1. INTRODUÇÃO

            O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre o tema da Comunhão dos Santos. Sua elaboração é fruto da reflexão e do amadurecimento teológico a respeito da compreensão da Igreja como o Corpo Místico de Jesus Cristo, em que cada membro está unido aos demais, sendo Cristo Cabeça o seu centro de convergência. Para tal efeito, foi-se utilizada pesquisa bibliográfica, tendo como base os ensinamentos bíblico-dogmáticos, sobretudo da eclesiologia e da escatologia dos escritos paulinos e joaninos, esclarecidos pelas afirmações magisteriais do Catecismo da Igreja Católica, da Constituição Dogmática Lumen Gentium e da Constituição Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II, da Carta Communionis Notio, da Congregação para a Doutrina da Fé, entre outros textos devidamente citados, e enriquecidos pelas contribuições teológicas de Yves-Marie-Joseph Congar, em seu artigo sobre a Unidade da Igreja, publicado pela coleção Mysterium Salutis, e de J. Javier Alviar, em seu Manual de Escatología.

            Partindo do princípio de que há um fundamento ontológico para a unidade da Igreja, a primeira seção do desenvolvimento deste trabalho buscará encontrar esse fundamento na relação entre a fé na Comunhão dos Santos e a eclesiologia católica, entendendo a unidade da Santíssima Trindade como princípio fundamental dessa comunhão, explicando em que consiste propriamente a comunhão (comunicação interpessoal de bens espirituais) e, também, relacionando o entendimento católico de comunhão com o chamado universal à santidade. A falta de esclarecimento a respeito da unidade da Igreja conduz a muitas afirmações equivocadas sobre sua o que se entende por Comunhão dos Santos, ou porque se identifica a Igreja como uma realidade meramente espiritual, sem nenhuma relação com a visibilidade institucional que o Verbo divino consolidou com sua Encarnação, ou reduzindo-a a uma simples organização social de pessoas, cuja unidade se daria mais por elementos extrínsecos a Igreja do que por sua própria identidade. A teologia católica sobre a Igreja pretende explicar que ela é una, porque Deus é uno, e que essa unidade gera uma comunhão visível e invisível entre todos os seus membros, santificados pela obra redentora de Cristo.

            Em seguida, após se constatar o fundamento eclesiológico da Comunhão dos Santos, a pesquisa pretenderá se debruçar, na segunda seção do desenvolvimento, no seu aspecto escatológico, sobretudo no que se relaciona com a chamada escatologia intermediária. Resgatar-se-á os conceitos de Céu e Purgatório, integrando-os na tríplice dimensão da Igreja de Cristo como Peregrina/Militante, Padecente e Triunfante, realidade trans-histórica que supera mesmo a limitação imposta pela morte física dos fiéis em Cristo para a sua unidade. O esquecimento ou menosprezo que a teologia contemporânea confere à escatologia intermediária é um prejuízo para a fé católica, uma vez que, sem ela, a unidade da Igreja estaria circunscrita apenas à sua dimensão sincrônica, isto é, ao seu momento de existência atual, sem levar em consideração todo o seu percurso até hoje e com pouca ou quase nenhuma menção ao seu futuro definitivo em Deus, na consumação dos tempos. Em contrapartida, a doutrina católica, tal como a Igreja a ensina baseada na Revelação, garante que nem mesmo a morte pode romper os laços de unidade entre os membros do Corpo Místico de Cristo, subsistindo a comunicação interpessoal de bens espirituais.

            O último aspecto a ser desenvolvido em relação a Comunhão dos Santos, na terceira seção do desenvolvimento deste trabalho, se centrará nas implicações litúrgico-pastorais dessa verdade de fé católica, indicando a liturgia sacramental como um tempo oportuno para se atualizar e fortalecer essa comunhão no hoje da Igreja. Sem, no entanto, desconsiderar as múltiplas formas de piedade e devoção aos Santos, que alimentam a unidade entre os fiéis de Cristo e contribuem para manter viva a certeza de que não se caminha sozinho neste mundo rumo à pátria celestial, tentar-se-á apresentar que mesmo as contrariedades desta vida presente podem ser integradas no projeto salvífico de Deus, na medida em que o ser humano se deixa iluminar pela sua divina Palavra e decide pautar a sua vida segundo seus ensinamentos. A liturgia católica entendida como uma simples representação dos mistérios da vida de Cristo não transmite em si toda a força salvífica que Cristo lha conferiu, mas compreendida como atualização, no hoje, pelo Espírito Santo, da obra redentora de Cristo, a liturgia se torna o momento mais expressivo em que, misticamente, o Céu toca a Terra, e toda a Igreja pode entoar o seu louvor a Deus, em verdadeira comunhão, até que se cumpra o Reino escatológico de Jesus Cristo.

            Enfim, longe de querer esgotar essa temática, esta monografia quer, antes, ser um adequado caminho de introdução à compreensão da Comunhão dos Santos como um sinal de Deus para convidar a humanidade polarizada em disputas ideológicas e cada vez mais dividida a refletir sobre a necessidade de se promover a comunhão interpessoal. Esta, por sua vez, deve ser entendida como um verdadeiro caminho que conduz à  realização plena do indivíduo humano como pessoa e, consequentemente, à sua felicidade na participação da vida do Deus uno e trino e dos seus irmãos na fé em Cristo. Além disso, em consonância com o Magistério do Sumo Pontífice, Papa Francisco, a fé católica na Comunhão dos Santos é uma das formas mais salutares de se promover a Igreja “em saída”, uma vez que, ao promover sua real unidade, a Igreja Católica segue dando testemunho do amor de Deus por toda a humanidade, o qual deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (cf 1Tm 2, 4).

2. A COMUNHÃO PELA UNIDADE: A DIMENSÃO ECLESIOLÓGICA DA COMUNHÃO DOS SANTOS

            A primeira seção deste trabalho monográfico consiste em situar a questão da reflexão teológica sobre a Comunhão dos Santos dentro universo em que ela é inserida, da forma como o Símbolo Apostólico a expressa: como desdobramento do nono artigo de fé, que é o “creio na santa Igreja Católica”. Com isso, optar-se-á por tomar como ponto de partida, para se aprofundar o entendimento acerca do que essa verdade de fé anuncia aos cristãos, o seu viés eclesiológico, ou seja, a Comunhão dos Santos como uma realidade inerente à natureza mesma da Igreja, fundada por Jesus Cristo, ainda que, segundo o Catecismo da Igreja Católica,nº 1331, seu sentido primeiro seja o litúrgico-sacramental. A abordagem litúrgica da Comunhão dos Santos será apenas sinalizada nesta primeira seção, contudo seu aprofundamento se dará na última parte deste trabalho, como escopo da pesquisa. Dessa maneira, por agora, convirá  somente elucidar o fundamento da comunhão eclesial na própria unidade da Trindade; em seguida, desenvolver, partindo dessa unidade trinitária, como se estabelece a vida de comunhão entre os membros constituintes da Igreja Católica; para, enfim, relacionar a vivência da comunhão com a exigência da santidade cristã.

2.1 A Santíssima Trindade como o fundamento da unidade da Igreja de Cristo

O mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé e da vida cristã. É o mistério de Deus em si mesmo. É, portanto, a fonte de todos os outros mistérios da fé, é a luz que os ilumina. É o ensinamento mais fundamental e essencial na “hierarquia das verdades de fé”[1].

            As palavras supracitadas apresentam como o Catecismo da Igreja Católica deseja que todos os fiéis compreendam o mistério da Santíssima Trindade: como o centro da fé e da vida cristã. Isso significa que, em se tratando de verdades reveladas, não há outro caminho mais seguro e eloquente do que o conhecimento de Deus em si mesmo para se discorrer sobre qualquer assunto teológico, o que é, ao mesmo tempo, uma riqueza inesgotável para o fazer do teólogo, mas também um constante desafio, pois tratar de Deus em si mesmo é a tarefa mais difícil em teologia dogmática, e isso já rendeu intermináveis discussões, ao longo da história da teologia, de modo que esse não será o foco deste trabalho. O importante, aqui, é saber que a Santíssima Trindade é fonte e ápice de tudo o que há na vida cristã, e não poderia ser diferente em relação à compreensão da Comunhão dos Santos em seu viés eclesiológico.

            A Sagrada Escritura não está preocupada em apresentar definições sistemáticas ao expressar quem é o Deus cristão, mas ela utiliza várias imagens para essa finalidade, dentre as quais se destacará, aqui, a joanina. Nas palavras de São João, em sua Primeira Carta, “Deus é amor” (cf. 1Jo 4, 8). Mas, o que isso significa em sua real profundidade? Seria Deus apenas um sentimento tão banalizado nos dias de hoje, como o amor? O que o autor sagrado quis dizer ao afirmar, com tão poucas palavras, que Deus é amor? Sem querer entrar no mérito do que a exegese contemporânea dissecaria dessas breves palavras, mas recorrendo à compreensão canônica do texto bíblico, tentar-se-á explicar o que a expressão joanina “Deus é amor” significa e quais são as suas reais implicações para o tema em questão.

            No livro de Gênesis 1, 27, encontra-se o seguinte texto: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher os criou”. Ser criado à imagem e semelhança de Deus indica que o homem e a mulher possuem, de alguma maneira, aspectos inerentes à sua natureza metafísica, os quais denotam que todos os seres humanos são semelhantes ao seu Criador. A Antropologia Teológica, ciente disso, desenvolve essa verdade de fé, explicando que a inteligência e a vontade livre do ser humano são as suas capacidades mais sobressalentes, as quais confirmam sua criação à imagem e semelhança divinas. Contudo, uma terceira característica, por vezes, passa despercebida em alguns manuais de antropologia, que é a capacidade relacional interpessoal do homem. O ser humano, por ser criado à imagem e semelhança de Deus, não somente é dotado de um intelecto e de uma vontade livre, mas, principalmente, da potencialidade de se relacionar com os seus semelhantes, estabelecendo vínculos saudáveis de interação mútua, sem instrumentalização, manipulação ou exploração do próximo para fins egoístas, mas por uma simples verdade: o ser humano só se realiza plenamente quando se abre à relação com os seus semelhantes. O Catecismo ainda recorda que:

Por ser imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas alguma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado, por graça, a uma aliança com seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta que ninguém mais pode dar em seu lugar[2].

            Tal realidade, apresentada acima, confirma, portanto, o que São João quis expressar afirmando que “Deus é amor”. O amor, em sentido cristão, não consiste, apenas, em uma atração física, tampouco em sentimentos de afeição por outros entes queridos, mas, em primeiro lugar, como doação de vida. No mesmo texto, o autor da Primeira Carta de São João explica o que é o amor: “Nisto conhecemos o Amor: ele deu a sua vida por nós. E nós também devemos dar nossa vida pelos irmãos” (1Jo 3, 16). A palavra grega utilizada nos códices da Primeira Carta de São João que chegaram até os dias atuais é a)ga&ph, que a edição Vulgata da Bíblia traduziu como charitas; caridade, em português. Deus é amor caritativo, ou seja, em sua própria natureza, Deus é doação amorosa, e é à imagem desse Amor que o homem e a mulher foram criados.

            Contudo, se a Revelação afirma que Deus, em sua essência, é amor de doação, quando se verifica essa realidade em relação à obra da criação, esse entendimento a respeito de Deus é pacífico e claro: todo o universo é expressão do Amor, que é Deus, pois foi criado a partir do nada, isto é, aquilo que não possuía ser veio à existência, graças à livre vontade d’Aquele que é o Ser Subsistente por si mesmo: o Deus único. Mas, considerando Deus em si mesmo, antes do princípio dos tempos, ou melhor, antes de toda a obra criada, como conciliar a verdade da Revelação de que Deus é amor de doação? Para quem Deus se doava antes de criar todas as coisas? Houve um tempo em que Deus não fosse amor e, por conseguinte, não fosse doação? Afirmar que houve um tempo, antes da criação, em que Deus não era amor, porque não se doava a outrem extrinsecamente a Ele mesmo seria contradizer a própria essência divina revelada, que afirma Deus ser imutável (cf. Tg 1, 16-17). Do mesmo modo, afirmar que, antes da criação, Deus era amor, porque se doava a Si mesmo, compreendendo esse “Si mesmo” como um amor egoísta, contradiria o significado da palavra grega a)ga&ph, que é amor de doação. Como resolver esse dilema, então? A própria Revelação cristã resolve essa aparente contradição, apresentando o mistério da Santíssima Trindade.

            O Catecismo da Igreja Católica esclarece:

A Encarnação do Filho de Deus revela que Deus é o Pai eterno, e que o Filho é consubstancial ao Pai, isto é, que ele é no Pai e com o Pai o mesmo Deus único.

A missão do Espírito Santo, enviado pelo Pai em nome do Filho e pelo Filho “de junto do Pai” (Jo 15, 26), revela que o Espírito é com eles o mesmo Deus único. “Com o Pai e o Filho, é adorado e glorificado”[3].

            O Pai, o Filho e o Espírito Santo não são três substâncias divinas, mas uma única Substância, um único Princípio de toda a realidade criada, um único Deus verdadeiro, que é Amor em sua própria essência. Somente compreendendo Deus como Trindade de Pessoas é que se reconhece a profundidade da afirmação joanina de que Deus é amor: O Pai, desde toda a eternidade, doa seu Amor ao Filho, o qual lhe retribui igualmente, e esse Amor recíproco entre o Pai e o Filho é a própria Pessoa do Espírito Santo. Esse amor trinitário em sua essência pode ser constatado na história da salvação quando se percebe que quem Deus é em si mesmo ele o manifestou aos seres humanos, ao agir em prol de sua salvação. Bento XVI, em sua Encíclica Deus Caritas est, nº 19, discorre sobre isso ao firmar o Amor, que é Deus,

[…] reconhecendo o desígnio do Pai, que, movido por amor (cf. Jo 3, 16), enviou o seu Filho unigênito ao mundo para redimir o homem. Quando morreu na cruz, Jesus – como indica o evangelista – <<entregou o Espírito>> (cf. Jo 19, 30), prelúdio daquele dom do Espírito Santo que ele havia de realizar depois da ressurreição (cf. Jo 20, 22). […] De fato, o Espírito é aquela força interior que harmoniza seus corações [dos crentes] com o coração de Cristo e leva-os a amar os irmãos como Ele amou, quando Se inclinou para lavar os pés dos discípulos (cf. Jo 13, 1-13) e sobretudo quando deu sua vida por todos (cf. Jo 13, 1; 15, 13).

            Assim, por meio da experiência do agir salvífico de Deus no mundo é que o homem crente reconhece a revelação da essência divina como Trindade amorosa.         Contudo, o fato de Deus ser uma Trindade de Pessoas não deve obscurecer a sua unidade; antes, deve esclarecê-la, pois a unidade do Deus uno e trino se fundamenta na comunhão interpessoal, que, no caso das Pessoas divinas, se chama pericorese intratrinitária. Cada uma das Pessoas divinas está toda nas outras e vice-versa, como afirma o Concílio de Florença:

Estas três pessoas são um só Deus, não três deuses, porque uma só é a substância das três, uma a essência, uma a eternidade, e tudo isso uma <unidade>, sempre que a oposição de relação não o impede.

“Por esta unidade, o Pai está todo no Filho, todo no Espírito Santo; O Filho está todo no Pai, todo no Espírito Santo; O Espírito Santo está todo no Pai, todo no Filho. Nenhum precede o outro pela eternidade, o ultrapassa em grandeza ou o supera em poder”[4].

            A unidade da Trindade não se trata apenas de uma consonância entre as três Pessoas. Por serem um único Deus, uma única Substância divina, as três Pessoas, embora distintas devido às relações (geração ativa ou paternidade; ser-gerado passivo ou filiação; espiração ativa; e ser-espirado passivo ou personalidade do Espírito[5]), sua unidade é compreendida como uma compenetração entre si, e é essa compenetração o fundamento primordial da Comunhão dos Santos. Uma vez que o homem e a mulher foram criados à imagem e semelhança desse Deus uno e trino, que, em si mesmo, é relação de doação interpessoal, o plano divino se caracteriza como tornar os seres humanos partícipes desse mistério intratrinitário. Por isso, pode-se afirmar que o ser humano só é um ser intrinsecamente relacional, porque Deus o é em primeiro lugar.

