Em síntese: O presente artigo analisa a obra eclesiológica de Frei Leonardo Boff, mostrando tratar-se de estudo tendencioso e ambíguo. A partir do esquema, preconcebido, de que a cobiça do poder inspirou o comportamento dos pastores da Igreja através dos séculos, o autor propõe uma Igreja “carismática”, em que não haja docentes e discentes, mas se adotem os critérios de comportamento de uma democracia humana.
O estilo do autor é veemente, chegando á sátira; hipóteses são propostas como teses (principalmente quando o autor recorre à exegese bíblica protestante); falta por vezes ao autor a akribia (senso de exatidão) necessária a um estudo científico para matizar os respectivos dizeres, dando a posições discutidas o atributo de discutidas. Tal akribia se impõe de modo especial numa obra que não é destinada apenas a especialistas, mas se volta para o grande público, o qual muitas vezes está despreparado para discernir o certo do incerto e do errado.
Queremos crer que Frei Leonardo não se quer afastar da doutrina da reta fé; ele professa em seu livro que a Igreja é sacramentum, no qual, além de elementos humanos, há também valores divinos; todavia tais afirmações são empalidecidas, ou sufocadas pela veemência das acusações feitas à Santa Igreja. No decorrer da leitura do livro têm-se não raro a impressão de estar diante de uma obra inspirada por protestantismo e marxismo.
Comentário: Foi publicado em julho 1981 um novo livro de Frei Leonardo Boff O.F.M., que traz o título: “Igreja: carisma e poder” (Ed. Vozes, Petrópolis 1981). Esta obra vem suscitando hesitações e contradições…
É sempre desagradável dizer Não a um irmão, especialmente quando se sabe que é pessoa bem intencionada. A consciência, porém, pode exigir que o façamos no intuito de servir à verdade, que é patrimônio comum de todos os homens. – Neste artigo proporemos algumas considerações gerais sobre o livro em foco; depois passaremos à análise da tese central do livro; em apêndice será publicada uma recensão do Pe. Perego S. J. sobre outro livro eclesiológico de L. Boff.
1. Considerações gerais
Examinaremos quatro pontos sucessivos.
1.1. O estilo da obra
Quem lê a obra em pauta, observa de imediato algumas características significativas:
O autor aborda questões importantes de história da Igreja ou de doutrina de fé, fazendo afirmações generalizadas, sem explicitar matizes. Propõe hipóteses como se fossem teses firmes e indiscutíveis – o que ilude o leitor despreparado. Aliás, é curioso que desejando combater o autoritarismo, L. Boff, use de linguagem extremamente autoritária, caricatural, sarcástica … Impugnando a procura de segurança na doutrina e na disciplina dentro da Igreja, o autor parece ter segurança absoluta daquilo que diz; quem não concorda com ele, pode ser tachado de “cínico” (pág. 64, nº 9), de “ignorante” (p. 65), de “subserviente e inexpressivo” (p. 65), como pode ser escarnecido com ironia (pág. 68, nº 14). Diante de várias páginas do livro (para não dizer: diante do livro inteiro) o leitor tem a impressão de que está não frente a um teólogo ou um intelectual que estuda com objetividade e sem paixões o seu tema, mas, sim, diante de um escritor tendencioso e preconcebido, como são muitas vezes os adversários da Igreja, que afirmam sem conhecer bem (e sem querer conhecer bem) o assunto, pois estão interessados em denegrir e caricaturar passionalmente. Entende-se (embora não se justifique) que um não especialista combativo proceda de tal maneira, mas não se compreende que um teólogo como Frei Leonardo o faça. A propósito tenham-se em vista as páginas 96, 100, 140, 143, 144 e outras …
1.2. Linguagem ambígua
L. Boff usa vocabulário e linguagem que freqüentemente têm o sabor da ambigüidade – o que não se admite nem num livro científico nem num livro de ampla divulgação. Assim
a) “Estamos no fim das reformas, urge re-criar (a Igreja)” (pág. 101). Significa isto que vamos destruir todo o passado e recomeçar atualmente a história da Igreja, como o quis fazer Lutero no século XVI e como até hoje fazem os discípulos de Lutero, criando centenas de denominações, das quais as últimas já não são cristãs?
