Mons. Julián Herranz
Presidente do Pontifício Conselho para a Interpretação dos Textos Legislativos
Os médicos chamam «enfarte» – que hoje podemos prevenir eficazmente – à obstrução de uma artéria, com o correspondente bloqueio do fluxo de sangue e a consequente necrose daquela parte concreta do corpo que o sangue já não é capaz de irrigar e vivificar. Fazendo uma comparação, ousaria dizer que também na vida dos fiéis e até no Corpo místico de Cristo podem verificar-se «enfartes espirituais»: isto acontece quando se reduzem ao mínimo de funcionalidade aqueles canais divinos da graça santificante que são os sacramentos, «instituídos por Cristo e confiados à Igreja, pelos quais nos é dispensada a vida divina» (Catecismo da Igreja Católica, 1131).
Se isto acontecesse com o sacramento da Penitência, instituído para a remissão dos pecados e para a reconciliação da alma com Deus e com a Igreja, a vida divina já não chegaria de modo ordinário, e aquela concreta parte do Corpo de Cristo – uma pessoa individual, ou uma inteira comunidade paroquial ou diocesana – acabaria por se debilitar espiritualmente, porque permaneceria surda às palavras sempre válidas do Verbo encarnado: «Arrependei-vos», «Fazei penitência» (Mt 4, 15; Mc 1, 15). Contudo, os bons Pastores, como os bons médicos, sabem recorrer a oportunos remédios para curar e, ainda melhor, para prevenir. É nesta óptica positiva de salvação, de renovado empenho por fazer descobrir a presença viva e operante do Senhor ressuscitado no sacramento, que se necessita compreender a presente intervenção disciplinar.
Este documento legislativo, um Motu proprio com o título «Misericordia Dei», respeitante a uma justa celebração de um Sacramento, constitui também um acto de governo eclesiástico, não só prudente e oportuno, mas também plenamente adequado ao magistério de João Paulo II acerca da virtude da justiça, vista como exigência primária da caridade e, ao mesmo tempo, inseparável da misericórdia no ordenamento jurídico da Igreja. Com efeito, as normas canónicas referem-se à realização do misericordioso desígnio divino de salvação, sob cuja luz mostram toda a sua dimensão de justiça duas realidades que sobressaem fortemente neste Motu proprio. Elas são: por um lado, o direito fundamental dos fiéis receberem dos sagrados Pastores os sacramentos instituídos por Cristo, (cf. CDC, cân. 213), neste caso, o sacramento do perdão e da misericórdia divina; e, por outro lado, o correspondente dever dos sagrados Pastores de estabelecer e fazer aplicar com diligência as leis canónicas e litúrgicas que garantam a válida e lícita celebração dos sacramentos (cf. CDC, cân. 841). Por isso, na introdução ao Motu proprio, o Romano Pontífice declara dirigir-se «aos meus irmãos Bispos – e, através deles, a todos os presbíteros – para um solícito relançamento do sacramento da Reconciliação, inclusive como exigência de autêntica caridade e de verdadeira justiça pastoral, lembrando-lhes que cada fiel, com as devidas disposições interiores, tem o direito de receber pessoalmente o dom sacramental».
Com base neste princípio, as normas dispositivas do presente documento – por muitos desejado, também na última Assembleia do Sínodo dos Bispos – referem-se, em primeiro lugar, ao único modo ordinário com que o fiel consciente de pecado grave pode receber o perdão divino, isto é, a confissão individual com a respectiva absolvição do ministro do Sacramento (bispo ou presbítero), que actua em nome e com a autoridade do próprio Deus, Pai de misericórdia. Por isso, recorda-se a todos aqueles (bispos, párocos, capelães, etc.) a quem é confiado um cargo com cura de almas, que têm a obrigação – jurídica, mas também moral – de providenciar para que sejam ouvidas as confissões individuais dos fiéis, e para tal fim sejam estabelecidos para sua comodidade, dias e horas nas respectivas igrejas, santuários, etc. Também todos os outros sacerdotes com faculdade de confessar são convidados – mesmo se sobrecarregados por outros encargos – a mostrar sempre a máxima disponibilidade para a administração deste sacramento do perdão e da alegria, que os fiéis são convidados a «redescobrir» e muitos procuram talvez sem o saber.
