita autarquia, já que a mesma possibilidade de estabelecer relações com a divindade era vista como um sinal de fraqueza. Além disso, tampouco fica solucionada a presença do mal, que aparece de algum modo como necessária, pois o princípio supremo está unido por uma cadeia de seres intermediários, sem solução de continuidade, ao mundo.

A revelação judaico-cristã mudou radicalmente este quadro: Deus é representado na Escritura como criador de tudo o que existe e origem de toda força natural. A existência divina precede absolutamente a existência do mundo, que é radicalmente dependente de Deus. Aqui está contida a idéia de transcendência: entre Deus e o mundo a distância é infinita e não existe uma conexão necessária entre eles. O homem e todo o criado poderiam não ser, e naquilo que são dependem sempre de outro; ao passo que Deus é, e é por si mesmo. Esta distância infinita, esta absoluta pequenez do homem diante de Deus, mostra que tudo o que existe é querido por Deus com toda sua vontade e sua liberdade: tudo o que existe é bom e fruto do amor (cfr. Gn 1). O poder de Deus não é limitado nem no espaço nem no tempo, e por isso sua ação criadora é dom absoluto: é amor. Seu poder é tão grande que quer manter sua relação com as criaturas; e inclusive salvá-las se, por causa de sua liberdade, se afastarem do Criador. Portanto, a origem do mal deve ser situada em relação com o eventual uso equivocado da liberdade por parte do homem – coisa que de fato ocorreu, como narra o Gênesis: vid. Gn 3 -, e não com algo intrínseco à matéria.

Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que, em razão do que se acaba de mencionar, Deus é pessoa que atua com liberdade e amor. As religiões e a filosofia se perguntavam o quê é Deus; ao invés, pela revelação, o homem é levado a se perguntar quem é Deus (cfr. Compêndio, 37); um Deus que sai ao seu encontro e busca o homem para falar-lhe como a um amigo (cfr. Ex 33, 11). Tanto é assim que Deus revela a Moisés o seu nome, “Eu sou aquele que sou” (Ex 3, 14), como prova de sua fidelidade à aliança e de que o acompanhará no deserto, símbolo das tentações da vida. É um nome misterioso[3] que, em todo caso, nos dá a conhecer as riquezas contidas em seu mistério inefável: somente Ele é, desde sempre e para sempre, aquele que transcende o mundo e a história, mas que também se preocupa com o mundo e conduz a história. Ele foi quem fez o céu e a terra, e os conserva. Ele é o Deus fiel e providente, sempre junto a seu povo para salvá-lo. Ele é o Santo por excelência, “rico em misericórdia” (Ef 2, 4), sempre disposto ao perdão. Deus é o ser espiritual, transcendente, onipotente, eterno, pessoal e perfeito. Ele é a verdade e o amor” (Compêndio, 40).

Assim, pois, a revelação se apresenta como uma novidade absoluta, um dom que o homem recebe do alto e que deve aceitar com reconhecimento de ação de graças e um obsequio religioso. Portanto a revelação não pode ser reduzida a meras expectativas humanas, vai muito mais além: ante a Palavra de Deus que se revela só cabe a adoração e o agradecimento, o homem cai de joelhos ante o assombro de um Deus, que, sendo transcendente, se faz interior intimo meo [4], mais próximo de mim que eu mesmo e que busca o homem em todas as situações de sua existência: “O criador do céu e da terra, o único Deus que é fonte de todo ser, este único Logos criador, esta Razão criadora, ama pessoalmente ao homem, mais ainda, ama-o apaixonadamente e quer, por sua vez, ser amado. Por isso, esta Razão criadora, que ao mesmo tempo ama, dá vida a uma história de amor (…), amor [que] se manifesta cheio de inesgotável fidelidade e misericórdia; é um amor que perdoa além de todo e qualquer limite” [5].

2. Como é Deus?

O Deus da Sagrada Escritura não é uma projeção do homem, pois sua absoluta transcendência só pode ser descoberta a partir de fora do mundo, e por isso, como fruto de uma revelação; quer dizer, não há propriamente uma revelação intramundana. Ou, dito de outro modo, a natureza, como lugar da revelação de Deus [6] remete sempre para um Deus transcendente. Sem esta perspectiva, não seria possível para o homem, chegar a estas verdades. Deus é, ao mesmo tempo, exigente [7] e amante, muito mais do que o homem se atreveria a esperar. De fato, podemos imaginar facilmente a um Deus onipotente, mas custa-nos reconhecer que essa onipotência possa nos amar [8]. Entre a concepção humana e a imagem de Deus revelada há, ao mesmo tempo, continuidade e descontinuidade, porque Deus é o Bem, a Beleza, o Ser, como diz a filosofia, mas, ao mesmo tempo, esse Deus ama-me a mim, que nada sou em comparação com Ele. O eterno busca o temporal e isso muda radicalmente nossas expectativas e nossa perspectiva de Deus.