b) À pág. 126 lê-se: “No Novo Testamento constata-se a irredutibilidade de várias posições teológicas; existem contradições entre elas, assim entre S. Mateus e a epístola aos Gálatas, a epístola aos Romanos e a epístola de São Tiago. Mesmo dentro do corpus paulinum constatam-se contradições entre Rm 7,12 e Gl 3,13, concernindo à valorização da lei judaica” (pág. 126). – Ora as palavras “contradições” e “irredutibilidade” são, no mínimo, ambivalentes ou impróprias. O que há no Novo Testamento, são enfoques diversos ou a consideração de aspectos diferentes da mesma realidade que é a Lei de Moisés e a justificação; esses aspectos, julgados diversamente pelos Apóstolos, se complementam mutuamente e não são irredutíveis uns aos outros. Com efeito; São Paulo considera a entrada na graça ou na justiça (que se faz pela fé sem as obras), ao passo que São Tiago e São Mateus consideram a perseverança na justiça (que não ocorre sem obras); São Paulo mesmo ora focaliza a Lei de Moisés enquanto é santa e preceitua a santidade de vida (Rm), ora focaliza a Lei enquanto foi ocasião a que Israel conhecesse a sua fraqueza (Gl).
c) À p. 127, o autor fala da relatividade das fórmulas de fé e da necessidade de criar novas expressões da verdade revelada… Seria bom matizar esta afirmação: Paulo VI, na sua encíclica “Mysterium fidei” em 1965, lembrou a necessidade de guardar, apesar de tudo, certos termos e fórmulas aos quais se prende desde séculos a expressão da mensagem revelada; algo de análogo se deu em 1972 por parte da S. Congregação para a Doutrina da Fé na sua Instrução “Mysterium Filii Dei”. O abandono de certas expressões clássicas ocasionou e pode ocasionar perigo para a própria mensagem.
d) À p. 119 algo de semelhante ocorre em relação às páginas do Novo Testamento. Citando o autor protestante W. Marxsen, Leonardo Boff fala da “maneira dogmática de se ler os textos do Novo Testamento. Esta maneira dogmática considera pura e simplesmente, sem dar-se conta das mediações históricas, que o Novo Testamento é sem mais Palavra de Deus. Utiliza os textos dogmaticamente para justificar doutrinas, fundamentar inapelavelmente medidas disciplinares da Igreja. Portanto o catolicismo assume aqui novamente uma conotação pejorativa, como uma forma patológica de se viver e sentir a mensagem cristã”. – Perguntamo-nos: que significa isto? O Novo Testamento não pode ser tomado como fonte donde depreendamos as verdades da fé? Cremos que o autor não quer dizer isto, mas poderia ser interpretado como se o quisesse dizer.
e) Todo o cap. VII é uma exaltação do sincretismo! Sincretismo, no caso, quer dizer: capacidade de assimilar elementos novos sem destruição do essencial (pág. 170). Curioso, porém: o autor acha que “foi um erro histórico a exclusão do protestantismo” (pág. 141). Acha (?) que as mudanças na Igreja podem ocorrer à semelhança da conversão do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo na Missa; cf. pág. 109, nº 41 (citando uma poesia de Lothar Zenetti).
1.3. Influência marxista
O leitor não pode deixar de perceber certa influência do marxismo (ou de aspectos tendenciosos e discutíveis do marxismo) nas expressões e nas categorias assumidas pelo autor.