            Dando um passo adiante no raciocínio teológico,  percebe-se que, se o plano divino era a inserção, por participação, da criatura humana no mistério de comunhão da vida intratrinitária, por ter criado o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, o dogma eclesiológico de que a Igreja de Cristo já estava prefigurada desde a obra da criação é uma verdade inalienável. O Catecismo esclarece:

“O mundo foi criado em vista da Igreja”, diziam os cristãos dos primeiros tempos. Deus criou o mundo em vista da comunhão com sua vida divina, comunhão esta que se realiza pela “convocação” dos homens em Cristo, e esta “convocação” é a Igreja[6].

            A Igreja é a expressão concreta do desejo de Deus de que a humanidade vivesse uma comunhão de amor por participação em sua natureza divina, o que se tornou plenamente possível com o envio e a obra do Filho e do Espírito Santo. É nessa mesma linha de pensamento que o Cardeal francês Yves-Marie-Joseph Congar defenderá a unidade da Trindade como fundamento da comunhão eclesial, em seu artigo sobre a unidade da Igreja, com as seguintes  palavras: 

É Deus, termo soberano de referência cuja unidade e unicidade se comunica à casa ou ao templo que habita, à cidade da qual é o príncipe e o princípio, à esposa da qual é o esposo e ao povo que ele chama à existência e se consagra para si, criando desta forma sua unidade[7].

            A unidade da Igreja de Cristo, expressa no mais profundo do seu entendimento como uma verdadeira comunhão interpessoal, é a natureza metafísica do homem, criado aberto à relação com os demais semelhantes, a fim de constituir uma solidariedade universal, elevada ao plano sobrenatural da graça, com o intuito de que o gênero humano pudesse participar pessoalmente e interpessoalmente da vida do Deus uno e trino. Numa sociedade humana qualquer constituída, o elemento de união é externo aos indivíduos e que, pelos processos de socialização, vão sendo internalizados a ponto de formarem uma unidade de interesses, por isso pode-se dizer que existem níveis de unidade social, partindo da simples associação, passando pela noção de comunidade e culminando, enfim, na comunhão. Na Igreja, o processo é inversamente distinto; uma vez que o princípio da unidade é interno e não externo, é justamente pela participação da vida humana na vida do Deus uno e trino que se realiza o caminho da comunhão. É a comunhão com Deus que garante a comunhão entre os fiéis de Cristo na Igreja[8].  Por isso, para evitar algumas más interpretações sobre o que seja a comunhão, em sentido teológico, a Carta aos Bispos da Igreja Católica, Communionis Notio, publicada pela Congregação para a Doutrina da Fé, em 28 de Maio de 1992, durante o pontificado de São João Paulo II, esclarece logo em seu início:

O conceito de comunhão está “no coração da autoconsciência da Igreja”, enquanto Mistério da união pessoal de cada homem com a Trindade divina e com os outros homens, iniciada na fé, e orientada para a plenitude escatológica na Igreja celeste, embora sendo já, desde o início, uma realidade na Igreja sobre a terra.

Para que o conceito de comunhão, que não é unívoco, possa servir como chave interpretativa da eclesiologia, deve ser entendido no contexto dos ensinamentos bíblicos e da tradição patrística, nos quais a comunhão implica sempre uma dupla dimensão: vertical (comunhão com Deus) e horizontal (comunhão entre os homens). É essencial à visão cristã da comunhão reconhecê-la, antes do mais, como dom de Deus, como fruto da iniciativa divina cumprida no mistério pascal[9].

            Já que a palavra comunhão não se trata de um conceito unívoco, como a Carta acima explicita, é preciso, portanto, analisar, mais de perto, seu significado para a fé cristã, antes de aplicá-lo ao tema da Comunhão dos Santos, de modo que, a seguir, centrar-se-á nesse ponto.

2.2 O chamado à plenitude de vida pela vivência da comunhão

            O conceito de comunhão é desenvolvido, por Congar, da seguinte forma:

<<Comunhão>>, transcrição do latim communio, deriva de communis, que por sua vez procede de cum moenus, ter uma defesa, uma muralha comum, ou de cum munus, ter um cargo comum. A primeira ideia contida no termo é a de estar ligados à mesma tarefa, ao mesmo combate, cada um em seu lugar. Mas o termo <<comunnio>> tem um sentido eclesial que supera seu valor etimológico. Na realidade, é tradução do grego koinwni/a, que já era empregado no grego clássico (como na análise da amizade por Aristóteles), mas que tem principalmente um uso cristão, sobretudo no apóstolo Paulo. No sentido mais geral, koinwni/a significa a situação de quem toma parte com outro numa coisa qualquer. Fundamentalmente, trata-se da comunidade que os crentes formam com Cristo; posteriormente, será a comunidade dos fiéis cristãos: a fé, o Corpo e o Sangue de Cristo (1Cor 10,16s), o Espírito (2Cor 13,13); por último, trata-se da comunidade formada por todos os cristãos em razão de todo o anterior: tendo parte ou comunhão com Deus, os cristãos têm parte ou comunhão com os outros (cf. 1Jo 1,3.6-7). A comunhão é, pois, a situação de plena vida cristã. Pode ser subjetivamente mais ou menos intensa, porque comporta mais de um elemento dotado de forma mais ou menos ativa, mas de per si é indivisível. Está-se ou não se está em comunhão[10].

            Um texto bíblico fundamental, nesse horizonte, é o de Atos 2, 42: “Eles [os primeiros convertidos à fé cristã] mostravam-se assíduos aos ensinamentos dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações”. Como se pode ver, a palavra comunhão (koinwni/a) aparece com um sentido que fica cada vez mais claro para o mundo cristão: comunicação de bens entre os irmãos. Mais adiante, no capítulo seguinte, o texto bíblico acrescenta: “A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum” (At 4, 32). Obviamente que essa comunicação de bens entre os cristãos, expressa pelos Atos dos Apóstolos, tem sua raiz na teologia paulina da Igreja como Corpo Místico de Cristo. Para São Paulo, a Igreja é comparada com um organismo, cuja Cabeça é o próprio Cristo, e os membros são cada ser humano alcançado pela graça sacramental do Batismo, a qual os inseriu no ser de Cristo. Por isso, ao escrever aos cristãos de Corinto, para explicar-lhes o mistério da Igreja, diz o Apóstolo: “Com efeito, o corpo é um e, não obstante, tem muitos membros, mas todos os membros do corpo, apesar de serem muitos, formam um só corpo. Assim também acontece com Cristo. Pois fomos todos batizados num único Espirito para ser um só corpo…”; e conclui afirmando: “Se um membro sofre, todos os membros compartilham o seu sofrimento; se um membro é honrado, todos os membros compartilham a sua alegria. Ora, vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros, cada um por sua parte”. (1Cor 12, 12-13.26-27).

            Para fazer parte desse Corpo Místico de Cristo, conforme explica São Paulo, é preciso ser enxertado nele pelo Batismo, que, tão cedo, a Igreja primitiva compreenderá como um processo de iniciação à vida cristã pela celebração do Batismo (e Confirmação) e Eucaristia. Congar explica que a inserção do ser humano na Igreja de Cristo é a realização do projeto divino de unidade/comunhão, pela elevação da natureza humana à ordem da graça, a qual só é possível visto que, incorporado a Cristo, o fiel pode tomar parte na mesma comunhão de vida que Cristo tem com o Pai e o Espírito, e são os sacramentos que proporcionam e nutrem essa união mística:

O corpo místico representa a forma que a unidade da natureza humana assume quando reflete perfeitamente a unidade de Deus pelo fato de ter sido assumida pelo Filho único de Deus, assunção que, realizada em Cristo, é aplicada aos homens pelos sacramentos da incorporação, que são o batismo e a eucaristia[11].

            A Igreja é, com efeito, um instrumento de mediação instituído por Cristo para perpetuar sua obra da redenção na humanidade, mas esse instrumento não é simplesmente um objeto inerte, mas, segundo a lógica sacramental, a Igreja é sacramentum et res, ou seja, é o sinal sensível que comporta em si a graça significada pelo sacramento que ela é[12]. Isso significa que estar inserido na Igreja de Cristo é, pela vida no Espírito recebida e nutrida pelos sacramentos, já antegozar, ao menos em primícias, a realidade definitiva escatológica da união de todo o gênero humano com Deus (dimensão vertical da comunhão) e entre si (dimensão horizontal da comunhão). Esse gozo se expressa, sobretudo, no tríplice aspecto da unidade da Igreja, presente no texto de Atos 2, 42, o qual garante a manutenção da comunhão entre os fiéis de Cristo e que pode ser elencado da seguinte forma: unidade na fé apostólica (eram assíduos aos ensinamentos); unidade litúrgico-sacramental (celebravam a fração do pão e as orações em comum); e unidade hierárquica (constituíam uma comunidade solidária e fraterna em torno dos pastores). Por isso, afirma Congar:

a Palavra pronunciada, se for recebida, e graças à operação de Deus por ela, gera a fé. O batismo incorpora a Cristo morto e ressuscitado (cf. Rom 6,3-11; 1Cor 12,13; Gál 3, 27); a eucaristia é comunhão com o corpo de Cristo (cf. 1Cor 10,16s); estes dois sacramentos maiores unem-nos e nos identificam misticamente com o corpo de Cristo imolado e vivo de Jesus Cristo[13].

            Assim, a unidade da Igreja deve ser considerada em seu duplo aspecto: o externo e visível, por meio do qual ela é constituída como a sociedade dos que creem em Cristo e foram incorporados a ela pelo Batismo, vivendo a comunhão; mas também, sobretudo, por causa de sua realidade interna e invisível, em que a vida da Santíssima Trindade atua como princípio de unidade de toda a humanidade assumida e redimida por Cristo, de modo que compartilham seus bens espirituais (comunhão das coisas santas) e sua própria vida num convívio santo (comunhão de pessoas santas). Desse modo, pode-se dizer que a Comunhão dos Santos “é, ao mesmo tempo, unidade de comunhão espiritual ou de graça, isto é, de salvação, e unidade dos meios que proporcionam esta vida e esta salvação[14]”.

            Dentre os bens que os fiéis em Cristo compartilham em sua comunhão, está a fé:

A fé não se reduz a um simples <<ter como verdadeiras>> algumas proposições cuja demonstração não seria comunicada e até escaparia à nossa razão. A fé é uma realidade sobre a qual se realiza a aliança entre Deus e nós. […] A fé é, por parte do homem, a abertura pela qual acolhe a ação de Deus, superando toda busca de apoio em si mesmo para apoiar-se na veracidade e fidelidade de Deus; é a abertura pela qual o homem, entregando-se inteiramente, a começar por seu espírito, se compromete a ser totalmente para Deus. […]  A fé não é só um princípio de existência pessoal; é, além disso, o primeiro princípio de comunhão para as pessoas e de unidade para a Igreja[15].

            A fé, como se pode ver, é um dom divino que abre o ser humano à transcendência de si mesmo para estabelecer um relacionamento com o Deus uno e trino. Pela fé, o homem desloca o centro de suas preocupações de si mesmo e o fixa n’Aquele único que tem a capacidade de dar sentido a todo o seu viver. A fé é, portanto, uma graça especial dada por Deus para que o homem vença seu egocentrismo e a tentação constante de querer ser o seu próprio deus, de confiar apenas em si mesmo, em sua natureza limitada e frágil, para poder viver a radicalidade de sua vocação de ser um ser para o outro. Por isso, além de abrir-se totalmente a Deus, pela fé, o homem se abre também ao próximo, não no sentido de que ao próximo se deve o mesmo lugar de Deus, mas na certeza de que todos os seres humanos são chamados a viver o amor de doação também entre si, como imagens da Trindade e por causa desse amor trinitário. Nesse sentido, o amor caritativo tem o seu fundamento na vivência da fé teologal, como princípio de comunhão com Deus e com os irmãos.

            Outro aspecto que se deve ressaltar como um bem compartilhado é a comunhão sacramental e de oração entre os fiéis de Cristo:

Os sacramentos não são só sinais pelos quais, ao expressar nossa fé, nos unimos a Jesus Cristo salvador. Não traduzem somente nosso movimento para Deus, mas, comprometendo profundamente a atividade da fé, superam os limites, que a mantêm no âmbito do intencional. No uso efetivo dos sacramentos, sucede algo diferente e mais profundo do que uma união de intenção com esse Cristo que representa o ato supremo total e definitivo de Deus por nossa salvação; nos sacramentos, opera-se um laço corporal, através de um meio corporal, que, a partir de Deus e Cristo e por uma vontade e uma intenção formais suas, prolonga o ato supremo total e definitivo pelo qual Deus mesmo se fez meio corporal de nossa salvação.

[…] Trata-se de algo muito diferente de um princípio sociológico de unidade e de uma união intencional num termo pessoal único. Trata-se de uma unidade de ser e de existência que deriva de uma fonte única[16].

            Se os sacramentos são mais do que um princípio sociológico de unidade entre os fiéis de Cristo, sendo uma real perpetuação do ato salvador pelo qual Deus inaugurou a ordem da graça, com que a humanidade pode tomar parte da vida intradivina, isso significa que a celebração dos sacramentos é atualização e presentificação da vida da comunhão eclesial; sem os sacramentos, se torna muito difícil manter a unidade da Igreja. Nesse sentido, dentre os sacramentos, destaca-se a importância da Eucaristia, chamada também de Comunhão, pois, por manifestar a presença real sacramental de Cristo e ser sinal de nutrição espiritual para os cristãos, o sacramento eucarístico torna os participantes da mesa do seu Corpo e do seu Sangue membros de um só Corpo Místico[17]. Devido à grande importância para a vivência prática da Comunhão dos Santos na vida da Igreja, retornar-se-á mais adiante, na última seção do desenvolvimento deste trabalho monográfico, o tema da liturgia sacramental e, sobretudo, da Eucaristia no cerne da vivência prática da comunhão.

            Um último aspecto importante para se tratar dos bens comunicados entre os fiéis que mantém a comunhão na Igreja de Cristo é manutenção da caridade fraterna, que, visivelmente, se manifesta pela unidade de todo o povo cristão em torno dos seus pastores. A consciência da necessidade visível da comunhão entre a comunidade cristã era tão viva, nos primeiros séculos da era patrística, que romper com essa unidade era um ato passível de ex-comunhão, no sentido pleno da palavra, já que o cismático se colocava fora dessa dinâmica de interação presente no Corpo Místico de Cristo. Santo Inácio de Antioquia, no início do séc. II, escreve aos cristãos de Magnésia, cidade da Grécia Antiga, para exortá-los à comunhão eclesial com seus pastores:

Por isso, peço-vos que estejais dispostos a fazer todas as coisas na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros, que representam o colégio dos apóstolos, e dos diáconos, que são muito caros para mim, aos quais foi confiado o serviço de Jesus Cristo, que, antes dos séculos, estava junto do Pai e, por fim, se manifestou. Tendo todos essa unidade de sentimentos que vem de Deus, repeitando-vos mutuamente. Que ninguém olhe seu próximo segundo a carne, mas amai-vos uns aos outros em Jesus Cristo. Que não haja nada entre vós que possa dividir, mas uni-vos ao bispo e aos chefes como sinal e ensinamento de incorruptibilidade[18].

