Guardar o Domingo: O Exercício da Fé
A Liturgia faz-nos ler hoje os textos da Bíblia que falam do dia de descanso festivo: o “sábado” dos Judeus e o “domingo” dos cristãos. A santificação do dia do Senhor ocupa um lugar privilegiado na Sagrada Escritura.
Tal como lemos em Dt 5, 12 – 15, foi o próprio Deus quem instituiu as festas do Povo escolhido e quem o instava a observá-las: Guardarás o dia do sábado e o santificarás, como te ordenou o Senhor, teu Deus. Trabalharás seis dias e neles farás todas as tuas obras; mas no sétimo dia, que é o repouso do Senhor, teu Deus, não farás trabalho algum…
Além do sábado, existiam entre os judeus outras festas principais: a Páscoa, o Pentecostes, os Tabernáculos em que se renovava a Aliança e se agradeciam os benefícios obtidos. O sábado, depois de seis dias de trabalho nos afazeres próprios de cada um, era o dia dedicado a Deus em reconhecimento da sua soberania sobre todas as coisas.
No tempo de Jesus, haviam-se introduzido muitos abusos rigoristas, o que originou diversos choques dos fariseus com o Senhor, como o que relata o Evangelho de Mc 2, 23 – 3,6. Num sábado, enquanto atravessavam um campo semeado, os discípulos de Jesus começaram a arrancar espigas. Disseram-lhe os fariseus: Olha, como é que eles fazem em dia de sábado o que não está permitido? … Cristo recorda-lhes que as prescrições sobre o descanso sabático não têm um valor absoluto, e que Ele, o Messias, é o Senhor do sábado.
Jesus Cristo teve um grande apreço pelo sábado e pelas festividades judaicas, embora soubesse que, com a sua chegada, todas essas disposições seriam abolidas para darem Iugar a festas cristãs. São Lucas diz-nos que a Sagrada Família ia todos os anos a Jerusalém, por ocasião da Páscoa (Lc 2, 41). Jesus, também, celebrou todos os anos essa solenidade com os seus discípulos. Vemo-lo, além disso, santificar com a sua presença a alegria de um casamento (Jo 2, 1 – 11), e, na sua pregação, emprega frequentemente exemplos de festejos domésticos: o rei que celebra as bodas de seu filho. O banquete pela chegada do filho que havia partido para longe da casa paterna e que retorna (Lc 15, 23). O Evangelho está dominado de uma alegria festiva, sinal de que o noivo, o Messias, encontra-se já entre os seus amigos.
O próprio Senhor quis, pois, que celebrássemos as festas, interrompendo as ocupações habituais, para procurá-lo mediante a participação da Santa Missa e uma oração mais intensa e sossegada, dedicando mais à família e dando ao corpo e à alma o descanso necessário. O domingo é, realmente, o dia que o Senhor fez para o regozijo e para alegria (Sl 117, 24).
A Ressurreição do Senhor teve lugar no “primeiro dia da semana”, como testemunham todos os Evangelistas. E na tarde daquele mesmo dia, Jesus apareceu aos seus discípulos reunidos no Cenáculo, mostrando-lhes as mãos e o lado como sinais palpáveis da Paixão. Oito dias mais tarde, isto é, no “primeiro dia da semana” seguinte, apareceu, de novo, em circunstâncias semelhantes (Jo, 20).
É possível que o Senhor quisesse indicar-nos que esse primeiro dia devia ser uma data muito particular. Os cristãos entenderam-no assim e desde o início começaram a reunir-se para celebrá-lo, de tal modo que o denominavam o dia do Senhor (Ap 1, 10), donde provém a palavra domingo. Os Atos dos Apóstolos e as Epístolas de São Paulo mostram como os nossos primeiros irmãos na fé se reuniam aos domingos para a fração do pão e para a oração, e é isso exatamente o que se continua a fazer até boje (Cf. At 20, 7; 1 Cor 16, 2; At 2, 42).
Diz assim um texto dos primeiros séculos: “Não ponhais os vossos assuntos temporais acima da palavra de Deus, antes, abandonando tudo no dia do Senhor para ouvir a Palavra de Deus, correi com diligência às vossas igrejas, pois nisso se manifesta o vosso louvor a Deus. Que desculpa terão diante de Deus os que não se reúnem no dia do Senhor para ouvir a palavra de Deus e alimentar-se com o alimento divino que permanece eternamente?” (Didaqué, ll, 59, 2 – 3).
Para nós, o domingo deve ser uma festa muito particular e muito apreciada. Mais ainda quando em muitos lugares parece ter perdido o seu sentido religioso. Assim escrevia São Jerônimo: “O Senhor fez todos os dias. Há dias que podem ser dos judeus, dos hereges ou dos pagãos. Mas o dia do Senhor, dia da Ressurreição, é o dia dos cristãos, o nosso dia. Chama-se dia do Senhor porque, depois de ressuscitar no primeiro dia da semana judaica, o Senhor subiu ao Pai e reina com Ele. Se os pagãos o chamam dia do Sol, nós aceitamos de bom grado essa expressão. Nesse dia, ressuscitou a Luz do mundo, brilhou o Sol da justiça”.
Desde o começo, pois, e de uma forma ininterrupta, esta data foi sempre celebrada de um modo muito particular. “A Igreja – ensina o Concílio Vaticano II —, por uma tradição apostólica que tem a sua origem no próprio dia da Ressurreição de Cristo, celebra o mistério pascal cada oito dias, no dia que é chamado com razão «dia do Senhor ou domingo»… Por isso o domingo deve ser apresentado e inculcado à piedade dos fiéis como festa primordial, de maneira que seja também dia de alegria e de libertação do trabalho” (SC, 106).