Assim às págs. 91-93, L. Boff transcreve um texto atribuído a um analista brasileiro, deixado no anonimato, sendo apenas citada no rodapé da pág. 93 a obra-fonte com título francês: “L’Église et la politique au Brésil” (sem local e ano de edição), “75-78”. Esse trecho, assaz longo, compara a autoridade na Igreja com a autoridade no Partido Comunista da União Soviética antes da revolução chinesa! Haveria entre ambos um paralelismo de estruturas e de comportamentos (pág. 93). Esta afirmação é, no mínimo, estranha e despropositada. À pág. 217 Emile Durkheim é associado às autoridades doutrinárias que L. Boff tenciona seguir (o autor se faz discípulo de gente muito pouco cristã). Se tais afirmações fossem proferidas por um comunista, tendencioso e superficial, não causariam surpresa; mas, ditas por um teólogo, que não pode deixar de conhecer matizes e facetas da matéria, torna-se algo de incompreensível e estarrecedor. A mesma comparação entre Igreja e marxismo reaparece à pág. 67.
À pág. 94, nº 20, os Papas Leão XIII e Pio XI são tidos como mais afins aos ideais do fascismo do que aos do liberalismo ou socialismo! A obsessão por ver ideologias em tudo é grande… – L. Boff cita Ch. Dawson, Religion and Modern State, N. Y., 1936, 135-136 para se fundamentar no caso.
Às págs. 184-187, a divisão do trabalho na Igreja condiciona as classes na Igreja.
À pág. 75 lê-se na Igreja alguns detêm os meios de produção religiosa e, consequentemente, “detêm o poder, criam e controlam o discurso oficial”. Seriam os membros da hierarquia. Os demais fiéis seriam os meros consumidores de tais bens. L. Boff julga que os detentores dos meios de produção “elaboram a sua correspondente teologia, que vem justificar, reforçar e socializar o seu poder, atribuindo origem divina à forma histórica de seu exercício” (pág. 76)! – Concepções marxistas aí estão subjacentes, desfigurando por completo a imagem da vida e do magistério da Igreja. Ademais a afirmação de L. Boff deveria ser comprovada, pois ela resulta de um esquema concebido a priori e aplicado cegamente à Igreja. Um teólogo não ignora quanto é artificial ou falsa a tese de L. Boff (ou do marxismo) quando aplicada à Igreja.
Às págs. 176s, o autor enfatiza o princípio de que “o eixo organizador de uma sociedade reside no seu modo de produção peculiar … Esta atividade é infra-estrutural e sobre ela se constrói tudo o mais na sociedade… Também a Igreja é condicionada, limitada e orientada pelo modo de produção específico”. Para ilustrar e corroborar tal asserção, Boff cita à pág. 177 A. Gramsci, um dos mentores do marxismo na Itália. O autor, portanto, recorre às categorias de análise marxista da sociedade, categorias que são materialistas e atéias e, por conseguinte, jamais poderão servir para construir uma autêntica teologia; de resto, o uso das mesmas foi explicitamente condenado pelo S. Padre João Paulo II em discurso proferido aos Bispos do CELAM aos 2/07/80: “A libertação cristã … não recorre … à praxis ou análise marxista, pelo perigo de ideologização a que se expõe a reflexão teológica, quando se realiza partindo de uma praxis que recorre à análise marxista. Suas conseqüências são a total politização da existência cristã, a dissolução da linguagem da fé na das ciências sociais e o esvaziamento da dimensão transcendental da salvação cristã”.
O c. VIII (págs. 172-195) é também altamente significativo, apresentando as características de uma Igreja articulada com a classe hegemônica e as características de uma Igreja articulada com as classes subalternas. Mais uma vez tem-se, subjacente, o esquema marxista de classe opressora e classe oprimida. O pobre seria sempre uma epifania do Senhor? Todo pobre é sempre um espoliado ou um empobrecido? Cf. pág. 186. Será que a akribía (exatidão), científica permite afirmar isto sem mais? Cf. PR 247/1980, p. 282-291 (que significa pobre no Documento de Puebla?).