            A expressão utilizada por Inácio para significar o seu apelo à comunhão é concórdia, pela qual os fiéis se devem respeitar uns aos outros e se amarem mutuamente com o amor de Jesus Cristo, ou seja, com o amor caritativo. Isso previne que haja divisões entre o povo de Deus e proporciona que a comunidade cresça na vivência do Evangelho, sendo sinal do projeto de Deus para toda a humanidade. Desse modo, os pastores estão a serviço da comunhão, a fim de promoverem e manterem a unidade do povo, tanto pela perseverança nos ensinamentos apostólicos transmitidos fielmente, como na celebração litúrgica dos sacramentos e na prática da caridade fraterna. Yves Congar acrescenta:

A autoridade apostólica e as autoridades dela derivadas têm, na Igreja, a missão, isto é, a tarefa e o poder, de promover e regular a vida de comunhão dos fiéis. É uma tarefa análoga à que exerce a autoridade em toda a sociedade; cabe-lhe velar pela <<paz>>. E a paz externa na cidade temporal tende a favorecer uma situação e uns intercâmbios de amizade entre os homens. Na Igreja, trata-se de uma comunhão espiritual de caridade e dos serviços mútuos que essa caridade comporta[19].   

            Os três aspectos fundamentais que manifestam a unidade da Igreja a fim de manter a comunhão dos fiéis (unidade da fé, unidade sacramental e unidade caritativa em torno dos pastores)[20], se vivenciados conforme o Espírito de Deus, tendem a introduzir os fiéis na semelhança divina em suas vidas, em um progresso sempre crescente, que será abordado, neste trabalho, como vida de santidade. A seguir, tratar-se-á em que consiste a santidade cristã e qual é a relação entre santidade e comunhão.

2.3 A comunhão no horizonte da santidade

            A santidade é uma palavra muito utilizada no meio cristão, mas nem sempre é compreendida de forma plena pelos fiéis; quando muito, ao se dizer que alguém é santo, logo vem à mente os homens e mulheres já canonizados e postos como modelo de vida cristã para a veneração pública. Obviamente que o conceito de santidade também inclui o rol dos bem-aventurados como exemplo concreto de pessoas humanas que souberam deixar-se transformar pela graça divina do Espírito Santo, adequando-se à vida do próprio Deus, revelado por Jesus Cristo. Porém, para se compreender o que é santidade e como ela se relaciona com a realidade da comunhão, é preciso fazer um caminho de raciocínio teológico.

            A Sagrada Escritura, no Antigo Testamento, apresenta um livro inteiro dedicado ao tema da santidade, que é o livro do Levítico. Em se tratando da teologia do livro do Levítico, o texto aponta a experiência do êxodo israelita na condição de evento fundante de Israel como o povo de Deus: “Sou eu, Yahweh, que vos fiz subir da terra do Egito para ser vosso Deus” (Lv 11, 45). Esse estribilho irá se repetir outras vezes, tal como em 22, 33; 25, 38.55; 26, 13.45. A libertação de Israel do Egito se constitui como uma obra de separação divina, o que confere ao povo a santificação. De fato, mesmo em português, a palavra santo tem sua origem latina no verbo sancire, que significa consagrar, tornar algo inviolável. Todavia, o grego a#gioj, da Septuaginta e do Novo Testamento, guarda um sentido mais profundo: santo é o que está separado do mal e da corrupção para estar a serviço de Deus. O original hebraico, #Ow$dqf, por sua vez, tem um sentido mais acentuado: sua origem está no verbo #Odaqf, o qual significa dedicar, preparar, santificar, consagrar. A raiz dq tem o sentido de cortar, seccionar, de modo que o sentido de separação esteja intimamente relacionado com o de santificação, uma vez que esse vocábulo só seja empregado em relação às coisas sagradas, no texto bíblico. O fato também de o vocábulo ser empregado no passivo mostra que Deus é o autor da santidade do seu povo, ainda que o Judaísmo institucionalizado, posteriormente, irá acentuar o caráter de esforço do fiel na observância da Lei para ser santo, puro. Não obstante isso, é preciso ressaltar que só Yahweh é Santo intrinsecamente e, portanto, a santidade à qual o povo é chamado no Levítico se identifica com a fidelidade à Lei de Yahweh, que torna o fiel santo. O teólogo filipino, doutor em teologia dogmática e professor de Escatologia na Universidade de Navarra, J. Javier Alviar, comenta o sentido de santidade na obra do Levítico:

junto com a convicção de uma pureza necessária, está muito presente também, em Israel, a consciência da natureza comunitária da salvação. O pecador não só conta com a força purificadora de Deus e seu próprio desejo, mas também vive o processo de purificação no interior de uma comunidade, acompanhado e apoiado pelos demais membros.

[…] A noção de uma purificação solidária se encontra codificada no Levítico de diversas formas […]. O quadro resultante é de uma comunidade na qual se rezam uns pelos outros (e, especialmente, o sacerdote pelo povo)[21].

            Se a santidade, no Antigo Testamento, isto é, a obra de separação que Deus faz de um povo para si, a fim de que este viva segundo a sua lei, a sua vontade, o seu projeto de salvação, consiste em um caminho de purificação do ser humano, no qual este conta com o auxílio dos seus semelhantes para levar a cabo tamanha tarefa, pode-se afirmar que ninguém alcança a santidade no isolamento, mas na vivência da comunhão. O separar-se dos demais, que comporta o significado da palavra santificar-se, não é, de modo algum, um fechar-se em si mesmo; é, antes, uma tomada de consciência de que a vida humana é vocacionada a ser toda de Deus, e, sendo toda de Deus, ela está aberta a estabelecer também a interação interpessoal com outros homens e mulheres, também destinatários desta sublime vocação. Justamente por isso é que a santidade só é possível de ser alcançada, no seu sentido pleno, na vida da comunhão eclesial.

            No Novo Testamento, logo nos primeiros capítulos do Evangelho segundo Mateus, encontra-se o famoso Sermão da Montanha, no qual se insere a versão mateana do discurso das bem-aventuranças. Conforme o ensinamento do Papa Francisco, em sua Exortação Apostólica, Gaudete et Exultate, sobre o chamado à santidade no mundo atual, “a palavra ‘feliz’ ou ‘bem-aventurado’ torna-se sinônimo de ‘santo’, porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade[22]”. O Sumo Pontífice, portanto, expõe que o conceito de santidade veterotestamentário ganha um adicional em seu significado, quando este se identifica com a noção de bem-aventurança, pois traz consigo o sentido de fidelidade à vontade divina, tal como o #Ow$dqf hebraico (separado [por Deus, para ser fiel à aliança divina]), mas também aponta para a noção de felicidade, que a santidade, necessariamente, comporta.

            Mais do que uma legislação nova, as bem-aventuranças são características próprias que um cristão deve apresentar no caminho de seguimento de Cristo, visto que o próprio Cristo é o modelo de vivência dessas bem-aventuranças (pobre no espírito, manso, aflito, com fome e sede de justiça, misericordioso, puro no coração, promotor da paz e perseguido por causa da justiça). Cristo é, então, o paradigma da santidade para a sua Igreja: ser santo é ser como Jesus, agir como Jesus, em outras palavras, é tornar-se feliz e realizado, por meio da participação na vida de Cristo, pelos sacramentos, a vida de oração, a perseverança na fé e a caridade fraterna para com os irmãos, os quais, com a força do Espírito Santo, moldam as feições de Cristo no interior do cristão. Por isso, não se trata apenas de buscar imitar as bem-aventuranças por um simples esforço exterior, mas é a ação do Espírito Santo, no interior do fiel cristão, que torna essa imitação de Cristo possível.

            A Carta aos Efésios 4, 11-13, ao desenvolver um pouco mais a teologia paulina a respeito do Corpo Místico de Cristo, ensina o seguinte:

Ele [Cristo] é que concedeu a uns ser apóstolos, a outros profetas, a outros evangelistas, a outros pastores e doutores, para aperfeiçoar os santos em vista do ministério, para a edificação do Corpo de Cristo, até que alcancemos todos nós a unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, o estado de Homem Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo.

            Como se pode ver, os fiéis, porque são incorporados a Cristo, partícipes de seu Corpo Místico, são denominados de santos, mas essa santidade deve ser levada à perfeição no seguimento de Cristo e na vivência da vida de comunidade, em que cada um dos fiéis, pastores e leigos, devem exercer os serviços competentes a si, a fim de contribuir para a edificação de toda a Igreja. Esse ensinamento segue a mesma linha de raciocínio desenvolvida na Primeira Carta as Coríntios, apresentada anteriormente: cada um precisa se empenhar para a edificação do todo, caso contrário a santidade, por ser um aspecto da vivência cristã da comunhão, não será alcançada, uma vez que, se um membro está firme no seguimento de Cristo, todos se beneficiam; em contrapartida, se um membro da Igreja de Cristo não se santifica, todo o Corpo Místico sofre com isso. É preciso que uns aos outros se entreajudem para que, na comunhão de vida vertical e horizontal, todos sejam edificados. Alviar, comenta isso ao afirmar que: “a consciência de terem sido regenerados, nas águas batismais, implica o compromisso de perseverar na santidade e cultivá-la. Por isso, os cristãos se chamam a si mesmo de <<santos>>”[23].

            Além disso, São Paulo, compreendendo a profundidade da noção de comunhão eclesial e a necessidade de entreajuda entre os membros do Corpo Místico de Cristo, em vista de sua edificação mútua, expressa, ao escrever aos coríntios: “sede meus imitadores, como eu mesmo o sou de Cristo” (1Cor 11, 1). O Apóstolo só pôde tornar-se modelo para os demais e convidá-los à sua imitação, porque sua vida estava enraizada no agir de Cristo, podendo, assim, auxiliar os demais nesse mesmo seguimento. Portanto, a necessidade de alcançar a santidade não é um capricho ou apenas um chamado para algumas almas seletas na Igreja de Cristo; é um chamado universal que Deus faz a todos, e é preciso o esforço de todos para se alcançar esse objetivo.

            Desse modo, na Igreja de Cristo, ninguém é responsável apenas por si, mas também, devido a essa abertura à comunhão, cada fiel se torna corresponsável pela salvação dos demais, desmascarando a crueldade da indiferença de Caim em relação a seu irmão Abel, quando questionado por Deus sobre onde estava o seu irmão, que ele havia acabado de assassinar (cf. Gn 4, 9-10). Fora da dimensão comunitária, a santidade se torna uma tentação de egoísmo e exibicionismo, que deve ser combatida pela vivência do amor caritativo, próprio do agir cristão. O Papa Francisco alerta para esse perigo, do qual ninguém está imune:

É muito difícil lutar contra a própria concupiscência e contra as ciladas e as tentações do demônio e do mundo egoísta, se estivermos isolados. A sedução com que nos bombardeiam é tal que, se estivermos demasiados sozinhos, facilmente perdemos o sentido da realidade, a clareza interior, e sucumbimos.

A santificação é um caminho comunitário, que se deve fazer dois a dois. Reflexo disso temos em algumas comunidades santas. Em várias ocasiões, a Igreja canonizou comunidades inteiras, que viveram heroicamente o Evangelho ou ofereceram a Deus a vida de todos os seus membros. […] De igual modo, há muitos casais santos, em que cada cônjuge foi um instrumento de santificação do outro. Viver e trabalhar assim é, sem dúvida, um caminho de crescimento espiritual[24].

            Ao término da primeira seção do desenvolvimento deste trabalho monográfico fica claro, portanto, que a Comunhão dos Santos é uma verdade de fé muito mais profunda do que simplesmente a veneração dos Santos canonizados, oficialmente, pela Igreja Católica. É uma realidade que diz respeito à natureza em si da vida eclesial, sem a qual se desconfigura totalmente o projeto de Deus para a humanidade: inserir cada ser humano, criado à imagem e semelhança da Santíssima Trindade, na vida íntima intratrinitária, por meio do instrumento sacramental da Igreja, continuadora e atualizadora da obra salvífica operada pelo envio do Filho e do Espírito Santo sobre o mundo. Sem a dimensão da comunhão, nenhum ser humano se torna santo como Deus é santo, pois Deus não é uma mônada isolada da realidade. Todos aqueles que foram inseridos no Corpo Místico de Cristo precisam reconhecer o chamado de Deus para se abrir à comunicação de si com todos os demais irmãos na fé.

            A seguir, passar-se-á à consideração dessa comunhão entre todos os fiéis de Cristo para além das limitações do tempo e do espaço físicos, ao resgatar a importância da escatologia intermediária, uma vez que, inseridos, pelo Batismo, em Cristo Jesus, essa união de vida, sendo gradativamente desenvolvida pela maturação da busca pela santidade, só tende a se aprofundar e se consolidar, de tal modo que nem a morte pode romper os laços de unidade constituídos entre aqueles que formam um só Corpo e um só Espírito em Cristo. 

3. A COMUNHÃO ATRAVÉS DOS TEMPOS: A DIMENSÃO ESCATOLÓGICA DA COMUNHÃO DOS SANTOS

            No capítulo anterior, foi exposta a compreensão eclesiológica da Comunhão dos Santos, considerando a natureza mesma da Igreja de Cristo, tendo a unidade da Trindade como fundamento do seu ser e agir, constatando a visibilidade dessa unidade pela comunhão de fé, sacramentos e vida fraterna e, também, conjugando o crescimento na vida espiritual rumo à santidade como elemento correlato à noção de comunhão apresentada neste trabalho monográfico. Nesta nova seção, será aprofundado o sentido da comunhão eclesial por meio de uma abordagem escatológica da comunhão, ou seja, a unidade intrínseca à natureza da Igreja de Jesus Cristo supera os limites do tempo e do espaço físicos, estendendo-se para a vida após a morte corpórea. Para entender o viés escatológico da Comunhão dos Santos, serão aprofundados os aspectos da escatologia intermediária, esta esquecida ou, muitas vezes, menosprezada pelos manuais contemporâneos de Escatologia. Além disso, abordar-se-á a dimensão bem-aventurada ou glorificada Igreja de Cristo, em seu estado atual, bem como sua dimensão purgativa.

3.1 Por um resgate da escatologia intermediária

            O Cardeal francês Yves Congar não hesita em afirmar que “a Igreja só pode ser retamente compreendida partindo da escatologia, isto é, começando pelo ponto a que se deve chegar ao realizar-se em total perfeição[25]”. Com essa afirmação, é possível constatar que há um enlace entre a Eclesiologia e a Escatologia, o qual não pode passar despercebido na análise do tema deste trabalho, uma vez que o ser da Igreja só encontrará a sua plenitude quando for consumada na glória divina. Nas palavras do Concílio Vaticano II:

Em Cristo Jesus, somos todos chamados a pertencer à Igreja e, pela graça de Deus, a alcançar a santidade. Mas a Igreja só chegará à perfeição na glória celeste, juntamente com o gênero humano, com o qual está intimamente unida e através do qual alcança o seu fim, quando vier o tempo da restauração de todas as coisas (cf. At 3, 21) e o mundo chegar à plenitude em Cristo. (cf. Ef 1, 10; Cl 1, 20; 2Pd 3, 10-13)[26].

            A Igreja Católica não é somente uma instituição humana, mas também é uma realidade divina, uma vez que a sua existência aponta para algo que está para além dela, mas que, por ela, é significado e manifestado no espaço e no tempo humanos, ou seja, a Igreja é sinal escatológico da presença do Reino de Deus na terra. De acordo com o Catecismo da Igreja Católica[27], Reino de Deus consiste numa expressão bíblica que aponta para a real presença divina entre os homens e o estabelecimento do seu senhorio, não de forma extrínseca, mas por meio da comunhão de vida, que, em outras palavras, se trata do primado da graça divina na vida humana, inaugurado por Jesus Cristo. Esse primado da graça, iniciado neste mundo pela obra redentora do Filho e o envio do Espírito Santo, só atingirá a sua plenitude quando Deus for tudo em todos (cf. 1Cor 15, 28). Mas até que se chegue o fim dos tempos e a consumação na glória, como fica a situação da Igreja de Cristo, sobretudo no que diz respeito aos membros já falecidos do Corpo Místico? Essa foi uma das indagações que começaram a surgir entre os primeiros cristãos, ao se depararem com a postergação da parusia.