Em primeiro lugar Deus é Uno, mas não em sentido matemático como um ponto, mas é Uno no sentido absoluto desse Bem, essa Beleza e esse Ser de quem tudo procede. Pode-se dizer que é Uno porque não há outro deus e porque não tem partes; mas ao mesmo tempo deve-se dizer que é Uno porque é fonte de toda unidade. De fato, sem Ele tudo se decompõe e volta ao não-ser: sua unidade é a unidade de um Amor que também é vida e dá a vida. Assim, pois, esta unidade é infinitamente mais que uma simples negação da multiplicidade.

A unidade leva a reconhecer a Deus como o único verdadeiro. Mais do que isso, Ele é a Verdade e a medida e fonte de tudo o que é verdadeiro (cfr. Compêndio, 41); e isto porque justamente Ele é o Ser. Às vezes, tem-se medo desta identificação, pois parece que, dizendo que a verdade é una, faz-se impossível todo diálogo. Por isso é tão necessário considerar que Deus não é verdadeiro no sentido humano do termo, que é sempre parcial. Senão que n’Ele a Verdade se identifica com o Ser, com o Bem e com a Beleza. Não se trata de uma verdade meramente lógica e formal, mas de uma verdade que se identifica com o Amor que é Comunicação, em sentido pleno: efusão criativa, ao mesmo tempo exclusivo e universal, vida íntima divina partilhada e participada pelo homem. Não estamos falando da verdade das fórmulas ou das idéias, que sempre são insuficientes, mas da verdade do real, que no caso de Deus coincide com o Amor. Além disso, dizer que Deus é a Verdade quer dizer que Deus é o Amor. De modo que, a imutabilidade de Deus e sua unicidade coincidem com sua Verdade, enquanto é a verdade de um Amor que não pode passar.

Assim se vê que, para entender o sentido propriamente cristão dos atributos divinos, é necessário unir a afirmação de onipotência com a bondade e a misericórdia. Somente depois de ter entendido que Deus é onipotente e eterno, alguém pode abrir-se à verdade esmagadora de que esse mesmo Deus é Amor, vontade de Bem, fonte de toda Beleza e todo dom [9]. Por isso, os dados oferecidos pela reflexão filosófica são essenciais, ainda que, de algum modo, insuficientes. Seguindo este percurso desde as características que se reconhecem como primeiras até as que se podem compreender só mediante o encontro pessoal com Deus que se revela, chega-se a entrever como estes atributos são expressos com termos distintos só em nossa linguagem, enquanto que, na realidade de Deus coincidem e se identificam. O Uno é o Verdadeiro, e o Verdadeiro se identifica com o Bem e com o Amor. Usando outra imagem, pode-se dizer que nossa razão limitada atua um pouco como um prisma que decompõe a luz nas diversas cores, cada uma das quais é um atributo divino; porém em Deus coincidem com seu próprio Ser, que é Vida e fonte de toda vida.

3. Como conhecemos a Deus?

Pelo que foi dito acima, podemos conhecer a Deus a partir de suas obras: somente o encontro com Deus que cria e que salva o homem pode revelar-nos que o Único é, ao mesmo tempo, o Amor e a origem de todo Bem. Assim Deus é reconhecido não só como intelecto – Logos segundo os gregos – que outorga racionalidade ao mundo (a ponto de alguns o terem confundido com o mundo, como acontecia na filosofia grega e como volta a acontecer em algumas filosofias modernas), mas que também é reconhecido como vontade pessoal que cria e que ama. Trata-se assim de um Deus vivo: mais
ainda, de um Deus que é a própria Vida. Assim, enquanto Ser vivo dotado de vontade, vida e liberdade, em sua infinita perfeição, Deus permanece sempre incompreensível; ou seja, irredutível a conceitos humanos.

A partir do que existe, do movimento, das perfeições, etc. pode-se chegar a demonstrar a existência de um Ser supremo, fonte desse movimento, das perfeições, etc. Porém, para conhecer o Deus pessoal, que é Amor, deve-se  buscá-lo em sua atuação na história a favor dos homens, e por isso, faz falta a revelação. Olhando para seu atuar salvífico, descobre-se seu Ser, do mesmo modo que, pouco a pouco, se conhece a uma pessoa através do relacionamento com ela.

Neste sentido, conhecer a Deus consiste sempre e apenas em reconhecê-lo, pois Ele é infinitamente maior do que nós. Todo conhecimento sobre Ele, procede d’Ele, e é dom seu, fruto de seu abrir-se, de sua iniciativa. A atitude para aproximar-se deste conhecimento deve ser, então, de profunda humildade. Nenhuma inteligência finita pode abarcar Aquele que é Infinito, nenhuma potência pode sujeitar ao Onipotente. Só podemos conhecê-lo por aquilo que Ele nos dá, isto é, pela participação que temos em seus bens, fundamentada pelos seus atos de amor por cada um.