1.4. O papel da exegese protestante liberal
O autor confia plenamente nas sentenças dos exegetas protestantes mais liberais, que tentam interpretar os Evangelhos e a figura de Cristo segundo referenciais racionalistas e assaz duvidosos (porque subjetivos). Por isso L. Boff julga que Jesus mesmo não fundou a Igreja, mas que esta se deriva da vontade dos apóstolos inspirados pelo Espírito Santo (págs. 222s 216). A bibliografia citada por Frei Leonardo é, em grande parte, protestante liberal, ficando as clássicas obras da teologia católica relegadas para o plano do superado.
2. A Igreja no livro em foco
Frei Leonardo não deixa de reconhecer que na Igreja há elementos divinos e elementos humanos (pág. 221) e que a Igreja é sacramento (pág. 130s)… Todavia tais afirmações são raras e pálidas no conjunto do livro, onde a Igreja é geralmente tratada como sociedade meramente humana, na qual teriam prevalecido os abusos de homens gananciosos e prepotentes. De modo especial a secção das págs. 60-76 é caricatural, com veste de aparato científico.
Tem-se a impressão de que, segundo Boff, a Igreja autêntica seria governada pelo povo de Deus, que deveria ter nos bispos e no Papa os seus representantes, de tal modo que não se justificaria a distinção entre Igreja discente e Igreja docente:
“A hierarquia se sente membro da Ecclesia discens e o leigo membro da Ecclesia docens. Cada qual é mestre e discípulo um do outro e todos seguidores do Evangelho. Na coexistência e simultaneidade das duas funções, deve-se entender o apelo de Jesus para que ninguém se deixe chamar de mestre, pai ou diretor espiritual, pois todos somos irmãos (cf. Mt 23, 8-10)” (pág. 215).
Pergunta-se então: qual o critério para discernir verdade e erro se todos são mestres e discípulos? Seria o Espírito Santo, que falaria no íntimo dos fiéis? Tal critério está sujeito a ser manipulado pelo subjetivismo, como demonstra a história do Protestantismo, cujas últimas denominações não reconhecem mais a Divindade de Cristo (cf. Mórmons, Testemunhas de Jeová, Estudiosos da Bíblia …).
Paulo Freire é citado para provar que a distinção entre docente e discente é patológica e desumanizante. A Paulo Freire são contrapostas as figuras dos Papas Gregório XVI (+ 1846) e Pio X (+ 1914); L. Boff cita frases destes Pontífices que evidentemente eram condicionadas pela necessidade de rejeitar o liberalismo e o modernismo da respectiva época. Cf. pág. 218.
Seria desejável a menção, muito mais importante, do “carisma seguro da verdade”, que o Concílio do Vaticano II atribui aos Bispos para guardarem e transmitirem autenticamente a mensagem da fé (cf. Constituição Dei Verbum nº 8). Se alguém quer dizer que os carismáticos devem governar a Igreja, não esqueça tal carisma peculiar dos Bispos. Diz explicitamente o Concílio:
“O ofício de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou transmitida foi confiado unicamente ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo. Tal magistério evidentemente não está acima da Palavra de Deus, mas a seu serviço, não ensinando senão o que foi transmitido …; com a assistência do Espírito Santo, piamente ausculta aquela Palavra, santamente a guarda e fielmente a expõe” (Dei Verbum nº 10).
Assim vemos que carisma e autoridade (= poder, na linguagem do livro em foco) não se opõem entre si. Deve haver autoridade na Igreja (e isto, por instituição do próprio Cristo; cf. Mt 16,16-19; Lc 22, 31s; Jo 21,5-17…); todavia essa autoridade não é comparável à que os homens detêm e exercem em sociedades meramente humanas, mas é autoridade carismática, ou seja, apoiada por especial carisma (= dom) de Deus para jamais levar o povo de Deus a erros em matéria de fé e de moral, antes para fazê-lo reconhecer cada vez mais as exigências do Evangelho sempre que isto se torne necessário. Mesmo os Papas de vida moral mais censurável, como Alexandre VI (1492-1503), nunca emitiram um decreto que contrariasse à fé e à moral da Igreja. Numa palavra, a autoridade na Igreja é serviço (diakonía), e não exercício de poder arbitrário.