            Com efeito, na Igreja primitiva, havia um sentimento iminente da parusia de Cristo, de modo que a escatologia definitiva possuía primazia sobre a escatologia intermediária na reflexão dos primeiros autores cristãos. Não obstante isso, inclusive em escritos neotestamentários, encontram-se relatos, do final do primeiro século e início do segundo, a respeito da fé da Igreja sobre a existência de uma vida com Cristo após a morte, sustentando a pertinência de uma escatologia intermediária. Observe-se o seguinte texto da Carta aos Filipenses, que é considerada uma das últimas cartas do corpus paulino, possivelmente já do período de sua prisão e iminência de sua morte:

Minha expectativa e minha esperança é de que em nada serei confundido, mas, com toda a ousadia, agora como sempre, Cristo será engrandecido no meu corpo, pela vida ou pela morte. Pois, para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas, se o viver na carne me dá ocasião de trabalho frutífero, não sei bem que escolher. Sinto-me num dilema: meu desejo é partir para ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa (Fl 1, 20-24).

            Se a escatologia intermediária fosse apenas uma helenização da fé cristã feita pela Igreja e não uma parte essencial da fé revelada, como se acusa infundadamente, como, então, o Apóstolo pode afirmar que morrer seria “lucro” para ele? Além disso, como, também, o Apóstolo pode identificar a sua morte iminente como um “partir para estar com Cristo”, se o tema da imortalidade da alma fosse apenas um devaneio grego? A resposta para essas questões apenas se esclarecem quando se passa a compreender que, embora não houvesse uma sistematização teológica da escatologia intermediária, nos tempos apostólicos, a fé recebida de Cristo e transmitida fielmente pela Igreja sempre assumiu como verdade a certeza de que, terminada essa vida mortal, o homem comparece ante a face de Deus para lhe prestar contas de suas obras (cf. Hb 9, 27) e recebe sua devida recompensa, prêmio ou castigo, ainda que se aguarde a ressurreição final dos corpos, no último dia (cf. 1Ts 4, 13-18).

            Conforme a espera pela parusia aumentasse, e os cristãos compreendessem que a promessa da vinda gloriosa do Senhor não se iria cumprir iminentemente, a reflexão teológica a respeito do estado do fiel de Cristo após sua morte começou a ser sistematizada de forma cada vez mais objetiva.  “Partir para estar com Cristo”, no dizer de São Paulo, passou a ser entendido no horizonte de que o estabelecimento de um vínculo de pertença profunda ao Senhor, ou melhor, a vivência da comunhão com Senhor era, de fato, a antecipação, ainda no curso do tempo e do espaço históricos, da união última que se dará entre o homem e Deus no fim dos tempos, por ocasião do estabelecimento dos Novos Céus e da nova Terra, expressão essa que significa a totalidade do universo criado, redimido e restaurado, definitivamente, por Cristo após o Juízo Final.

            Logo no início do século II, surgem escritos[28] que confirmam a fé da Igreja na escatologia intermediária, tal como nas cartas de Santo Inácio de Antioquia e as várias atas, paixões e legendas dos mártires, em que o desejo de dar a vida por causa de Cristo é uma realidade muito presente, visto que a certeza de estar com Cristo para sempre, após o martírio, fazia parte da espiritualidade desses primeiros cristãos como uma verdade de fé inabalável. A respeito disso, comenta Alviar: “Os cristãos primitivos, sem fechar os olhos para o aspecto terrível de uma morte cruelmente infligida pelos inimigos da fé, desenvolvem a ideia de que morrer assim é morrer em Cristo, e, portanto, ser merecedor de um prêmio glorioso”[29]. Aos poucos, na medida em que se reconhece que a morte não é uma separação absoluta, mas uma união mais perfeita do cristão com o Cristo Senhor, também se desenvolve a certeza de que a morte não se trata de uma ruptura na comunhão existente entre os membros do Corpo Místico de Cristo, mas um verdadeiro reforçamento dessa união, delineando, assim, o sentido católico da fé na Comunhão dos Santos como o

mistério da conjunção viva entre pessoas divinas e humanas, articuladas em torno de Cristo. A salvação do homem consiste em se unir, por via crística, a uma estrutura de comunhão vital com a Trindade, estrutura que já se começa a elaborar na história, e que se completará no último dia[30].

            A Comunhão dos Santos, tal como entende a fé da Igreja, ultrapassa a unidade visível estabelecida entre a Igreja Peregrina, isto é, não diz respeito somente à Igreja que caminha sobre a terra, mas também a todos os membros do Corpo Místico de Cristo, os quais, tendo terminada a sua vida mortal, continuam sua pertença a Cristo, seja já na visão beatífica, seja em estado de purificação final. Portanto, a Igreja, em sua situação atual, é formada por três estados referentes aos membros que a compõem, como o especifica a Constituição Dogmática, Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II:

Até que o Senhor venha em sua majestade e todos os anjos com ele (cf. Mt 25, 31), que a morte seja destruída e todas as coisas a ele submetidas (cf. 1Cor 15, 26-27), muitos dos seus discípulos caminham na terra. Outros, passada esta vida, estão sendo purificados. Outros, enfim, glorificados, “contemplam Deus uno e trino, tal como é”. Todos, no entanto, em graus e regimes diversos, participamos do mesmo amor de Deus e do próximo e cantamos o mesmo hino à glória de nosso Deus. Todos os que são de Cristo e possuem o seu Espírito estão reunidos numa só Igreja e ligados uns aos outros no próprio Cristo (cf. Ef 4, 16)[31].

            O projeto de salvação querido por Deus para a humanidade, congregando o seu novo povo em torno de seu Cristo e na força do Espírito Santo, entendido do ponto de vista escatológico, significa que a comunhão dos que caminham com Cristo e morrem em sua amizade é indissolúvel, já que essa comunhão se fundamenta na Santíssima Trindade. Alviar explica: “Deus projeta salvar a humanidade como comunidade; quer salvar o homem não como mônada isolada, mas como parte de uma coletividade. […] A pessoa humana participa – a seu nível – do mistério de Ser-Relação que subsiste nas Pessoas divinas[32]”. A Congregação para a Doutrina da Fé também esclarece que:

todos aqueles que, tendo deixado este mundo na graça do Senhor, fazem parte da Igreja celeste ou serão nela incorporados depois de uma plena purificação. Isto significa, aliás, que existe uma mútua relação entre a Igreja peregrina sobre a terra e a Igreja celeste, na missão histórico-salvífica. Dela resulta a importância eclesiológica não só da intercessão de Cristo a favor dos seus membros, mas também da dos santos e, num modo eminente, da Santíssima Virgem Maria. A essência da devoção aos santos, tão presente na piedade do povo cristão, corresponde, assim, à profunda realidade da Igreja como mistério de comunhão[33].

            Portanto, afirmar que a escatologia intermediária (o estado atual dos seres humanos falecidos antes da consumação definitiva do Reino de Deus no fim dos tempos) seria uma importação de elementos gregos, mitológicos e filosóficos, para a fé cristã é um erro e uma negação de toda a Tradição viva da Igreja Católica, a qual sempre afirmou, desde os tempos apostólicos, a situação das almas dos falecidos diante de seu juízo particular, imediatamente, após sua morte corporal. Por isso, o “creio na Comunhão dos Santos”, que o nono artigo do Símbolo Apostólico professa, como desenvolvimento do “creio na Igreja Católica”, trata-se de afirmar que Eclesiologia e Escatologia são dois tratados teológicos implicados, e que a escatologia intermediária é parte fundamental da Revelação cristã, pois esta atesta o laço profundo e indestrutível existente entre os cristãos ainda na vida terrena, com aqueles que participam da vida celeste, seja em visão beatífica (Céu), seja em estado de purificação final (Purgatório). A seguir, a exposição deste trabalho se deterá em discorrer como se realiza a comunicação de bens entre a Igreja Peregrina e os bem-aventurados, para, depois, explicitar esse mesmo processo de comunhão existente, também, entre os que estão em estado de purificação final.

3.2 A comunhão de vida com os bem-aventurados

            Ao tratar da realidade celeste, o Catecismo esclarece sua doutrina, dizendo o seguinte: “por sua Morte e Ressurreição, Jesus Cristo nos ‘abriu’ o Céu. A vida dos bem-aventurados consiste na posse em plenitude dos frutos da redenção operada por Cristo […]. O céu é a comunidade bem-aventurada de todos os que estão perfeitamente incorporados a Ele”[34]. Dessa forma, como foi mencionado anteriormente, a realidade da morte não é um obstáculo intransponível para a fé cristã, a qual professa Cristo, o Vivente, vencedor da morte (cf. Ap 1, 17-18). A morte dos que estão inseridos em Cristo não é uma separação da Comunhão dos Santos, mas uma entrada para uma união mais íntima e perfeita com Cristo, Cabeça da Igreja, e, por conseguinte, uma unidade mais perfeita com todos os demais membros. Isso significa que os irmãos falecidos, que já se encontram glorificados diante da face de Cristo (a Igreja Triunfante) continuam mantendo o vínculo espiritual com os irmãos que ainda permanecem sobre a terra (Igreja Peregrina ou Militante), em suas lutas diárias para alcançar a santidade, rumo à pátria celeste. Mas, de que modo se realiza essa união? Como e quando é possível que os fiéis de Cristo, na Igreja Militante, se comuniquem com os que já compõem a mesma Igreja, só que em seu estado Triunfante?

            Um texto neotestamentário fundamental para se compreender a realidade da união entre esses dois estados da Igreja de Cristo trata-se do apresentado pela Carta aos Hebreus  12, 18-24:

Vós não vos aproximastes de realidade palpável: o fogo ardente, a escuridão, as trevas, a tempestade, o som da trombeta e o clamor das palavras cujos ouvintes suplicaram não se lhes falasse mais. Pois já não suportavam o que lhes era ordenado: até um animal, se tocar a montanha, será apedrejado. Na verdade, de tal modo era terrível o espetáculo, que Moisés disse: sinto-me aterrado e trêmulo!

Mas vós vos aproximastes do monte de Sião e da Cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e de milhões de anjos reunidos em festa, e da assembleia dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus, o Juiz de todos, e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição, e de Jesus, mediador de nova aliança, e do sangue da aspersão mais eloquente que o de Abel.

            O autor da Carta aos Hebreus utiliza uma linguagem muito ilustrativa para descrever para a sua comunidade o que acontece na Comunhão dos Santos, enfatizando a realidade de “proximidade” entre eles (assembleia dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus) e toda a realidade celeste (os anjos, os espíritos dos justos, Deus e Jesus Cristo). A aproximação entre esses dois estados da Igreja acontece, sobretudo, na celebração litúrgica, em que se venera a memória dos habitante dos céus, a fim de se corroborar a união de toda a Igreja de Cristo no Espírito, pelo exercício da caridade fraterna[35]. Em relação ao modo de proceder dessa união de proximidade, o Catecismo da Igreja Católica ainda acrescenta que:

pelo fato de os habitantes do Céu estarem unidos mais intimamente com Cristo, consolidam, com mais firmeza na santidade, toda a Igreja. Eles não deixam de interceder por nós ao Pai, apresentando os méritos que alcançaram na terra pelo único mediador de Deus e dos homens, Cristo Jesus[36].

            A intercessão dos Santos, em Cristo, dá continuidade, até mesmo depois da morte corporal dos fiéis, ao auxílio que um membro deve prestar ao outro, a fim de todos colaborarem para a salvação, em comunidade, do gênero humano. Sobre a celebração litúrgica ser o lugar e o tempo mais adequado para o exercício desse intercâmbio entre o Céu e a Terra, isso será retomado mais adiante, na última seção do desenvolvimento deste trabalho. Aqui, o importante é compreender que a comunicação de bens que os membros da Igreja Triunfante podem conceder aos da Igreja Peregrina não possui outra fonte a não ser o próprio Cristo, já que tal fato só é possível, porque todos os bem-aventurados e todos os peregrinos sobre a terra fazem parte do único Corpo Místico, que é a Igreja Católica. Vivos em Cristo para sempre, os Santos não cessam de oferecer as suas súplicas a fim de que a vontade salvífica de Deus se realize “assim na terra como no céu”.

            Nessa mesma perspectiva, outra referência bíblica neotestamentária a respeito do exercício da Comunhão dos Santos entre os membros da Igreja do Céu e da Terra está em Apocalipse 6, 9-11:

Quando [o Cordeiro] abriu o quinto selo, vi sob o altar as almas dos que tinham sido imolados por causa da Palavra de Deus e do testemunho que dela tinham prestado. Eles clamaram em alta voz: “Até  quando, ó Senhor santo e verdadeiro, tardarás a fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra?”. A cada um deles foi dada, então, uma veste branca e foi-lhes dito, também, que repousassem por mais um pouco de tempo, até que se completasse o número dos seus companheiros e irmãos, que seriam mortos como eles.

            O contexto de produção do Apocalipse de São João é, provavelmente, o das perseguições romanas aos cristãos, antes do final do primeiro século, em que muitos se tornaram mártires por causa da fé. Interessante é notar que, para o autor sagrado do Apocalipse, as almas dos fiéis mártires falecidos não desapareceram, mas estavam diante da face de Deus, sob o altar do sacrifício, intercedendo por justiça em favor dos irmãos que ainda sofriam, sobre a terra, as cruentas perseguições. Outro fato importante é que não são os Santos que agem, diretamente, executando a justiça, mas, no relato apocalíptico, eles recorrem a Deus, Senhor do Universo, como o único que pode interferir na história dos homens sobre a terra, ou seja, o texto deixa claro que a centralidade da Comunhão dos Santos é sempre a ação divina: é Deus quem realiza o seu plano de salvação no decorrer da história humana, mas os Santos rogam para que esse plano se realize o mais rápido possível. Por isso, os que já contemplam a Face divina, tendo passado pela morte corporal, podem suplicar a ação de Deus em favor dos demais irmãos na fé, membros, como eles, do único Corpo Místico de Cristo. Assim, a Igreja sempre compreendeu que a intercessão dos Santos nunca diminui a eficácia da ação divina em seu meio, mas sua existência expressa, com toda a profundidade, como a unidade dos fiéis de Cristo não é rompida com a morte, mas fortalecida, podendo os bem-aventurados suplicar pelos que ainda caminham sobre a terra. Alviar comenta a pertinência desse fato: “Na medida em que os membros [da Igreja] estejam mais intimamente integrados a Cristo, desempenham um papel mais relevante na salvação dos demais, ao aumentar seu poder de impetração diante do Pai[37]”.

            Dessa forma, perceber e experimentar a comunicação de bens espirituais decorrente da Comunhão dos Santos ajuda o homem crente, que ainda caminha sobre a terra, a aliviar os tormentos do tempo presente e a revigorar sua fé, esperança e caridade na certeza de que a bem-aventurança eterna e o convívio com os irmãos em Cristo é o objetivo final para o qual a natureza humana, criada por Deus à sua imagem e semelhança, se dirige, desde que se opte por permanecer nessa comunhão, que já foi iniciada enquanto se caminhava sobre a terra. Tal foi a intenção do autor sagrado do Apocalipse de São João, ao escrever o seu livro para animar os demais fiéis cristãos diante dos períodos de dura perseguição. Além disso, permanece a certeza de que a caridade fraternal, da qual trata o livro dos Atos dos Apóstolos, mencionado anteriormente, não cessa diante da morte de algum membro do Corpo Místico de Cristo. Antes, ela se fortalece numa profunda solidariedade e compartilhamento de bens espirituais, sobretudo pela oração de intercessão, mediante a qual os Santos da Igreja Triunfante rogam a Deus pelos da Igreja Militante. Assim, a vocação própria da Igreja de ser instrumento de unidade entre os homens é realizada, e o Reino de Deus se faz presente na história, até que se cumpra o desfecho escatológico da economia da salvação.

