Homilia do Mons. José Maria – I Domingo da Quaresma – Ano C

Verdadeiro jejum

Na quarta-feira passada, com o rito penitencial das Cinzas, iniciamos a Quaresma, tempo de renovação espiritual que prepara para a celebração anual da Páscoa. Mas o que significa entrar no itinerário quaresmal? O Evangelho deste primeiro domingo (Lc 4, 1-13) ilustra-nos isto, com a descrição das tentações de Jesus no deserto; e nos recorda que nesta vida estamos em perigo e somos tentados e nos dá uma pista de como sair vitoriosos da prova: imitar Jesus! Jesus venceu a tentação, sobretudo, com duas armas: o Jejum (não comeu nada naqueles dias) e o uso da Palavra de Deus (está escrito). 

Não certamente o simples jejum corporal que consiste em se abster do alimento, em dobrar “como o junco a própria cabeça” e usar “saco e cinzas por leito”. Este jejum, por mais útil que seja e por vezes necessário, por si só não basta; é um jejum “preparatório”, no sentido de que deve servir para preparar e tornar possível outro jejum.

Há um outro jejum que os primeiros cristãos denominavam “jejuar do mundo” (Clemente Alexandrino), e é mais profundo e espiritual. Consiste em não nos conformar com a mentalidade deste mundo (Rm 12,2), em abster-se não só das coisas pecaminosas, mas, também daquelas inúteis, supérfluas, que sobrecarregam o espírito, que ligam a alma ao corpo e o corpo à terra. Hoje se poderia atualizar aquela frase de São Paulo com um pequeno acréscimo: não se conformar com a mentalidade “consumista” deste mundo!

Mas também este “jejuar do mundo” é um jejum preparatório; não é ainda colocar o machado à raiz (Mt 3, 10). O jejum verdadeiro, radical, seria jejuar a si mesmo! Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo (Lc 9, 23). “A si mesmo”: esta é a raiz a ser cortada se se quer corresponder seriamente a Deus e ao Evangelho. Assim acontece conosco: pode-se cortar tantas amarras e tantas necessidades: desde o alimento, as coisas, outras pessoas; mas até que não se coloca o machado em nosso velho “eu”, tenaz e egoísta, não se avança um centímetro no caminho do Evangelho; ficamos aquém de uma verdadeira conversão.

Conversão é mudar a atitude do coração, reconhecer que temos necessidade de transformar-nos desde o mais profundo do nosso ser. Significa reorientar os valores, os princípios que movem nossa vida. Converter-se significa escolher os caminhos de Deus. Porém, certos hábitos e apegos impedem de verdadeiramente amarmos a Deus e ao próximo. E para viver bem a Quaresma, devemos viver o jejum, a esmola, a oração.

Se falamos da raiz, então, o que é o machado que deve nos ajudar para esta limpeza? É a Palavra de Deus. É a espada afiada de duplo corte que sai da boca do filho do homem, assim a denomina a Bíblia (Ap 1, 16). A Palavra de Deus é a alma da ascese cristã; ela faz cair coisa inúteis, corta as raízes do homem velho; numa palavra, como diz Jesus, “purifica”: Vós já estais puros pela palavra que vos tenho anunciado (Jo 15, 3). 

A Palavra de Deus é e deve ser um componente essencial da nossa Quaresma. É preciso amá-la ainda mais acolhê-la com avidez. Disse São Paulo: A Palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração, e é verdade: “A Palavra de Deus é a substância vital de nossa alma; ela a alimenta, a apascenta e a governa e não há outra coisa, fora da Palavra de Deus, que possa fazer viver a alma do homem” (Santo Ambrósio). 

Quaresma é para nós um tempo forte de conversão e renovação, em preparação à Páscoa. É tempo de rasgar o coração e voltar ao Senhor. Tempo de retomar o caminho e de se abrir à graça do Senhor, que nos ama e nos socorre. É um tempo sagrado para aprofundar o Plano de Deus e rever a nossa vida cristã. E nós somos convidados pelo Espírito ao DESERTO da Quaresma para nos fortalecer nas TENTAÇÕES, que frequentemente tentam nos afastar dos planos de Deus.

A Quaresma comemora os quarenta dias que Jesus passou no deserto, como preparação para esses anos de pregação que culminam na CRUZ e na glória da Páscoa. Quarenta dias de oração e de penitência que, ao findarem, desembocam na cena que São Lucas narra no cap. 4. É uma cena cheia de mistério, que o homem em vão pretende entender – Deus que se submete à tentação, que deixa agir o Maligno –, mas que pode ser meditada se pedirmos ao Senhor que nos faça compreender a lição que encerra. A Quaresma é como um longo “retiro”, durante o qual cair em nós mesmos e ouvir a voz de Deus, para vencer as tentações do Maligno e encontrar a verdade do nosso ser. Podemos dizer, um tempo de “competição” espiritual para viver juntamente com Jesus, não com orgulho e presunção, mas usando as armas da fé, ou seja, a oração, a escuta da Palavra de Deus e a penitência. Deste modo poderemos chegar a celebrar a Páscoa na verdade, prontos para renovar as promessas do nosso Batismo.