Se não se admite essa carisma indefectível da verdade (que está acima da erudição dos teólogos, embora precise desta), é natural que se caia no Protestantismo e, muito especialmente, no Protestantismo congregacionalista (onde a congregação dos fiéis se governa na mais autêntica forma democrática). – Na verdade, a autoridade na Igreja vem de Cristo, que prolonga sua tríplice função sacerdotal, profética e pastoral nos ministros que Ele escolhe e ordena e que exercem suas funções não por delegação dos fiéis, mas por disposição do próprio Cristo (cf. discurso de João Paulo II aos ordenados no Maracanã aos 2/07/80); mesmo que haja eleição de Bispos, o eleito não recebe do povo a sua autoridade, mas de Cristo mediante os eleitores.
Compreende-se até certo ponto que deva haver autoridade forte na Igreja, pois esta não é obra humana. Se fosse criação de homens, logicamente poderia ser retocada e re-criada por homens, as suas decisões seriam tomadas simplesmente por maioria de votos; deveria prevalecer exclusivamente o bom senso fundamentado sobre razões filosóficas ou científicas. Acontece, porém, que a Igreja não é sociedade meramente humana; é, sim, sacramentum, ou seja, realidade sensível que assinala e transmite uma realidade divina, isto é, a presença e a graça de Cristo. Por isto os pastores da Igreja têm o dever de preservar a mensagem da fé e as autênticas expressões desta não segundo critérios puramente humanos, mas segundo os critérios que a S. Escritura, colocada dentro da Tradição viva da Igreja, aponta ao povo de Deus; para realizar esta função, o magistério da Igreja goza de especial assistência do Espírito (cf. Mt 16,16-19; Lc 22,31s; Jo 21, 15-17; 14,26); tal assistência não depende da santidade ou das faltas dos pastores da Igreja, mas se exerce sempre que a Igreja se deva pronunciar oficialmente em matéria de fé e de costumes.
Houve, sem dúvida, no passado da Igreja atitudes de Papas e Bispos fortemente autoritárias, que não correspondem ao modo de pensar e agir nem dos eclesiásticos nem do mundo de hoje. Observe-se, porém, que não se pode julgar o passado à luz das categorias de pensar e agir do presente. Os antigos praticavam de boa fé o que nos pode parecer hoje inaceitável; a geração que hoje acusa o passado, será um dia veementemente acusada pelas futuras gerações. Não se pode esquecer, por exemplo, que São Francisco de Assis, Santa Clara, S. Tomás de Aquino, S. Alberto Magno, S. Boaventura e outros santos e sábios viveram em pleno século XIII, que foi um século de Inquisição, e não deixaram uma palavra de protesto contra esta. – Aliás, sempre houve santos entre os Papas e pastores da Igreja através dos seus vinte séculos; viveram o amor a Deus e o serviço aos irmãos tão generosamente quanto lhes sugeriam as circunstâncias de sua época.
Todo fiel católico deve reconhecer que entre os pastores da Igreja de Cristo confiada a Pedro houve e há falhas intelectuais e morais. Mas isto não o impede de afirmar que, através das mãos humanas dos clérigos (às vezes, manchadas e poluídas), passou e passa incólume o ouro de Deus para todos os fiéis.
Ainda poderíamos citar numerosas passagens do livro de Frei L. Boff merecedoras de observações. O livro está, de ponta a ponta, inspirado pelos princípios que assinalamos até aqui. Tais princípios e as aplicações que dos mesmos faz L. Boff, se tomados a sério, levar-nos-iam a dizer que a eclesiologia de Boff é camufladamente protestante.