            Todavia, convém ressaltar que a dimensão comunitária da salvação operada por Jesus Cristo, ao constituir os homens redimidos como membros de seu Corpo Místico, aponta para que o estado escatológico intermediário dos fiéis falecidos, ainda que seja o da visão beatífica no Céu, não consiste num estado pleno, mas parcial, já que a vida do homem não se trata de um processo de desprendimento desse mundo para uma união individualista com Deus, tal como no pensamento grego antigo. Uma espiritualidade que pregasse essa forma de união mística deveria ser recusada como autenticamente cristã, porque a vida plena de felicidade passa, necessariamente, pela vivência da comunhão interpessoal, imagem da pericorese intratrinitária. Por isso, não se pode negar “a dimensão coletiva da salvação, o caráter comunitário do Reino; uma noção ampla do mistério de Cristo, não só como Cabeça, mas como Corpo total, que será glorificado plenamente no último dia[38]”. Disso, decorre que é plausível considerar que  os Santos, que estão no céu, ainda que estejam na presença de Deus, por estarem uidos a Cristo e gozarem de sua visão betífica, aguardam uma retribuição plena, em seus corpos ressurretos, no último dia, no qual acontecerá a reunião integral de toda a Igreja, no Reino escatológico de Deus. Logo, a fé na Comunhão dos Santos precisa ajudar o cristão do mundo de hoje, tão bombardeado por pensamentos individualistas e imediatistas, a viver uma vida comunitária como preparação para a vida definitiva com Deus e os irmãos e irmãs, no Novo Céu e na Nova Terra. Nesse sentido, restringir a virtude da religião apenas ao âmbito privado, ou pior, ao âmbito individualista é um contratestemunho diante da fé apostólica fielmente transmitida ao longo dos séculos. Em contrapartida, a celebração dos Santos, suas festas, comemorações e devoções ajudam a manter firme a fidelidade à dimensão comunitária da salvação inaugurada por Jesus Cristo, testemunhando que todos, os bem-aventurados e os peregrinos, fazem parte de uma única Igreja.

            Entretanto, ainda falta apresentar o que acontece com os membros da Igreja de Cristo, que morrem em sua amizade, sem, no entanto, terem alcançado a perfeição da santidade exigida pela noção de comunhão, tal como a fé católica a professa. Deixariam eles de ser membros do Corpo Místico de Cristo? Em se tratando dos fiéis falecidos necessitados de uma purificação final, antes de serem glorificados na bem-aventurança eterna do Céu, a seguir, no último subitem deste capítulo, explicitar-se-á a forma da comunhão existente, portanto, entre os membros da Igreja Padecente (os necessitados de uma purificação final) e os da Igreja Militante/Peregrina.

3.3 A comunhão de vida com os que estão em purificação

            Se a comunhão do Corpo Místico de Cristo se mantém também com os fiéis falecidos necessitados de uma purificação final, neste último tópico deste capítulo, o foco será a apresentação da doutrina do Purgatório, como parte essencial da compreensão escatológica intermediária da Igreja Católica. A solidariedade entre o gênero humano também se expressa pelo intercâmbio de orações que há entre os membros do Corpo Místico de Cristo, não só entre a Igreja Triunfante e Militante/Peregrina, mas também das orações que os que ainda caminham sobre a terra podem oferecer a Deus em favor dos fiéis falecidos em estágio de purificação final (Igreja Padecente). Alviar comenta sobre a pertinência da fé da Igreja Católica na existência do Purgatório, não como uma realidade teoricamente construída, mas partindo da expeiriência concreta dos primeiros cristãos:

Nos primeiros séculos cristãos, consolida-se a prática significativa de orar pelos defuntos, implorando a Deus que se dignasse admiti-los em sua presença. Esse costume parece nascer espontaneamente da experiência real da Igreja, a qual demonstra que diferentes indivíduos alcançam graus diferentes de santidade em sua vida terrena: alguns, um nível tão alto que os vivos se sentem instintivamente movidos a acudir à sua intercessão depois  de sua morte; e outros, um grau menos perfeito, de forma que os vivos imploram a Deus o seu descanso eterno[39].

            Embora a sistematização teológica tenha vindo posteriormente, a oração pelo descanso eterno dos fiéis falecidos não se apresenta em contradição com a fé cristã recebida e transmitida, fielmente, por meio dos sucessores legítimos dos apóstolos, mas se firma nessa mesma fé apostólica, a qual compreende a unidade de comunhão entre os membros da Igreja de Cristo, ultrapassando os limites do tempo e do espaço terrenos. Por isso, foi possível que tal prática surgisse logo nas primeiras gerações de fiéis e se perpetuasse ao longo de toda a existência da Igreja, até os dias atuais. Como foi apresentado anteriormente, a santidade de vida é característica exigida para se tomar parte, em plenitude, na vida de comunhão intradivina, na qual os membros do Corpo Místico de Cristo são inseridos. Devido a isso, os fiéis peregrinos sobre a terra passaram a manifestar a sua solidariedade pelos seus entes queridos falecidos, confiando-os à misericórdia divina, sobretudo quando esses entes queridos não faleciam por uma morte heroica, como o martírio, que, na espiritualidade da Igreja primitiva, era o caminho mais perfeito do seguimento de Jesus Cristo.

            A fé bíblica, antes mesmo do Novo Testamento, apresenta as bases para que essa prática cristã da oração pelos fiéis falecidos se consolidasse nos inícios da Igreja. Em Segundo Livro de Macabeus 12, 38-46, Judas oferece um sacrifício pelos soldados falecidos em batalha, mas que portavam ídolos consigo. Ele o faz visando ao perdão que esses soldados deveriam receber para poder tomar parte na recompensa dos justos, no dia da ressurreição final. Esse livro tardio do Antigo Testamento apresenta um maduro desenvolvimento da Revelação veterotestamentária, em que a noção de solidariedade universal entre o gênero humano transcende não só a materialidade de tal ação, mas também a temporalidade, visto que o sacrifício expiatório era por pessoas já falecidas, tendo em vista o encontro escatológico definitivo dessas pessoas com o Senhor, no final dos tempos. Esse fato significa que as etapas pedagógicas da Revelação pré-cristã já haviam preparado o povo de Deus para que o mistério da solidariedade universal da salvação entre o gênero aparecesse, em toda a sua profundidade, com a obra de Cristo, ao apresentar o intercâmbio de bens espirituais entre os fiéis vivos e os fiéis defuntos, membros de seu Corpo Místico[40]

            No Novo Testamento, ainda que a palavra Purgatório não apareça explicitamente, a noção da possibilidade de uma purificação final após a morte se deixa entrever em alguns textos, tais como: Mt 12, 22-32 (a blasfêmia contra o Espírito Santo); Mt 18, 23-35 (a parábola do devedor implacável); e 1Cor 3, 10-15 (o fogo purificador). Nas três passagens mencionadas, há o entendimento de que existe uma purificação final para os que não alcançaram a santidade necessária para se consolidar a sua comunhão plena com Deus e os irmãos.

            No texto mateano sobre a blasfêmia contra o Espírito Santo, Jesus explica aos que o acusavam de expulsar demônios com o poder de Beelzebu que esse tipo de pecado contra o Espírito Santo não possui perdão nem nesta era nem na outra (cf. Mt 12, 32). Ora, o que se quer dizer que há pecados que podem ser perdoados em uma outra era? A Tradição da Igreja compreendeu, nesse discurso de Jesus, que alguns pecados, que não são contra o Espírito Santo, podem ser perdoados num processo de purificação final, após a morte (na outra era). Dando um passo adiante, o segundo texto citado, Mt 18, 23-35, ao tratar da necessidade sobre o perdão entre os irmãos na fé, depois de ser questionado por Pedro, Jesus conta a parábola do devedor implacável. Este, devendo uma quantia incomensurável ao rei, pede-lhe perdão e obtém o cancelamento de sua dívida perante o rei, mas, logo em seguida, um companheiro desse homem, que lhe devia uma quantia infinitamente menor, também lhe pede o perdão da dívida. Contudo, aquele que, antes, havia recebido a misericórdia do rei não usa de misericórdia para com o seu companheiro, mandando-lhe para a prisão, a fim de pagar a sua dívida. O rei, sabendo disso, revoga a anistia dada anteriormente e manda o devedor implacável para a prisão, até que ele pague toda a sua dívida, tal como o fez com o companheiro. Jesus termina a parábola dizendo que seu Pai tratará assim todo o que não perdoar, de coração, o seu irmão (cf. Mt 18, 35). O que significa que o Pai celeste mandará para a prisão, até pagar a sua dívida, quem não perdoar o seu irmão? A Igreja também compreendeu aqui, na prisão, um lugar de purificação final, para todos os que não souberam viver a caridade fraterna em vida, do qual não se pode sair até que se purifique plenamente. Por fim, no último texto citado, o de 1Cor 3, 10-15, o Apóstolo São Paulo exorta aos fiéis da comunidade de Corinto que edifiquem seu ministério sobre o fundamento, que é Cristo, usando materiais como ouro, prata ou pedras preciosas, em vez de madeira, feno ou palha, pois, no Dia do Juízo do Senhor, todos serão provados pelo fogo, e somente aquele cuja obra subsistir ao fogo purificador receberá a recompensa; o que tiver a sua obra queimada perderá a recompensa, mas poderá ser salvo através do fogo. Mesmo nessas imagens simbólicas, a Igreja entendeu que esse fogo purificador, que queima as obras frágeis dos cristãos (madeira, feno e palha) e que os impede de tomar parte, imediatamente, na recompensa, é diferente do fogo infernal eterno, que não se extingue, e para o qual os infiéis caminham (cf. Mt 25, 41), visto que o fogo purificador, do qual São Paulo trata, é capaz de salvar.

            Antes mesmo das controvérsias protestantes, do séc. XVI, e do surgimento das teses luteranas contra a doutrina revelada do Purgatório, no II Concílio de Lyon, em 1274, e no Concílio de Florença, em 1439, por causa de questões controversas com os cristãos de origem grega, a Igreja achou, por bem, promulgar e explicitar, dogmaticamente, a sua fé na realidade do Purgatório. A seguir, encontra-se um trecho do texto da Bula Laetentur coeli, do Papa Eugênio IV, por ocasião do Concílio de Florença:

       Se os verdadeiros penitentes falecerem no amor de Deus, antes de ter satisfeitos com frutos dignos de penitência o que cometeram ou deixaram de fazer, suas almas são purificadas depois da morte com as penas do purgatório; e, para que recebam um alívio destas penas, ajudam-nos os sufrágios dos fiéis viventes, como o sacrifício da missa, as orações, as esmolas e outras práticas de piedade que os fiéis costumam oferecer pelos outros fiéis, segundo as disposições da Igreja[41].

            Como se vê, no texto pontifício, a noção de purificação final após a morte está intrinsecamente ligada à realidade da Comunhão dos Santos, em que, participantes todos do mesmo Corpo de Cristo, os fiéis em vida podem rogar a Deus e oferecer obras de piedade e, principalmente, o sacrifício da Missa, para que os irmãos, que necessitam dessa purificação final, possam obter de Deus a remissão total de suas penas e, assim, possam contemplá-l’O face a face, junto com todos os demais fiéis bem-aventurados. Portanto, a comunicação de bens espirituais entre os fiéis dos três estados da Igreja de Cristo (Militante, Padecente e Triunfante) não só é possível, como também é constantemente recomendada pelos pastores do povo de Deus, a fim de expressar essa unidade, que nem a separação física, espacial ou temporal podem interromper, uma vez que o fundamento dessa unidade de comunhão supera qualquer limitação de ordem criatural, já que se enraíza, em última instância, na própria unidade da Santíssima Trindade. Alviar comenta esse intercâmbio entre o Céu, o Purgatório e a Terra, nas seguintes palavras:

Os membros que estão na terra suplicam com Ele [Cristo] pelos defuntos; e os que já estão definitivamente incorporados a Ele pedem pelos vivos, em um mistério orgânico de caridade. Nesse contexto, cristológico e corporativo, a prática da oração pelos defuntos (assim como a confiança na intercessão dos santos) aparece como um elemento lógico. Encontramo-nos imersos em uma grande estrutura, transpessoal e supratemporal, de caridade[42].

            O Concílio Vaticano II também expressa a beleza da comunicação dos bens espirituais existente na Comunhão dos Santos, ao dizer:

A Igreja peregrina na terra, desde o início do cristianismo, reconhecendo a comunhão que une todo o corpo místico de Cristo, prestou piedosa homenagem aos mortos e, por eles, oferecia sufrágios, convencida de que “é santo e piedoso rezar pelos defuntos, para que sejam libertados do pecado” (2Mc 12, 46). A Igreja também sempre acreditou que os apóstolos e os mártires de Cristo que, derramando o seu sangue, deram o testemunho supremo de fé e de amor, estão particularmente unidos a nós. Por isso, os venera com particular distinção, juntamente com a Santa Virgem Maria e os santos anjos, implorando piedosamente o auxílio de sua intercessão. A eles se unem imediatamente os que imitaram mais de perto a castidade e a pobreza de Cristo, seguidos de todos aqueles que se santificaram pela prática das virtudes cristãs e cujo carisma recomenda à piedosa devoção e à imitação dos fiéis[43].

            Dessa forma, ao terminar este capítulo, fica claro que a dimensão escatológica da Comunhão dos Santos é um elemento essencial decorrente da natureza mesma da Igreja de Cristo, cujo vínculo entre seus membros não pode ser rompido por limitação imposta pela morte corporal dos fiéis. Ao contrário do que o senso comum pensa, o falecimento de um ente querido, fiel a Cristo, não se trata de uma separação, no sentido radical da palavra, mas de uma verdadeira união desse fiel com Cristo e, consequentemente, com todos os demais membros do seu Corpo Místico, em uma comunhão estreita de caridade, na qual os que caminham na terra podem oferecer sufrágios por seu descanso eterno, como também, tendo o fiel falecido ingressado na assembleia dos bem-aventurados, pode este interceder pelos demais, que ainda caminham sobre a terra. Com efeito, a dor do luto pelo falecimento é justa, mas a teologia inerente à fé da Igreja na Comunhão dos Santos é um auxílio adequado para se superar a dor da separação física, reconhecendo a riqueza que existe na união mística dessa comunhão fraterna, em torno do Deus uno e trino.

            Tendo em vista que a lex credendi ressoa na lex orandi da Igreja e que, como já foi mencionado, a celebração litúrgica é o tempo e o espaço propícios para se experienciar a Comunhão dos Santos em toda a sua profundidade, na próxima e última seção desta monografia, tratar-se-ão das suas aplicações práticas pastorais na vida dos fiéis, sob dois aspectos principais, a saber: a celebração eucarística, como elo de comunhão entre o céu e a terra, e as práticas devocionais, como uma forma de alimentar a esperança na vida eterna e o sentimento de pertença à unidade do Corpo Místico de Cristo.

4. UM TEMPO PARA SE VIVER A COMUNHÃO: A DIMENSÃO LITÚRGICO-PASTORAL DA COMUNHÃO DOS SANTOS

            Após ter apresentado, nos capítulos anteriores, os fundamentos eclesiológicos e escatológicos da Comunhão dos Santos, ou seja, o princípio de sua unidade na Santíssima Trindade, seus elementos constitutivos (unidade na fé, na vida de oração e sacramentos e na caridade fraterna em torno dos pastores), a relação da comunhão com o chamado universal à santidade, a importância da escatologia intermediária, sobretudo em relação ao modo de comunicação entre os fiéis da Igreja de Cristo em seus três estados atuais (Igreja Militante, Igreja Padecente e Igreja Triunfante), esta última seção do desenvolvimento do presente trabalho se centra na vivência litúrgico-pastoral da Igreja Católica, no que diz repeito à Comunhão dos Santos. Para isso, passar-se-á à análise do tempo propício em que se dá essa comunhão, chamado de tempo oportuno, à centralidade do mistério eucarístico como ápice do exercício dessa comunhão e, por fim, à questão da devoção aos Santos presente no cotidiano dos fiéis católicos.