No momento de começar o seu ministério público, Jesus teve que desmascarar e rejeitar as falsas imagens de Messias que o tentador lhe propunha. Mas estas tentações são também falsas imagens do homem, que em todos os tempos ameaçam a consciência, disfarçando-se de propostas convenientes e eficazes, verdadeiramente boas.

É a primeira vez que o demônio intervém na vida de Jesus, e faz isto abertamente. Põe à prova Nosso Senhor; talvez queira averiguar se chegou a hora do Messias. Jesus deixa-o agir para nos dar exemplo de humildade e para nos ensinar – diz São João Crisóstomo –, quis também ser conduzido ao deserto e ali travar combate com o demônio a fim de que os batizados, se depois do batismo sofrem maiores tentações, não se assustem com isso, como se fosse algo de inesperado. Se não contássemos com as tentações que temos de sofrer, abriríamos a porta a um grande inimigo: o desalento e a tristeza.

A narrativa das tentações que Jesus sofreu mostra que Jesus “foi experimentado em tudo” (Hb 4, 15), comprovando também a veracidade da Encarnação do Verbo de Deus.

Diz Santo Agostinho que, na sua passagem por este mundo, nossa vida não pode escapar à prova da tentação, dado que nosso progresso se realiza pela prova. De fato, ninguém se conhece a si mesmo sem ser experimentado, e não pode ser coroado sem ter vencido, e não pode vencer, se não tiver combatido e não pode lutar se não encontrou o inimigo e as tentações.

Por isso, a existência do ser humano nesta terra é uma batalha contínua contra o mal. É esta luta contra o pecado, a exemplo de Cristo, que devemos intensificar nesta Quaresma; luta que constitui uma tarefa para a vida toda.

O demônio promete sempre mais do que pode dar. A felicidade está muito longe das suas mãos. Toda a tentação é sempre um engano miserável! Mas, para nos experimentar, o demônio conta com as nossas ambições. E a pior delas é desejar a todo o custo a glória pessoal; a ânsia de nos procurarmos sistematicamente a nós mesmos nas coisas que fazemos e projetamos. Muitas vezes, o pior dos ídolos é o nosso próprio eu. Temos que vigiar, em luta constante, porque dentro de nós permanece a tendência de desejar a glória humana, apesar de termos dito ao Senhor que não queremos outra glória que não a dEle. Jesus também se dirige a nós quando diz: “Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás”. E é isto o que nós desejamos e pedimos: servir a Deus, alicerçados na vocação a que Ele nos chamou.

O Senhor está sempre ao nosso lado, em cada tentação, e nos diz afetuosamente: “Confiai: Eu venci o mundo” (Jo16, 33). E com o salmista podemos dizer: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; a quem temerei?” (Sl 26, 1).

“Procuremos fugir das ocasiões de pecado, por pequenas que sejam, pois aquele que ama o perigo nele perecerá” (Eclo 3, 27). Como Jesus nos ensinou na oração do Pai Nosso: “Não nos deixeis cair em tentação”; é necessário repetir muitas vezes e com confiança essa oração!

Deus permite as tentações e serve-se delas para nos purificar, para dar-nos maturidade espiritual através da fidelidade e da perseverança, para nos fazer santos, para nos desprender melhor das coisas da terra, para nos conduzir aonde Ele quer e por onde quer.

Contamos sempre com a graça de Deus para vencer qualquer tentação. Usemos as armas para vencermos na batalha espiritual, que são: a oração contínua, a sinceridade com o diretor espiritual, a Eucaristia, o sacramento da Confissão (Penitência), um generoso espírito de mortificação cristã, a humildade de coração e uma devoção terna e filial a Nossa Senhora.

Vale a pena fazer nossa, a oração da coleta do 1° Domingo da Quaresma: “Concedei-nos, ó Deus onipotente, que, ao longo desta Quaresma, possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa.”

Ajude-nos a Virgem Maria para que, guiados pelo Espírito Santo, vivamos com alegria e proveito este tempo de Graça. Guiando-nos no caminho quaresmal, nos ajude a deixar tudo o que nos distrai da escuta de Cristo e da sua palavra de salvação.

Mons. José Maria Pereira

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