As considerações propostas neste artigo permanecem no plano dos estudos, onde é lícito (e, às vezes, necessário) discordar; principalmente quando se trata das verdades da fé, o dever de fidelidade aos autênticos mananciais (no caso, ao Senhor Jesus) é duplamente imperioso. Cremos que as hipóteses e as afirmações de Frei Leonardo, entregues à ampla divulgação num estilo “gostoso” de sátira e caricatura “científica”, são destinadas a destruir mais do que a construir, pois o autor não oferece ao leitor a ocasião de ver outros aspectos que ele aborda; ele não ajuda o leitor a criticar e a matizar as posições assumidas no livro; ao contrário, o autor da obra usa de estilo que parece dirimente … ou mesmo esmagador de qualquer tese contrária (quando na verdade se trata de um conjunto, em grande parte, subjetivo, oscilante e vulnerável). Cremos que Frei Leonardo, sincero como é, não deixará de refletir sobre estes tópicos.
APÊNDICE
A fim de evidenciar aos nossos leitores que as críticas à obras de Frei Leonardo Boff procedem também de outras fontes, como são os teólogos e recenseadores de livros europeus, já em junho de 1980 publicamos nesta revista uma recensão do livro “Jesus Cristo Libertador” elaborada pelo Pe. Leroy O. P. (cf. PR 246/1980), págs. 243-248). Neste fascículo publicaremos uma recensão da eclesiologia de Frei Leonardo Boff tal como aparece em livro congênere ao que acabamos de analisar, ou seja, no volume UNA IGLESIA QUE NACE DEL PUEBLO (Ediciones Sigueme, Salamanca 1979, págs. 523).
Esta obra compreende duas partes. A primeira contém os relatórios e as exposições proferidas no Encontro das Comunidades Eclesiais de Base ocorrido em Vitória (Brasil) de 6 a 8 de Janeiro de 1975. A segunda parte apresenta os ecos do Encontro das mesmas realizado também em Vitória (ES) de 29/07 a 1/08/1976; nessa secção da obra acham-se os estudos de seis peritos, a saber: o sociólogo protestante Jether Pereira Ramalho, o Pe. Eduardo Hoornaert, o sociólogo católico Pedro Ribeiro de Oliveira, o Pe. João Batista Libânio S. J., Frei Carlos Mesters e Frei Leonardo Boff. A respeito do texto deste último o Pe. A. Perego S. J. escreveu uma apreciação na revista Divus Thomas de Piacenza, 83.3, 1980, págs. 289-291, que se segue em tradução portuguesa:
“O sexto estudo, de Leonardo Boff, estende-se na descrição das comunidades de base como redescoberta ou, melhor, como refundação da Igreja. O ensaio-rio de Boff contém muitas páginas válidas e estimulantes; infelizmente, porém, apresenta muitas outras que confundem as idéias e não respeitam a doutrina da Igreja. Além de descrever a Igreja latina pré-conciliar com traços caricaturais, além de contrapor a Igreja-instituição e a Igreja carismática e além de pretender gratuitamente que a comunidade tenha precedido, no tempo, a organização (págs. 495s), o discurso do autor é contaminado por escatologismo de baixo jaez. Afirma que Jesus viveu sob o pesadelo da iminência escatológica do Reino e se enganou redondamente a este propósito (pág. 475). Aceita de olhos fechados a tese de Loisy segundo a qual “Cristo pregou o Reino de Deus e, no lugar deste, veio a Igreja” (págs. 477, 479), como também aceita a tese de Küng conforme a qual Cristo “não fundou nenhuma Igreja”, mas colocou apenas premissas para que a Igreja surgisse depois da sua morte (pág. 478). A Igreja dos gentios estava totalmente fora do horizonte de Jesus e os doze Apóstolos não podem ser chamados “Igreja em miniatura” (pág. 480). Pedro, fundamento da Igreja, como refere Mt 16,18, é apenas uma explicação etiológica1 (págs. 481-482). A faculdade de ligar e desligar é apenas de caráter doutrinário, e Pedro tem função de representante mais do que de chefe da comunidade (pág. 482).
Jesus falhou no intuito de instaurar o Reino, mas não desesperou; e Deus realizou a sua expectativa, concretizando o Reino na pessoa de Jesus. A Igreja assim substitui, de certo modo, o Reino não realizado, na medida em que é comunidade que continua a pregá-lo como se estivesse já realizado em Jesus (págs. 484-485).