4.1 A vida litúrgica da Igreja como um tempo favorável para comunhão

            A Sagrada Escritura se inicia com a seguinte frase: “no princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1, 1). Portanto, toda a criação é marcada pela realidade temporal, a qual é inaugurada no próprio ato criador de Deus. A partir disso, toda a história da salvação será marcada por determinados “tempos” em que Deus irá, pessoalmente, intervir na história humana, chamando sua criatura humana para formar aliança consigo. As etapas da história salvífica podem ser resumidas nos seguintes eventos, a saber: após a criação do gênero humano e sua queda no paraíso (cf. Gn 2, 4b–3, 24), Deus não abandona o ser humano à sua própria sorte; além de prometer a salvação (cf. Gn 3, 15), Ele mesmo dá início ao seu plano, chamando Abraão e formando um povo a partir dele (cf. Gn 12); posteriormente, esse povo será liberto da escravidão faraônica (cf. Ex 12) e conduzido para uma Terra Prometida; devido às infidelidades do povo de Deus para com a aliança divina (Juízes e Primeiro e Segundo Livros dos Reis), esse povo passará por diversas dificuldades, dentre as quais se encontra o terrível exílio babilônico, e só poderão voltar nos tempos do sacerdote Esdras, para reconstruir sua terra (cf. Esdras e Neemias); tendo-se passado longos anos, chega-se à “plenitude dos tempos”, isto é, acontece um grande mistério na história da salvação: o Deus eterno e todo-poderoso escolhe se encarnar na história humana e conviver, com os seres humanos, como homem (cf. Jo 1, 1-14), realizando, assim, o ápice de sua obra de salvação, pela Páscoa de Cristo e o envio do Espírito Santo sobre a Igreja (cf. Lc 22–24; At 1–2); a partir disso, instaura-se uma Nova e Eterna Aliança entre Deus e a humanidade, a qual durará até a “consumação dos tempos”, em que haverá um Novo Céu e uma Nova Terra, no estabelecimento final e definitivo do Reino de Deus (cf. Ap 2122). A partir desse brevíssimo resumo das etapas da salvação realizadas por Deus, pode-se entender que, além do tempo cósmico material, inaugurado com a criação do universo, paralelamente, há a presença do eterno Deus em constante contato com a efemeridade humana, o que constitui o chamado tempo oportuno.

            O meio cultural em que o Cristianismo nascente se desenvolveu, além do contato com o Judaísmo e o Império Romano, esteve bastante inserido no helenismo tardio, a ponto de o Novo Testamento ter sido escrito todo ele em grego, pelo menos os códices manuscritos que se conservaram até os dias atuais. Por que é importante saber disso? Porque a língua grega, empregada no Novo Testamento, em sua polissemia, traz algumas palavras distintas para expressar a noção de tempo, em aspectos diferentes. As duas que interessam a esta exposição são xro&noj e kairo&j. Prescindindo dos mitos gregos relacionados à origem dessas palavras, convém notar que o vocábulo xro&noj, linguisticamente, aprece mais ligado com o significado de tempo histórico ou tempo físico, donde se deriva palavras como crônico e cronológico. Já kairo&j, que também pode ser traduzido como tempo, não tem correspondente na língua portuguesa, e o seu significado mais próximo é o de um “momento oportuno”, o qual se dá no curso do tempo histórico, mas que não se identifica exatamente com ele.

            O autor do livro do Eclesiastes discorre, ao longo do texto, sobre a vaidade da vida humana e a efemeridade do tempo. Porém, no capítulo 3, encontra-se a seguinte reflexão acerca da relação entre o tempo histórico e o tempo/momento oportuno: “Há um momento para tudo e um tempo para todo o propósito debaixo do céu…” (Ecl 3, 1ss). Na versão grega do Antigo Testamento, utilizada pelos primeiros cristãos, a Septuaginta, aparecem, no versículo citado, as duas palavras distintas, xro&noj e kairo&j, para indicar que no curso da história da vida humana há momentos em que, oportunamente, se deve fazer algo ou deixar de fazê-lo. No Novo Testamento, quase sempre, quando se vai mencionar a pertinência do agir de Deus na história humana, utiliza-se, preferencialmente, a palavra kairo&j, para se justificar que a intervenção divina na história do homem é uma oportunidade de este se abrir à salvação. Em 2Cor 6, 1-2, o Apóstolo São Paulo exorta a comunidade dos coríntios, com as seguintes palavras: “Visto que somos colaboradores com ele [Deus], exortamo-vos ainda a que não recebais a graça de Deus em vão. Pois ele diz: ‘No tempo favorável eu te ouvi. E, no dia da aflição, eu vim em teu auxílio’. Eis agora o tempo favorável por excelência”. O tempo favorável, do qual menciona São Paulo, é o kairo&j de Deus para o homem.

            Mas quando esse tempo favorável se torna tangível na vida do povo de Deus? O Antigo Testamento, entendendo a importância da dimensão litúrgica na vida humana, descreve o sábado como o dia dedicado ao culto divino (cf. Ex 31, 12-17). Tal prescrição da Lei Mosaica inspirava-se, sobretudo, na Tradição que será posta por escrito durante o exílio babilônico, que é o relato da criação em seis dias e o repouso divino no sétimo (cf. Gn 1, 1–2, 4a). Desse modo, é possível compreender a constante presença da graça de Deus, no hoje da vida humana, como um momento oportuno de sua ação salvífica, identificado com o kairo&j grego. No Novo Testamento, o dia dedicado ao culto do Senhor (sétimo dia da semana) será paulatinamente substituído pelo “primeiro dia da semana”, tal como em Atos dos Apóstolos 20, 7: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos para a fração do pão…” ou em Primeira Carta aos Coríntios 16, 2: “No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de lado o que conseguir poupar…” e Apocalipse 1, 10 “No dia do Senhor, fui movido pelo Espírito, e ouvi atrás de mim uma voz forte como de trombeta”. Essa afirmação da substituição do sábado pelo domingo, no culto cristão, tem fundamento nos Padres Apostólicos, como em Inácio de Antioquia: “Aqueles que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte[44]”. A Igreja, portanto, como continuadora da obra da salvação inaugurada por Jesus na história humana, torna o kairo&j de Deus, isto é, o encontro com o Senhor ressuscitado, acessível aos fiéis, sobretudo, por sua celebração litúrgica. Por isso, afirma o Concílio Vaticano II:

Por Tradição apostólica, que remonta ao próprio dia da ressurreição do Senhor, a Igreja celebra o mistério pascal no oitavo dia da semana, que veio a ser, convenientemente, denominado domingo, isto é, dia do Senhor. Nesse dia, os fiéis devem reunir-se para ouvir a Palavra de Deus e participar da Eucaristia, dando graças a Deus, “que nos fez renascer para uma esperança viva, ressuscitando Jesus Cristo dentre os mortos”[45].

            Este reunir-se em torno da Palavra e da Eucaristia, na celebração litúrgica dominical, da qual o Concílio trata, é, portanto, uma forma de visibilidade da comunhão existente entre os membros da Igreja de Cristo, os quais, participando de uma determinada comunidade local, expressam o caráter profundo da comunhão eclesial, pois, onde quer que estejam, os cristãos celebram um mesmo e único culto de louvor ao Pai, por Jesus Cristo, na força do Espírito Santo. Essa comunhão visível da comunidade reunida para a celebração litúrgica se expande ainda mais quando se considera que, no tempo oportuno em que a celebração é realizada, também os fiéis bem-aventurados e em estado de purificação final estão intimamente unidos a toda a Igreja Peregrina para adorarem a Santíssima Trindade. Nesse sentido, a toda ação litúrgica já é uma antecipação escatológica do Reino de Deus, onde toda a Igreja estará, para sempre, em torno de Deus e do Cordeiro em contínua adoração, tal como na visão joanina em Apocalipse 7, 9-17:

Depois disso, eis que vi uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do Cordeiro, trajados com vestes brancas e com palmas na mão. E, em alta voz, proclamavam: “A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro!” E todos os Anjos que estavam ao redor do trono, dos Anciãos e dos quatro seres vivos se prostraram diante do trono, com a face por terra, para adorar a Deus. E diziam: “Amém! O louvor, a glória, a sabedoria, a ação de graças, a honra, o poder e força pertencem ao nosso Deus pelos séculos dos séculos. Amém!” Um dos Anciãos tomou a palavra e disse-me: “Estes que estão trajados com vestes brancas, quem são e de onde vieram?” Eu lhe respondi: “Meu senhor, és tu quem o sabe!” Ele, então, me explicou: “Estes são os que vêm da grande tribulação: lavaram suas vestes e alvejaram-nas no sangue do Cordeiro. É por isso que estão diante do trono de Deus, servindo-o dia e noite em seu templo. Aquele que está sentado no trono estenderá a sua tenda sobre eles: nunca mais terão fome, nem sede, o sol nunca mais os afligirá, nem qualquer calor ardente; pois o Cordeiro que está no meio do trono os apascentará, conduzindo-os até às fontes de água da vida. E Deus enxugará toda lágrima de seus olhos”.

            Convém notar que o texto de Apocalipse 7, 9-17 acima se assemelha com o texto da Carta aos Hebreus 12, 18-24, apresentado no capítulo anterior: ambos os textos identificam a Comunhão dos Santos como a assembleia de toda a Igreja reunida em torno de Deus, em que anjos e santos entoam seu louvor eterno ao Senhor, num convívio fraterno sem fim. Enquanto o dia da consumação do Reino escatológico de Deus não chega, o momento oportuno em que isso acontece é a celebração litúrgica, a qual torna possível o kairo&j de Deus, perpetuando o seu agir salvífico no mundo, até que Cristo retorne em sua glória.

            Se as celebrações litúrgicas são o tempo oportuno, por excelência, em que Deus toca a história humana, tornando possível que a salvação seja experimentada de forma comunitária entre os fiéis da Igreja, em seus três estados atuais, a liturgia precisa ser vivenciada em seu sentido pleno. Celebrações mecanicamente ritualísticas ou efusivamente destoantes do espírito da liturgia revelada são prejudiciais para catequese do povo de Deus, impedindo que se compreenda o sentido teológico da reunião de todos, no dia do Senhor, em torno da mesa da Palavra e da Eucaristia. Não basta apenas ensinar ao povo de Deus a importância do preceito dominical ou mesmo da importância de se batizar, de se crismar ou de se casar, se esses sacramentos são vividos extrinsecamente, sem a compreensão de que, naquele momento da celebração litúrgica, com efeito, o céu inteiro se une à comunidade orante dos fiéis peregrinos para manifestar a salvação divina acontecida nesse tempo de oportuno presentificado ali. Os sacramentos não são rituais mágicos; embora hajam ex opere operato, ou seja, pela obra mesma realizada, sua eficácia decorre de sua celebração conforme a fé da Igreja, para que eles sejam verdadeiros sinais da graça salvífica de Cristo. Por isso, é de suma importância que a práxis litúrgica, pela própria ars celebrandi, seja um anúncio do mistério celebrado, em gestos e palavras. Assim adverte a Constituição Sacrosanctum Concilio:

A Igreja procura fazer com que os fiéis estejam presentes a este mistério, não como estranhos ou simples espectadores, mas como participantes conscientes, piedosos e ativos. Devem entender o que se passa, instruir-se com a Palavra de Deus e alimentar-se da mesa do Corpo do Senhor. Dar graças a Deus, sabendo que a hóstia imaculada, oferecida não só pelas mãos dos sacerdotes, mas também pelos fiéis, representa o oferecimento cotidiano de si mesmos até que se consuma, pela mediação de Cristo, a unidade com Deus e entre si, e Deus venha, em fim, ser tudo em todos[46].

            Logo, para se compreender mais aprofundadamente o mistério da Comunhão dos Santos presente na celebração litúrgica, tal como o Concílio apresenta, retomar-se-á, a seguir, a centralidade da Eucaristia na vida eclesial, como ápice da expressão dessa comunhão no curso da história humana.

4.2 A centralidade do mistério eucarístico como ápice da comunhão

            O Catecismo da Igreja Católica recorda que cada celebração sacramental tem seu espaço vital dentro da edificação da vida eclesial: o Batismo, gerando a nova vida dos fiéis; a Crisma           , como o amadurecimento do cristão para dar testemunho público do Senhor; a Reconciliação, como cura da alma ferida pelo pecado após o Batismo etc. Aqui, a intenção não é apresentar a teologia própria de cada um dos sete sacramentos da Igreja, mas ressaltar que, no organismo sacramental, “a Eucaristia ocupa um lugar único por ser ‘sacramento dos sacramentos’: ‘todos os demais sacramentos estão ordenados a este como a seu fim’”[47]. Sendo a presença real de Cristo em forma sacramental, a Eucaristia tem precedência sobre todos os outros sacramentos, pois, de modo mais pleno e significativo, é o sacramento que atualiza e nutre a comunhão dos fiéis, já enxertados no Corpo Místico, com Cristo e entre si, a ponto de ser chamado de Sacramento da Comunhão, como mencionado anteriormente.

            Nessa mesma linha de raciocínio teológico, Yves Congar explicita que:

A Tradição sustenta unanimemente que a Eucaristia é o sacramento da unidade e que seu efeito espiritual é a unidade do corpo místico. […] O efeito dos sacramentos corresponde ao seu simbolismo, à significação do sinal sacramental. Ora, na eucaristia, este sinal sinal consiste numa comida, numa nutrição. Pela conversão do pão e do vinho oferecidos no Corpo e no Sangue de Jesus Cristo, o alimento que nos é dado é o próprio Verbo de Deus, o alimento celestial, o pão escatológico daqueles a quem Deus une consigo numa comunhão divinizadora de vida[48].

            Sendo alimento espiritual, a recepção frutuosa da Eucaristia tem a capacidade de fortalecer os vínculos de comunhão gerados nos fiéis batizados em Cristo, de modo a estreitar os laços “não somente [entre] os membros que estão ainda na terra, mas também os que já estão na glória do Céu[49]”. Na celebração eucarística, a assembleia dos fiéis de Cristo se abre ao convívio fraterno com todos os que já contemplam a face de Deus, entoando um único cântico de louvor ao Pai, pelo sacrifício redentor de seu Filho, impulsionados pela força do Espírito Santo, que anima toda a Igreja. Pela glorificação perfeita do Pai, pelo Filho, no Espírito, a Igreja, peregrina sobre a terra, é edificada, santificada e fortalecida, para, um dia, se unir à comunidade dos bem-aventurados, no Reino escatológico de Cristo. Contudo, já no hoje, no tempo oportuno da celebração eucarística,

a liturgia renova e aprofunda a aliança do Senhor com os homens, na Eucaristia, fazendo-os arder no amor de Cristo. Dela, pois, especialmente da Eucaristia, como de uma fonte, derrama-se sobre nós a graça e brota, com soberana eficácia, a santidade em Cristo e a glória de Deus, fim para o qual tudo tende na Igreja[50].

            Se a comunhão eucarística não tem gerado comunhão de santidade nos fiéis de Cristo, o defeito não está no sacramento, celebrado liturgicamente conforme a fé da Igreja, mas nas disposições interiores de cada um ao celebrá-lo. Desde os tempos apostólicos, há a queixa de que, embora as comunidades celebrem o Sacramento da Comunhão, há sempre a constatação de desunião, competição, desentendimento e outros problemas morais entre os fiéis, o que impede a  experiência profunda da unidade eclesial que a graça da comunhão eucarística deve gerar no homem redimido por Cristo. Diante dessa situação desagradável, São Paulo exorta, em 1Cor 11, 28-32:

que cada um examine a si mesmo antes de comer desse pão e beber desse cálice, pois aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, como e bebe a própria condenação. Eis por que há entre vós tantos débeis e enfermos e muitos morreram. Mas, por seus julgamentos, o Senhor nos corrige, para que não sejamos condenados com o mundo.

