Luzes da Transfiguração
Domingo – II Quaresma – C – Gn 15,5-18; Sl 26; Fl 3,17-4,1; Lc 9,28-36
Você conhece o poema “pegadas na areia”? Relata a observação que uma pessoa fazia estando na praia de que nos momentos mais felizes da sua vida existiam duas pegadas na areia: as do Senhor e as suas. Deus estava presente nos momentos de felicidade. Mas… que decepção! Nos momentos de dificuldade, a mesma pessoa notava que só existia uma pegada na areia. Ao perguntar ao Senhor o porquê daquilo, Deus lhe respondeu que nos momentos mais difíceis Ele a segurava nos braços sem que ela mesma percebesse isso. Surpresa maior ainda: as pegadas eram do Senhor!
Escuta-se neste domingo em toda a Igreja o trecho do Evangelho que relata a transfiguração do Senhor. Ao olharmos um pouco o contexto, observamos que Jesus tinha anunciado aos seus que “é necessário que o Filho do homem padeça muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas. É necessário que seja levado à morte e ressuscite ao terceiro dia” (Lc 9,22); que ele tinha falado também que se alguém o quisesse seguir que tomasse a cruz (Lc 9,23-24); por outro lado, alguns discípulos esperavam um messias político que vencesse pela força de um exército dominador o poder dos romanos, de cujo jugo desejavam ver-se livres.
Tendo em conta tudo isso, podemos dizer que os discípulos encontravam-se bastante desnorteados e até mesmo desanimados. A transfiguração do Senhor é um consolo. De fato, dizia São Leão Magno que “o fim principal da transfiguração foi desterrar das almas dos discípulos o escândalo da Cruz”; trata-se de uma “gota de mel” no meio dos sofrimentos. A transfiguração ficou muito gravada na mente dos três apóstolos que estavam com Jesus; anos mais tarde São Pedro lembrar-se-ia daquele maravilhoso acontecimento na sua segunda epístola: “Este é o meu filho muito amado, em quem tenho posto todo o meu afeto. Esta mesma voz que vinha do céu nós a ouvimos quando estávamos com ele no monte santo” (2 Ped 1,17-18). Ele, Jesus, continua dando-nos o consolo – quando necessário – para podermos continuar caminhando e para que nunca desistamos. É preciso que façamos muitos atos de esperança, uma virtude muito importante para todos os membros desse estado da Igreja que nós chamamos de “militante” ou “peregrina” Somos os que combatem e somos combatidos; tenhamos, portanto, presente que a nossa força vem do Senhor, nele nós esperamos.
Vale a pena seguir alguém que vai morrer na Cruz? Uma pergunta semelhante pôde ter passado pela mente dos discípulos do Senhor como também pôde ter passado alguma vez pela nossa, quiçá formulada de outra maneira. Muitas vezes, também nós passamos por provas espirituais difíceis: parece que Deus não me ouve, que ele está longe de mim, não liga para mim, muda de planos e que “não está nem aí” para os meus planos. Os discípulos de Jesus têm uma sensação semelhante diante do anúncio da Paixão e do seguimento exigido por Jesus: encontravam-se diante de um projeto que eles não tinham imaginado. E agora, vale a pena, discípulo de Cristo? Você que lê esse texto: vale a pena? Hoje em dia, você e eu só estamos no serviço do Senhor porque aqueles primeiros viram que valia a pena e porque livremente vimos, nós também, que vale a pena.
Os discípulos da transfiguração são os mesmos do Monte das Oliveiras, os da alegria são também os da agonia. É preciso acompanhar o Senhor em suas alegrias e em suas dores. As alegrias preparam-nos para o sofrimento e o sofrimento, por e com Jesus, dá-nos alegria. Os discípulos, que estavam desanimados diante do Mistério da Cruz, são consolados por Jesus na transfiguração e preparados para os acontecimentos vindouros, como, por exemplo, o terrível sofrimento que Ele padecerá no Getsêmani. Vale a pena segui-lo? Certamente.
Animemo-nos mutuamente! A nossa pátria é o céu. Para o povo de Israel estar em qualquer lugar que não fosse Jerusalém era estar exilado, fora da pátria; para o cristão, todo este mundo é um exílio, já que a sua pátria é o céu, para lá se encaminha. Mas, paradoxalmente, qualquer lugar neste mundo é para o cristão uma pátria, pois sabe que está no mundo que é propriedade do seu Pai do céu. O nosso desejo de eternidade não anula as nossas responsabilidades para com esse mundo tão amado por Deus e por cada um de nós. Jesus mesmo mostra aos seus discípulos que deve ser assim quando, diante da proposta de Pedro para fazerem três tendas no monte Tabor, desce para continuar junto com eles a sua missão evangelizadora.
Tendo presente o que foi dito, alguns propósitos concretos para este domingo poderiam ser: trabalhar por Deus, olhar as tribulações e contrariedades como uma benção santificadora do Senhor, fazer muitos atos de esperança (“Senhor, eu espero em ti”), pensar muitas vezes durante o dia que Deus está junto a nós em todos os momentos, viver na certeza de que nós podemos sempre falar com Deus. Ele é nosso Pai.
Se bem é verdade que no relato das tentações, Jesus estava sozinho, aqui, no relato da transfiguração ele encontra-se acompanhado por Pedro, Tiago e João. Há momentos que precisam ser partilhados com os outros, com os irmãos, pois a edificação do próximo muito importa para ajudar-lhe no caminho da salvação. Acompanhemos os nossos irmãos, não os deixemos sozinhos, digamos-lhes sobre a nossa alegria em servir o Senhor, conversemos com eles algo da nossa experiência espiritual. Nós precisamos estar no Tabor, mesmo nos momentos difíceis das tentações, e não naquele deserto horrível na qual o diabo fica fazendo suas propostas absurdas a cada um de nós.
Uma última coisa na qual também é interessante fixar-nos: no fato de que hoje se dá o encontro do Antigo com o Novo Testamento. De fato, a Aliança antiga está muito bem representada por Moisés, o homem da Lei, e Elias, o homem Profeta; a Nova Aliança tem Jesus no centro e ao seu lado os apóstolos Pedro, Tiago e João, precisamente os três necessários para fazer um círculo em torno a Jesus. Até parece que Moisés e Elias vêm depositar suas missões outrora realizadas ao pés de Jesus, deixando claro ao mesmo tempo que o Antigo Testamento era verdadeira preparação para a plenitude do Novo que deveria chegar, isto é, de Jesus, “mediador de uma aliança bem melhor, cuja constituição se baseia em melhores promessas” (Hb 8,6). É maravilhoso entender a própria vocação na história e diante de Deus!
Padre Françoá Costa
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