A última ceia, com a instituição da Eucaristia e do sacerdócio do Novo Testamento, não é elemento constitutivo da Igreja, mas uma simples antecipação festiva do Reino que Jesus julgava pudesse irromper de um momento para o outro no mundo (pág. 483). A Igreja, essencialmente “Igreja dos gentios” (pág. 485), helenizável e helenizada (pág. 486), não nasceu em Pentecostes, mas depois: os Apóstolos não suspeitaram nem mesmo que a Igreja tivesse nascido em Pentecostes; nesta ocasião eles ainda esperavam ver Jesus aparecer sobre as nuvens (pág. 487).
Por isto a Igreja, não instituída por Cristo, “nasceu de uma decisão dos Apóstolos” e, se a Igreja “nasceu de uma decisão dos Apóstolos movidos pelo Espírito, então é claro, conclui o autor, que à Igreja toca essencialmente o poder de decisão comunitária, disciplinar e dogmática”, em conseqüência, a Igreja está ilimitadamente aberta a toda adaptação espácio-temporal sobre qualquer ponto, mesmo no que diz respeito à sagrada hierarquia (págs. 489-490); esquece o autor que esta é de iure divino.
“O episcopado, o presbiterado e as outras funções perdurarão” (pág. 491), diz o autor; mas logo depois acrescenta que “o importante não está neste ponto, mas no poder decisório da Igreja” (pág. 491). Em conseqüência, torna-se legítimo falar de “reinvenção” da Igreja (pág. 492); no caso particular da Eucaristia, se a Igreja o quisesse recebido o sacramento da Ordem. Seria até conveniente que, na atual situação de escassez de ministros ordenados, fossem delegados alguns leigos como ministros extraordinários para celebrar a Eucaristia. A sua celebração, porém, não se deveria chamar Missa, nem ser executada segundo o Ritual da Missa, mas chamar-se-ia Ceia do Senhor e se desenrolaria segundo um procedimento inventado pela criatividade popular (págs. 493-502).
Não é necessário que nos detenhamos em mostrar a inconciliabilidade destas opiniões do autor com a fé da Igreja. Acrescentemos apenas duas coisas. A primeira é que, em todos estes pontos, o autor, longe de ser original, segue acriticamente alguns autores modernos ditos “de crista da onda”, dos quais imita também a pouco louvável astúcia de rotular, como questões disputadas, as explanações nas quais são contrabandeadas doutrinas espúrias. A segunda é a imperdoável leviandade com que o autor líquida em bloco toda a séria e sólida teologia pré-conciliar como se fosse um acervo de “teses dogmáticas de antemão estipuladas” (pág. 491).
O livro se encerra sob o signo do entusiasmo e apresentando conclusões que nos parecem precisar de ser repensadas; tem aos montes, premissas inadmissíveis ou bastante discutíveis como são muitas das opiniões expressas pelos relatores”.
A. PEREGO
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1 Explicação etiológica … Isto quer dizer que o episódio de Mt 16, 16-18 teria sido forjado pelas comunidades cristãs primitivas para explicar a causa (aitia, em grego) do primado exercido pelos Bispos de Roma, em virtude de iniciativa própria e não por mandato de Jesus. A propósito pode-se observar que as frases de Jesus em Mt 16, 16-19 só se podem entender se foram originariamente proferidas em aramaico pelo próprio Jesus. Nenhuma comunidade cristã de língua grega teria “inventado” tal discurso de Jesus, pois a língua grega não usava as expressões que o texto de Mt 16,16-19 apresenta: Bar-jona, carne e sangue, Pai que está nos céus, portas do inferno, ligar-desligar, Kepha-kepha (em grego dir-se-ia Petros, petra, e não haveria trocadilho). Donde se vê que não se pode negar a autenticidade da promessa de primado feita a Pedro em Mt 16, 16-19.
Revista : “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº : 260 – ano : 1982 – Pág. 15
Fonte: http://www.pr.gonet.biz/index-catolicos.php