            Quem não está disposto a viver a comunhão interpessoal com os demais irmãos na fé em Cristo não deve se aproximar do sacramento do amor caritativo, pois isso seria uma contradição, uma hipocrisia do mesmo nível que Jesus condenava nos fariseus, durante o seu tempo de ministério público em Israel. Ao contrário, na celebração e recepção do sacramento eucarístico, dever-se operar “não só a <<transformatio hominis ad Christum>>, mas também a <<unio populi chistiani ad Christum>>[51]”, como Yves Congar salienta, uma vez que a Eucaristia e toda a vida eclesial, como foi exposto, não se trata de um caminho, de um encontro de união exclusivista e individualista do homem com Deus, mas do fiel com a Santíssima Trindade e com todos os demais fiéis (comunhão vertical e horizontal). A santidade não é o fruto de uma “carreira solo”, mas o resultado de uma vida humana realizada na comunhão, uma configuração a Cristo, que se doa gratuitamente em amor caritativo por toda a humanidade.

            Outro texto bíblico importante, para se compreender a eficácia da vida de comunhão litúrgica e de como fazê-la frutificar, está na narração do sacrifício que Abel e Caim ofereceram ao Senhor, tal como Gn 4, 1-5:

O homem conheceu Eva, sua mulher; ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Adquiri um homem com a ajuda de Iahweh”. Depois, ela deu à luz também Abel, irmão de Caim. Abel se tornou pastor de ovelhas, e Caim cultivava o solo. Passado o tempo, Caim apresentou produtos do solo em oferenda a Iahweh; Abel, por sua vez, também ofereceu primícias e a gordura do seu rebanho. Ora, Iahweh agradou-se de Abel e de sua oferenda. Mas não se agradou de Caim e de sua oferenda, e Caim ficou muito irritado e com o rosto abatido.

            O conhecido texto acima trata das origens dos sacrifícios religiosos oferecidos a Deus, prática presente na maioria das antigas religiões, as quais ofereciam sacrifícios dos mais variados tipos às suas divindades. O interessante notar é que Deus, o Senhor, recebe com agrado a oferenda de Abel, mas não a oferenda de Caim, o que deixa este último transtornado, a ponto de cometer o primeiro homicídio da história sagrada, como o texto apresenta mais adiante, em seu desenvolvimento. Fica, então, o questionamento: por que o Senhor aceita a oferenda de Abel, mas não aceita a de Caim? Deus fariam, portanto, acepção de pessoas? A culpa pelo sentimento de rejeição que impulsionou Caim a cometer um fratricídio seria de Deus, porque não quis receber a sua oferenda? Com efeito, pensamentos como esses estariam na contramão de tudo o que foi apresentado até agora a respeito da natureza de Deus ser amor de doação, cuja bondade e misericórdia são infinitas, a ponto de enviar o seu próprio Filho Unigênito para estabelecer o verdadeiro e único sacrifício pelos pecados da humanidade, pela oferta de sua vida na cruz, e o Espírito Santo como fonte de vida para toda a Igreja. Onde então está o problema que acarretou a não aceitação dos frutos da terra oferecidos por Caim ao Senhor? A resposta para essa pergunta se encontra na Carta aos Hebreus 11, 1-4:

A fé é a garantia dos bens que se esperam, a prova das realidades que não se veem. Foi ela que valeu aos antigos seu belo testemunho. É pela fé que compreendemos que os mundos foram organizados por uma palavra de Deus. Por isso é que o mundo visível não tem a sua origem em coisas manifestas. Foi pela fé que Abel ofereceu a Deus um sacrifício melhor que o de Caim. Graças a ela, foi declarado justo, e Deus apresentou o testemunho dos seus dons. Graças a ela, mesmo depois de morto, ainda fala!

            O problema da não aceitação da oferenda de Caim não estava na oferenda em si nem em Deus, como se o Senhor, arbitrariamente, quisesse exaltar Abel em detrimento de Caim. O problema de a oferenda de Caim não ter sido aceita por Deus foi que seu sacrifício ao Senhor não foi realizado na fé, como o de Abel. Portanto, na Nova Aliança, estabelecida por Jesus Cristo, em seu sacrifício definitivo ao Pai, não são os sacramentos desse sacrifício, em si, que são incapazes de gerar a graça da comunhão entre os fiéis cristãos que tomam parte neles, mas é a falta de fé que, muitas vezes, impede que os sacramentos produzam eficazmente a graça santificante na vida dos fiéis. O Concílio Vaticano II ensina que:

Os sacramentos se destinam à santificação dos seres humanos, à edificação do Corpo de Cristo e, finalmente, ao culto que se deve a Deus. Como sinais, visam também à instrução. Requerem a fé, mas também a alimentam, sustentam e exprimem, com palavras e coisas, merecendo, por isso, ser chamados de sacramentos da fé. Conferem a graça, mas também dispõe os fiéis a recebê-la frutuosamente, prestar o devido culto a Deus e exercer a caridade[52].

            Sem a fé, ninguém pode agradar a Deus (cf. Hb 11, 6), por isso, para que a eficácia dos sacramentos possa ser frutuosa a fim de gerar e manter a unidade de comunhão entre Deus e os homens e dos homens entre si, é preciso que cada celebração sacramental seja vivenciada na fé, no sentido em que já foi apresentado na primeira seção do desenvolvimento deste trabalho: fé que abre o ser humano ao acolhimento de Deus e de sua vontade, mas também ao acolhimento do próximo, por amor a Deus; fé que gera adesão de comunhão, não só pelo compartilhamento espiritual dos ensinamentos apostólicos fielmente transmitidos pela Igreja, como também na celebração da vida litúrgica e no exercício da caridade fraterna em torno dos pastores. Uma fé que não tem implicação na vida de comunhão, mas se resume a um relacionamento individualista do homem com Deus é uma fé morta (cf. Tg 2, 18).

            Além disso, o sacrifício eucarístico também é o exercício do amor caritativo em favor dos fiéis falecidos, necessitados de uma purificação final para adentrar na bem-aventurança eterna. Nesse sentido, Congar também recorda que, pela celebração eucarística, o empenho pela salvação de todos os membros do Corpo Místico de Cristo precisa se expressar como caridade-serviço, visto que, pelo intercâmbio de bens espirituais entre a Igreja Peregrina e a Igreja Padecente, essa caridade-serviço também se coloca em ação, na medida em que são oferecidos sufrágios em favor dos fiéis falecidos: “Se vivemos em comunhão com todos os membros da sociedade divina, comunhão que se expressa em forma de cooperação e de serviços mútuos, é porque a caridade nos une à vida desta sociedade divina[53]”. A Eucaristia não é só fonte de amor, especificamente, do amor divino caritativo, mas também compromisso de amor para com os demais irmãos, que ainda caminham sobre a terra, e com os necessitados da graça purificadora de Deus para entrar no Céu. Cada Eucaristia celebrada, e não apenas a Comemoração dos Fiéis Defuntos, a 2 de novembro, deve ser ocasião para que todos os fiéis se exercitem, ativamente, na caridade-serviço em favor das almas do Purgatório, unindo ao sacrifício de Cristo suas orações, penitências e práticas piedosas em prol do descanso eterno de seus entes queridos falecidos, aos quais se pretende reunir em comunhão, um dia, na assembleia celeste dos bem-aventurados. Em virtude disso, afirma Alviar: “deste modo, o mistério de solidariedade na salvação aparece em toda a sua amplitude, abarcando membros da comunidade tanto vivos como defuntos[54]”.

            Para concluir esta exposição, o subitem a seguir tratará, então, de apresentar a riqueza da fé católica em promover as piedosas práticas devocionais aos Santos, os quais são verdadeiros cooperadores de Cristo na obra da redenção humana. Sem o exercício piedoso da veneração aos irmãos bem-aventurados, a fé católica não expressaria, em sua completude, a dimensão interpessoal da Comunhão dos Santos, a qual supera os limites do tempo e do espaço humanos, a fim de se estabelecer a verdadeira unidade da Igreja de Cristo, não só de modo dogmático, litúrgico e hierárquico, mas também com expressões de afeto mútuo, por meio das mais belas práticas de amor aos Santos que a Igreja presenciou ao longo de todos anos de sua existência sobre a terra.      

4.3 A devoção aos Santos e sua pertinência na vida dos fiéis de Cristo

            O último tópico que resta para ser desenvolvido é, portanto, a noção mais comum que se vem à mente, quando se menciona a fé da Igreja Católica na Comunhão dos Santos: a prática das piedosas devoções dos fiéis de Cristo aos Santos. A questão da veneração aos Santos também foi um tema presente entre os primeiros cristãos. Desse modo, não basta apenas saber que os bem-aventurados estão unidos aos demais fiéis do Corpo Místico de Cristo e que, de fato, intercedem a Deus para que todos cheguem à salvação. Se a comunhão existe e é verdadeira, logicamente, no dia a dia da prática da fé, isso permitiu que se desenvolvesse a noção de que, não somente na celebração litúrgica, esse convívio fraterno poderia ser experimentado, por meio do intercâmbio de bens espirituais entre o céu e a terra, mas, aos poucos, foram surgindo orações à Bem-aventurada Virgem Maria, aos mártires e aos outros demais fiéis glorificados, devido ao seu exemplo de vida deixado para toda a Igreja.

            Retomando o Martírio de São Policarpo, escrito do início do séc. II, encontra-se a seguinte explicação que os cristãos dão de sua veneração aos santos mártires da fé, perseguidos e mortos pelo Império Romano:

Ignoravam eles [os perseguidores] que não poderíamos jamais abandonar Cristo, que sofreu pela salvação de todos aqueles que são salvos no mundo, como inocente em favor dos pecadores, nem prestamos culto a outro. Nós o adoramos, porque é o Filho de Deus. Quanto aos mártires, nós os amamos justamente como discípulos e imitadores do Senhor, por causa da incomparável devoção que tinham para com seu rei e mestre. Pudéssemos nós também ser seus companheiros e condiscípulos. […] Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá reunir-nos, na alegria e contentamento, para celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no futuro[55].

            Os Santos, por seu auxílio de intercessão, são invocados pelos fiéis em todas as circunstâncias. Por seu exemplo de fidelidade, ajudam, efetivamente, a que a Igreja de Cristo se mantenha firme na comunhão até o dia em que todos estarão reunidos na glória, como companheiros, a entoar o louvor eterno à Santíssima Trindade, no Novo Céu e na Nova Terra. Atentos a essa dimensão da Comunhão dos Santos e expressando seu afeto pelos demais irmãos que já se encontravam diante da Face divina, várias práticas de piedade foram sendo introduzidas no cotidiano da vida dos fiéis, tais como a veneração de relíquias e imagens, peregrinações e visitas a lugares sagrados, sobretudo ao túmulos dos santos mártires, procissões, uso de medalhas, o santo rosário a Nossa Senhora e outras mais[56]. Isso tudo aconteceu por alguns motivos específicos, a saber: a não possibilidade de se celebrar liturgicamente a memória dos Santos com mais frequência, mas apenas no aniversário de sua entrada no Reino dos Céus; o desejo de se expressar o afeto pelos entes queridos falecidos da comunidade; e, também, o empenho da Igreja em buscar purificar os pagãos convertidos, para que abandonassem suas práticas idolátricas e se voltassem, inteiramente, para Cristo, como único Deus verdadeiro, e aos Santos, como fiéis intercessores e modelos para se imitar no seguimento de Cristo.

            Ao longo da história da Igreja, foi preciso a intervenção de dois concílios ecumênicos, mais pontualmente, para se sanar as controvérsias que foram surgindo entre os fiéis por causa da veneração aos Santos. A primeira disputa mais acentuada se deu no século VIII, na Igreja do Oriente, a qual, convivendo com o Islamismonascente, começou a duvidar de que a prática religiosa cristã da veneração aos Santos, sobretudo por causa das imagens sagradas, era contrária à adoração devida somente a Deus, acentuando-se as proibições veterotestamentárias sobre o uso de imagens, na chamada controvérsia iconoclasta. O II Concílio de Niceia, para o bem da Igreja, precisou definir que:

Quanto mais <os santos> são contemplados no ícone que os reproduz, tanto mais os que contemplam são levados à recordação e ao desejo dos modelos originais e a tributar-lhes, beijando-os, respeito e veneração; não, é claro, a verdadeira adoração própria de nossa fé, reservada só à natureza divina, mas, como se faz para a representação da cruz preciosa e vivificante, para os santos evangelhos e outros objetos sagrados, honrando-os com a oferta de incenso e luzes, segundo o piedoso uso dos antigos. Pois “a honra prestada ao ícone passa para o modelo original”, e quem venera o ícone venera a pessoa de quem nele é reproduzido[57].

            O Deus invisível que se tornou visível no Verbo encarnado (cf. Cl 1, 15) é o que tornou possível a representação das imagens sagradas. A Encarnação do Verbo mostra que a matéria não é má em si ou corrompida pelo pecado, mas pode ser sinal e canal da graça divina. Assim como o corpo humano de Cristo foi sacramento de sua divindade, tornando acessível e tangível Deus ao ser humano, também, seguindo a mesma lógica da Encarnação, os sacramentos são sinais continuadores da tangibilidade da graça divina para o ser humano até o fim dos tempos, em que Cristo irá retornar em sua glória. Da mesma forma, as imagens e os demais objetos sagrados não substituem Cristo ou seus sacramentos, mas são chamados de sacramentais, porque, por sua materialidade, tornam tangíveis não a graça divina em si nem a pessoa santa que é representada, mas sua memória, a fim de que, invocando seu auxílio de intercessão, os Santos apressem a realização escatológica da salvação divina, tal como já foi mencionado no capítulo anterior.

            Nessa mesma linha de controvérsias, agora não mais por influência islâmica, mas pelas contestações protestantes, o Concílio de Trento, no séc. XVI, teve de lidar, mais uma vez, com os opositores da fé cristã na Comunhão dos Santos e da prática da veneração manifestada pelos fiéis católicos. Assim diz o Concílio:

[…] Instruam [os que têm o múnus de ensinar], diligentemente, os fiéis, em primeiro lugar, acerca da intercessão dos Santos, sua invocação, a honra devida às relíquias e o uso legítimo das imagens, ensinando-lhes que os Santos que reinam com Cristo oferecem a Deus a suas orações pelos homens; que é bom e útil invocá-los suplicantes e recorrer às suas orações e a seu poder e auxílio, para obter benefícios de Deus por seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor, que é o único salvador e redentor […]. Se nestas práticas santas e salutares se tiverem difundido abusos, o santo Sínodo deseja ardentemente eliminá-los, de modo que não sejam erigidas imagens que favoreçam doutrinas errôneas e, para as pessoas simples, sejam ocasião de algum erro perigoso. […] Na invocação dos Santos, na veneração das relíquias e no uso sagrado das imagens, afaste-se qualquer superstição, elimine-se toda torpe ganância, evite-se, enfim, toda sensualidade…[58].

            Ao contrário do que se comumente pensa, o Concílio de Trento não se preocupou em apenas condenar as heresias de seu tempo, mas, inspirados pelo zelo pastoral e o desejo de salvar as almas, os Padres conciliares se importaram em instruir que a devoção aos Santos não substituía a adoração, que é devida só a Deus, mas fundamentaram a prática devocional na centralidade de Cristo, a quem os Santos intercedem pelos demais fiéis e do qual também depende a sua atuação em favor da Igreja. Além disso, o Concílio se preocupou em corrigir os erros abusivos na prática devocional aos Santos, oriunda das superstições pagãs não expurgadas, mas sincretizadas com a autêntica fé cristã revelada.