Por isso, nosso conhecimento d’Ele é sempre analógico: enquanto afirmamos algo sobre Ele, simultaneamente temos que negar que essa perfeição se dê n’Ele segundo as limitações que vemos nos seres criados. A tradição fala de uma tríplice via: de afirmação, de negação e de eminência, de onde o último movimento da razão consiste em afirmar a perfeição de Deus para além daquilo que o homem pode pensar, e que é origem de todas as realizações dessa perfeição que se vêem no mundo. Por exemplo, é fácil reconhecer que Deus é grande, mas é mais difícil dar-se conta de que Ele é também pequeno, porque no criado, o grande e o pequeno se contradizem. Não obstante, se pensamos que ser pequeno pode ser uma perfeição, como se vê no fenômeno da nanotecnologia, então Deus tem que ser fonte também, dessa perfeição e, n’Ele, essa perfeição deve identificar-se com a grandeza. Por isso, temos que negar que é pequeno (ou grande) no sentido limitado que se dá no mundo criado, para purificar essa atribuição passando à eminência. Um aspecto especialmente relevante é a virtude da humildade, que os gregos não consideravam virtude. Por ser uma perfeição, a virtude da humildade não somente é possuída por Deus, mas que Deus se identifica com ela. Chegamos assim à surpreendente conclusão de que Deus é a Humildade; de tal modo que só podemos conhecê-lo em uma atitude de humildade, que não é outra coisa que a participação no dom de Si mesmo.

Tudo isso implica que se pode conhecer ao Deus cristão mediante os sacramentos e através da oração na Igreja, que torna presente seu agir salvífico para os homens de todos os tempos.

Giulio Maspero

Bibliografia básica

Catecismo da Igreja Católica, 199-231; 268-274.

Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 36-43; 50.

Leituras recomendadas

São Josemaria, Homilía Humildade, Amigos de Dios, 104-109.

J. Ratzinger, El Dios de los cristianos. Meditaciones, Ed. Sígueme, Salamanca 2005.

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[1]         O ateísmo é um fenômeno moderno que tem raízes religiosas, enquanto nega a verdade absoluta de Deus, apoiando-se em uma verdade que é igualmente absoluta, isto é, a negação de sua existência. Precisamente por isso, o ateísmo é um fenômeno secundário em relação à religião, e pode também entender-se como uma “fé” de sinal negativo. O mesmo pode ser dito do relativismo contemporâneo. Sem a revelação, estes fenômenos de negação absoluta seriam inconcebíveis.

[2]         Os deuses estavam sujeitos ao Hado, que tudo dirigia com uma necessidade muitas vezes sem sentido: daí o sentimento trágico da existência, que caracteriza o pensamento e a literatura gregos.

[3]         “Deus se revela a Moisés como o Deus vivo: ‘Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’ (ex 3, 6). Ao próprio Moisés Deus revela seu nome misterioso:‘Eu sou aquele que sou’ (YHWH) (Ex 3, 14). O nome inefável de Deus, já nos tempos do Antigo Testamento, foi substituído pela palavra Senhor. Deste modo, no Novo Testamento, Jesus, chamado o Senhor, aparece como verdadeiro Deus” (Compêndio, 38). O nome de Deus admite três possíveis interpretações: 1) Deus revela que não é possível conhecê-lo, afastando do homem tentação de aproveitar-se de sua amizade com Ele como se fazia com divindades pagãs mediante as práticas mágicas, e afirmando sua própria transcendência ; 2) segundo a expressão hebraica utilizada, Deus afirma que estará sempre com Moisés, porque é fiel e está ao lado de quem confia n’Ele; 3) segundo a tradição grega da Bíblia, Deus se manifesta como o próprio Ser (cfr. Compêndio, 39), em harmonia com as intuições da filosofia.

[4]        Santo Agostinho, Confissões, 3, 6, 11.

[5]        Bento XVI, Discurso na IV Assembléia Eclesial Nacional Italiana, 19-10-2006.

[6]        João Paulo II, Enc. Fides et ratio, 14-09-1998 , 19.

[7]         Deus pede ao homem – a Abraão – que saia da terra prometida, que deixe suas seguranças, confie nos pequenos, pede coisas segundo uma lógica distinta da humana, como no caso de Oséias. É claro que não pode ser uma projeção das aspirações ou dos desejos humanos.

[8]         “Como é possível perceber tudo isso, reparar que Deus nos ama, e não enlouquecer também de amor? É necessário deixar que essas verdades da nossa fé calem na alma, até mudarem toda a nossa vida. Deus nos ama: o Onipotente, o Todo-Poderoso, o que fez os céus e a terra!” (São Josemaria, É Cristo que passa, 144).

[9]         “Deus se revela a Israel como Aquele que tem um amor mais forte do que o amor de um pai ou uma mãe por seus filhos ou de um esposo por sua esposa. Deus em si mesmo, “é amor” (1 Jo 4, 8), que se dá completa e gratuitamente; que “tanto amou o mundo que enviou seu Filho único para que o mundo fosse salvo por Ele” (Jo 3, 16-17). Ao enviar a seu filho e ao Espírito Santo, Deus revela que Ele próprio é eterna comunicação de amor” (Compêndio, 42).

Fonte: Opus Dei

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