Ainda em sintonia com esta linha de relançamento disciplinar do sacramento, são recordadas também outras normas canónicas: sobre a integridade da confissão, que não pode ser uma simples acusação genérica dos pecados (n. 3); sobre as disposições pessoais dos penitentes (n. 7); sobre o lugar apropriado para a celebração sacramental, geralmente uma igreja ou oratório (n. 9, a); sobre a sede para a confissão, que – mesmo na variedade de formas possíveis – deve também incluir a possibilidade da grade fixa, para permitir que os fiéis e os próprios confessores dela se sirvam se o desejarem (n. 9, b), etc.
Em segundo lugar, o documento considera o modo extraordinário de administrar o Sacramento, isto é, a absolvição de vários penitentes em conjunto sem prévia confissão individual. São recordados os dois únicos casos, nos quais está prevista esta possibilidade de carácter excepcional: «o iminente perigo de morte» e o estado de «grave necessidade». Esta última situação deve-se considerar que existe somente «quando, dado o número de penitentes, não houver sacerdotes suficientes para, dentro de tempo razoável, ouvirem devidamente as confissões de cada um, de tal modo que os penitentes, sem culpa própria, fossem obrigados a permanecer durante muito tempo privados da graça sacramental ou da sagrada comunhão» (CDC, cân. 961, § 1, 2.º). A este respeito são dadas especificações detalhadas, também para refrear ou prevenir interpretações erradas ou abusivas, que infelizmente parece não terem faltado nalguns lugares.
Estas especificações normativas referem-se, precisamente, à inseparabilidade e ao significado das duas condições requeridas, que são: a impossibilidade de poder ouvir as confissões «devidamente» e «dentro de tempo razoável», e o facto de que os penitentes devam permanecer «por muito tempo» privados da graça sacramental. Não compete ao confessor julgar se ocorrem estas condições mas, em cada diocese, ao respectivo Bispo, tendo em conta os critérios normativos que cada Conferência Episcopal deve estabelecer quanto antes com um apropriado decreto geral conforme o direito (cf. CDC, cân. 455, § 2). Tudo isto para garantir, «numa matéria tão essencial para a vida da Igreja, a plena harmonia entre os vários Episcopados do mundo» (n. 6).
Por fim, deve notar-se a afirmação do Legislador de que tudo o que está estabelecido no Motu proprio «por sua natureza, vale também para as venerandas Igrejas Orientais Católicas, de acordo com os respectivos cânones do seu próprio Código». Tais cânones, de facto, contêm uma normativa muito semelhante ao Código latino, mas diferem ligeiramente dele nalguns pontos, sobretudo quanto ao procedimento para estabelecer os critérios referentes à «grave necessidade» no caso das absolvições colectivas, tendo em conta que nas Igrejas Orientais não existe a instituição canónica latina das Conferências episcopais (cf. cân. 720, § 3 do Código das Igrejas Orientais, em relação aos cânn. 961, § 2 e 455 do Código latino).
Quereria concluir, associando-me de todo o coração ao desejo do Santo Padre de que esta Carta Apostólica contribua para um ulterior relançamento do sacramento da Penitência, e sirva para superar as dificuldades na prática deste Sacramento. De facto, a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, assim como superou outras crises culturais e morais não menos graves, e conseguiu reeducar o gosto pela Verdade, Bondade e Beleza nas inteligências, está agora fortemente empenhada em voltar a semear no coração do homem a necessidade de redescobrir o sentido do pecado para reencontrar o sentido da misericórdia de Deus.