No âmbito da veneração aos Santos, por causa de sua íntima relação com os mistérios de Cristo (Encarnação Infância, Vida Pública, Páscoa e início da Igreja), convém explicitar que Maria recebe um destaque especial, que é chamado de hiperdulia, ou veneração superior. O relato da total solicitude à vontade de Deus na Anunciação, visita a Isabel e o seu Magnificat (cf. Lc 1, 26-55), a intercessão nas Bodas de Caná e a maternidade eclesial representada na mãe que acolhe o discípulo amado (cf. Jo 2, 1-11; 19, 25-27) e sua permanência no seio da Igreja, após a Ressurreição (cf. At 1, 12-14), entre outros fatos importantes, dão um especial destaque à figura e atuação de Maria na comunidade cristã. Data, do século III ou IV, a oração mariana mais antiga, que é a Sub tuum praesidium (A vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus, não desprezeis nossas súplicas em nossas necessidades, mas livrai-nos sempre dos perigos, ó Virgem gloriosa e bendita), a qual, dentre outros fatores, contribuiu para a proclamação do dogma da Maternidade Divina de Maria, no Concílio de Éfeso, em 431. Após isso, a devoção mariana, que já existia, aumentou cada vez mais, até a inclusão de algumas datas comemorativas no calendário litúrgico, celebrando os acontecimentos bíblicos que se relacionavam com a pessoa de Maria.

Sem sombra de dúvida, o rosário é a devoção mariana mais difundida ao longo dos séculos, desde a Idade Média até os dias atuais. O rosário não é uma simples recitação repetitiva de orações vocais, mas é uma verdadeira escola de espiritualidade, pois, por meio de sua simplicidade, é possível contemplar os principais mistérios da vida de Jesus, respeitando a ordenamento evangélico, que parte da Encarnação e Infância de Cristo, passa pelo ministério público e culmina com a Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor e a vinda do Espírito Santo sobre a Igreja, o que permite introduzir o fiel a uma vida mais contemplativa, mesmo em meio à agitação do cotidiano, sem perder de vista a centralidade de Cristo e o amparo materno da Virgem Maria, como mãe acolhedora de todos os discípulos amados de Cristo.

Todas essas práticas devocionais devem expressar que a fé católica crê na estreita união que há entre toda a Igreja, no Céu e na Terra, em que os irmãos glorificados auxiliam os que ainda estão em peregrinação a alcançarem a salvação em Cristo. Longe de ser um empecilho para a profissão de fé no Deus uno e trino, a veneração aos Santos pode muito contribuir para que se purifique, nos cristãos do século XXI, a busca da santidade, na medida em que se compreende que esta se realiza na vida de comunhão interpessoal, na qual os Santos participam, juntamente com os fiéis em estado de purificação final e os peregrinos sobre a terra, de uma mesma e única família de Deus, na qual reina o amor de caridade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Aprofundar o sentido da fé católica na Comunhão dos Santos parece ser uma tarefa fácil, uma vez que a práxis cristã lida com esse tema em seu cotidiano ao longo de toda a história da Igreja. Desde os primórdios do Cristianismo, a compreensão da unidade eclesial, não somente sincrônica, mas também diacrônica, sempre foi alvo de interesse dos pastores, a fim de cumprir o desejo de Jesus Cristo de que todos sejam um (cf. Jo 17, 20-23). Contudo, pensar que um tema, somente porque é muito recorrente na reflexão eclesial, seja de fácil abordagem teológica é uma mera ilusão, pois seu aprofundamento mostra que muito ainda precisa ser esclarecido sobre essa verdade de fé, a fim de que a práxis eclesial (ortopraxia), iluminada sempre mais por uma reta doutrina (ortodoxia), contribua para que os cristãos de hoje também encontrem o seu pleno sentido existencial na vivência da fé católica, na certeza de que a promoção da comunhão entre os fiéis de Cristo é um verdadeiro caminho de realização do indivíduo como pessoa, segundo o plano salvífico de Deus.

            A primeira seção do desenvolvimento deste trabalho procurou relacionar a Comunhão dos Santos com a sua dimensão eclesiológica e, para tal efeito, buscou-se seu fundamento primordial na vida mesma da Santíssima Trindade: sendo o homem criado à imagem e semelhança do Deus uno e trino, ele é vocacionado à vida de comunhão, a qual encontra sua realização, no plano da salvação, no mistério da Igreja, Corpo Místico de Cristo. Essa comunhão interpessoal experimentada na Igreja se expressa como uma comunicação de bens, que pode ser sintetizada em três aspectos fundamentais: unidade nos ensinamentos apostólicos, unidade na celebração litúrgica e unidade caritativa em torno dos pastores.

            Além disso, sem a compreensão de que essa unidade visível é, com efeito, fruto da comunhão divina sobrenatural que a sustenta, a Igreja de Cristo não passaria de uma simples associação de pessoas em torno de uma ideologia e deixaria de ser um vivo testemunho da ação divina histórico-salvífica para a humanidade. Por isso, constatou-se que não há, na Igreja, como dissociar a busca pela comunhão de um forte apelo à santidade de vida e vice-versa, já que aquele que se dispõe a estar unido a Cristo Cabeça deve também estar disposto a se unir com todo o seu Corpo Místico, em que cada membro contribui para a edificação dos demais, até que todos atinjam a estatura de Cristo. Ser santo é, em outras palavras, identificar-se com Cristo por meio da participação no mistério de seu Corpo Místico, o que não admite o cultivo de divisões sectárias entre os membros, o que seria contraditório à Revelação, mas o desejo de, sempre mais, progredir nesse caminho de comunhão.

            Em seguida, pôde-se constatar que esse caminho de comunhão, pela participação no Corpo Místico de Cristo, não se desfaz com a morte física de seus membros, visto que a Igreja de Cristo é uma realidade que supera sua existência histórica. Resgatando os elementos de escatologia intermediária, percebeu-se que a fé católica na Comunhão dos Santos não se fundamenta apenas em seu viés eclesiológico, mas também, de uma forma muito mais profunda, em sua compreensão escatológica. A ressurreição de Cristo inaugurou uma nova compreensão da escatologia bíblica, indicando que os fiéis mortos em Cristo já podem gozar de sua visão beatífica, ainda que, segundo a Antropologia Teológica, essa visão aguarde por uma plenitude ainda maior em vista da ressurreição final de todo o gênero humano, na consumação do Reino de Deus. Assim sendo, os que se encontram hoje na glória com Cristo podem continuar a colaborar pela edificação de todo o seu Corpo Místico, não somente com o exemplo que deixaram na história da Igreja, senão, de modo ainda mais eficaz, por meio de suas preces em favor dos que caminham sobre a terra rumo à união definitiva com a Santíssima Trindade e com os demais irmãos na fé.

            Da mesma forma, os fiéis que morreram em Cristo, mas que não atingiram, em vida, a exigência de santidade que decorre de seu chamado à vida de comunhão, recebem a força da intercessão dos que já alcançaram a glória e dos que caminham sobre a terra, a fim de que, expiada todas as suas penas temporais, possam também compor, plenamente, o número dos eleitos que gozam da visão beatífica de Deus. Nesse sentido, a Comunhão dos Santos também pressupõe e sustenta a fé católica nos três estados atuais da Igreja (Peregrina, Padecente e Trinfante), sem a qual a noção de unidade eclesial e comunicação de bens espirituais se tornaria pobre, uma vez que estaria condicionada, estritamente, à existência histórica da Igreja. Com a reta compreensão da escatologia intermediária, pôde-se constatar que a Comunhão dos Santos possui também uma dimensão trans-histórica.

            Na última parte do desenvolvimento, observou-se como toda essa realidade trans-histórica se realiza, de forma concreta, num tempo oportuno, um tempo propício para comunicação da graça divina na Igreja que caminha sobre a terra, que é a celebração litúrgica. Na sua vivência litúrgica, a Igreja se abre à atualização do mistério salvífico de Cristo no seu hoje, pois toda vez em que se celebram os sacramentos, sobretudo a Eucaristia, toda a Igreja se faz presente, em seus três estados: o Céu e o Purgatório se unem à Terra, na força do Espírito Santo, a fim de entoar o único louvor agradável a Deus, pelo sacrifício de seu Filho unigênito, em prol do projeto divino de salvação. Desde o Antigo Testamento, o povo de Deus tinha compreensão de que a celebração litúrgica não era uma simples representação de acontecimentos passados, mas uma atualização do memorial vivo da intervenção de Deus no hoje de sua história, em vista da consumação plena no final dos tempos. Tal compreensão, tendo atingido sua verdadeira profundidade no Novo Testamento, com a Nova e Eterna Aliança estabelecida entre Deus e a humanidade, por Cristo, no Espírito Santo, toda vez que se celebra o mistério cristão se realiza a única obra de salvação, Deus é glorificado, a humanidade é santificada, pela comunhão com Deus e os irmãos, a qual é fortificada pela graça. Por isso, ao longo da sua história, a liturgia da Igreja sempre associou, de forma cada vez mais progressiva, a celebração dos Santos em unidade com o Mistério Pascal de Cristo, para expressar que, na liturgia, essa comunhão/comunicação entre os fiéis de toda a Igreja (Peregrina, Padecente e Triunfante) é experimentada em seu hoje, no tempo oportuno da manifestação da graça de Deus.

            Não obstante isso, mas como desdobramento dessa realidade litúrgica, também surgiram, ao longo dos séculos de Cristianismo, a legítima devoção aos Santos, com o destaque para a piedade mariana. Já que nem sempre é possível celebrar a liturgia, o sensus fidelium desenvolveu essas práticas de piedade não para substituir a liturgia da Igreja, mas para prolongá-la no decorrer de seu cotidiano, seja como preparação para celebrá-la, seja como ação de graças por sua celebração, sempre no sentido de expressar que a Igreja está intimamente reunida em comunhão, tendo todos os fiéis a possibilidade de se entreajudar para que a unidade da Igreja atinja a sua plenitude em Cristo.

      Enfim, toda essa exposição teve como objetivo expressar que quem caminha com Cristo nunca está sozinho, pois uma multidão de irmãos se une, no Céu e na Terra, a quem se decide pelo seguimento de Cristo. O objetivo final do homem e da mulher, criados a imagem e semelhança de Deus, é poder expressar essa realidade em toda a sua profundidade, abrindo-se à comunhão com a Santíssima Trindade e os demais semelhantes. Fora desse projeto de vida pensado por Deus para sua criatura humana e manifestado na plenitude dos tempos, com a instauração da Igreja de Jesus Cristo sobre toda a terra, perde-se a oportunidade de permitir que Deus realize a elevação da natureza humana e, consequentemente, sua participação na natureza divina. Somente inserido na Comunhão dos Santos, o fiel cristão conseguirá superar os apelos do individualismo contemporâneo e se abrir ao amor caritativo, que preenche todo o seu ser com a plenitude de Deus.

Pe. Elivelton da Gama de Jesus

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FRANCISCO. Exortação Apostólica Gaudete et exultate sobre a chamada à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulus, 2018.

MÜLLER, G. L, Dogmática Católica: teoria e prática da Teologia. Tradução de Volney Berkenbrock, Paulo Ferreira Valério e Vilmar Schneider. Petrópolis: Vozes, 2015.

PADRES APOSTÓLICOS. Atas do Martírio de Policarpo. In.: Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, O Pastor de Hermas, Carta de Barnabé, Papias, Didaqué. São Paulo: Paulus, 2014. (Coleção Patrística, vol 1).


[1] CEC, nº 234.

[2] Ibidem, nº 357.

[3] Ibidem, nº 262-263.

[4] DH, nº1330-1331.

[5] MÜLLER, G. L, Dogmática Católica: teoria e prática da Teologia. Tradução de Volney Berkenbrock, Paulo Ferreira Valério e Vilmar Schneider. Petrópolis: Vozes, 2015. p. 323.

[6] CEC, nº  760.

[7] CONGAR, Y. Mysterium Salutis IV/3, A Igreja. As propriedades da Igreja. Tradução de Luiz João Gaio. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 14.

[8] cf. Ibidem. p. 15

[9] CN, nº 3.

[10] CONGAR, Y. Mysterium Salutis IV/3, A Igreja. As propriedades da Igreja. Tradução de Luiz João Gaio. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 45.

[11] Ibidem. p. 15.

[12] Cf. LG, nº1.

[13] CONGAR, Y. Mysterium Salutis IV/3, A Igreja. As propriedades da Igreja. Tradução de Luiz João Gaio. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 16-17.

[14] Ibidem. p. 17.

[15] Ibidem. p. 21.

[16] Ibidem. p. 26-27.

[17] Cf. CEC, nº 1331; 1Cor 10, 16-17.

[18] Inácio aos Efésios 6, 1-2. In.:PADRES APOSTÓLICOS. Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, O Pastor de Hermas, Carta de Barnabé, Papias. São Paulo: Paulus, 1995. (Coleção Patrística, vol 1). p. 92-93.

[19] CONGAR, Y. Mysterium Salutis IV/3, A Igreja. As propriedades da Igreja. Tradução de Luiz João Gaio. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 37.

[20] Cf. CEC, nº 815.

[21] ALVIAR, J. J. Escatología. 3ed. Navarra: EUNSA, 2011. p. 336-337. [Tradução nossa].

[22] GE, nº 64.

[23] ALVIAR, J. J. Escatología. 3ed. Navarra: EUNSA, 2011. p. 339. [Tradução nossa].

[24] GE, nº 140-141.

[25] CONGAR, Y. Mysterium Salutis IV/3, A Igreja. As propriedades da Igreja. Tradução de Luiz João Gaio. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 14.

[26] LG, nº 48.

[27] Cf. CEC, nº 1720.

[28] Inácio aos Romanos 4, 1-3; Martírio de Policarpo 14, 1-3. In.: PADRES APOSTÓLICOS. Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, O Pastor de Hermas, Carta de Barnabé, Papias. São Paulo: Paulus, 1995. (Coleção Patrística, vol 1). p. 105. 152-153.

[29] ALVIAR, J. J. Escatología. 3ed. Navarra: EUNSA, 2011. p. 298-299. [Tradução nossa].

[30] Ibidem. p. 127. [Tradução nossa].

[31] LG, nº 49.

[32] ALVIAR, J. J. Escatología. 3ed. Navarra: EUNSA, 2011. p. 137. [Tradução nossa].

[33] CN, nº 6.

[34] CEC, nº 1026.

[35] Ibidem, nº 957.

[36] Ibidem, nº 956.

[37] ALVIAR, J. J. Escatología. 3ed. Navarra: EUNSA, 2011. p. 349-350. [Tradução nossa].

[38] Ibidem, p. 307.  [Tradução nossa].

[39] Ibidem, p. 334. [Tradução nossa].

[40] Cf. Ibidem, p. 339.

[41] DH, nº 1304.

[42] ALVIAR, J. J. Escatología. 3ed. Navarra: EUNSA, 2011. p. 353.  [Tradução nossa].

[43] LG, nº 50.

[44] Inácio aos Magnésios 9, 1. In.: PADRES APOSTÓLICOS. Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, O Pastor de Hermas, Carta de Barnabé, Papias. São Paulo: Paulus, 1995. (Coleção Patrística, vol 1). p. 94.

[45] SC, nº 106.

[46] SC, nº 48.

[47] CEC, nº 1211.

[48] CONGAR, Y. Mysterium Salutis IV/3, A Igreja. As propriedades da Igreja. Tradução de Luiz João Gaio. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 27.

[49] CEC, nº 1370.

[50] SC, nº 10.

[51] CONGAR, Y. Mysterium Salutis IV/3, A Igreja. As propriedades da Igreja. Tradução de Luiz João Gaio. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 28.

[52] SC, nº 59.

[53] CONGAR, Y. Mysterium Salutis IV/3, A Igreja. As propriedades da Igreja. Tradução de Luiz João Gaio. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 34.

[54]  ALVIAR, J. J. Escatología. 3ed. Navarra: EUNSA, 2011. p. 339.

[55] Martírio de Policarpo 17, 2-3; 18 3. In.: PADRES APOSTÓLICOS. Clemente Romano, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, O Pastor de Hermas, Carta de Barnabé, Papias. São Paulo: Paulus, 1995. (Coleção Patrística, vol 1). p. 154.

[56] Cf. CEC, nº 1674.

[57] DH, nº 601.

[58] Ibidem, nº 1821;1825.