Começamos a viver bem este dia — quando, desde que acordamos, procuramos imitar a fé e a alegria daqueles homens e mulheres que, no primeiro domingo da vida da Igreja, se encontraram com Cristo ressuscitado. Procuramos então imitar Pedro e João que correm para o sepulcro, ou Maria Madalena que reconhece Jesus, quando Ele a chama pelo nome, ou os discípulos de Emaús…, pois é o mesmo Senhor que nós vamos ver.
E não nos esquecemos de que os nossos primeiros irmãos na fé nos ensinaram que o domingo é inseparável da atenção e da piedade com que devemos participar da Santa Missa, dada a relação íntima e profunda de ambos com o mistério pascal. Por isso, perguntamo-nos se cada domingo é realmente para nós um dia que gira em torno da Missa e se, em função dela, todas as horas que a precedem ou lhe sucedem estão preenchidas pela consideração alegre de que fomos resgatados e somos vitoriosos em Cristo, por cuja morte e Ressurreição nós também já não estamos sob o império da morte, antes somos filhos de Deus.
Para a reevangelização do mundo, é particularmente urgente realizar um apostolado eficaz a respeito da santificação do domingo, um apostolado que penetre nas famílias. Porque há gente que esmorece e chega a perder o espírito cristão por uma maneira errada de descansar nos fins de semana. “É dever dos cristãos a preocupação de fazer que o domingo se converta, novamente, no dia do Senhor, e que a Santa Missa seja o centro da vida cristã… O domingo deve ser um dia para descansar em Deus, para adorar, suplicar, agradecer, pedir perdão ao Senhor pelas culpas cometidas na semana que passou, pedir-lhe graças de luz e força espiritual para os dias da semana que começa” (Papa Pio Xll) e que iniciaremos então com mais alegria e com o desejo de acometer o trabalho com outro entusiasmo.
E poderemos então ensinar muitas pessoas a considerar este preceito da Igreja “não somente como um dever primário, mas também como um direito, uma necessidade, uma honra, uma sorte à qual um fiel vivo e inteligente não pode renunciar sem motivos graves” (São Paulo Vl).
Não se trata apenas de consagrar genericamente o tempo a Deus, pois isso já se contém no primeiro Mandamento. O que este preceito tem de específico é que manda reservar um dia preciso para o louvor e o serviço de Deus, tal como Deus quer ser louvado e servido. Ele pode “exigir do homem que dedique ao culto divino um dia da semana, para que assim o seu espírito, descarregado das ocupações cotidianas, possa pensar nos bens do Céu e examinar, no íntimo da sua consciência, como andam as suas relações obrigatórias e invioláveis, com Deus” (São João XXlll, Mater et Magistra).
O descanso dominical – bem como os demais dias de preceito – não pode ser para nós um tempo de repouso cheio de ociosidade insossa, desculpável talvez em quem não a Deus. “Descanso significa represar: acumular forças, ideais, planos… Em poucas palavras: mudar de ocupação, para voltar depois – com novos brios – aos afazeres habituas” (São Josemaria Escrivá, Sulco, 514). Trata-se de um “descanso dedicado a Deus”, e, ainda que nos nossos dias se vá assistindo a uma grande mudança de costumes, o cristão deve entender que também hoje “o descanso dominical tem uma dimensão moral e religiosa de culto a Deus” .
Os domingos e dias de preceito são ocasião para dedicarmos mais tempo à família, aos amigos, àquelas pessoas que o Senhor nos confia. Para os pais, é a oportunidade, que talvez não tenham, ao longo da semana, de conversar, tranquilamente, com os filhos ou de fazer alguma obra de misericórdia: visitar um parente doente, o vizinho ou o amigo que está só…
Jesus disse ao homem de mão seca: “Estende a mão. Ele a estendeu e a mão ficou curada” (Mc 3, 5). Aquele doente encheu-se de confiança em Jesus e manifestou a sua fé pela prontidão com que obedece ao Senhor.
Tudo é possível com Jesus. A fé permite-nos alcançar metas que sempre tínhamos julgado inatingíveis, resolver velhos problemas pessoais ou eliminar defeitos que estavam arraigados. O poder de Deus não diminuiu. E Ele não pede mais do que podemos dar, e ajuda poderosamente com sua graça.
A vida desse homem curado tomou, certamente, um novo rumo depois do pequeno esforço exigido por Jesus. É o que o Senhor nos pede também na nossa vida diária. Pede que apliquemos, que ponhamos em prática fé, esperança e caridade, diariamente e o dia todo, porque nisto é que reside a essência da conduta de um bom cristão.
A fé é para ser vivida e deve dar forma às pequenas e às grandes decisões, como também deve manifestar-se habitualmente no modo de encarar os deveres e os fatos de cada dia.
O cristão, que vive sua fé, também deve viver de sua fé. Ou seja, sobre ela deve fundamentar a sua vida. Isso significa uma tomada de consciência cada vez mais abrangente e profunda da riqueza e das implicações dessa fé, e, principalmente, um amor a Cristo cada vez mais intenso.
O exercício da fé, na vida, traduz-se naquilo que se denomina “sentido sobrenatural”. Consiste em ver as coisas, mesmo as mais comuns, em função do plano de Deus. É acostumar-se a andar pela vida como que olhando para Deus pelo canto do olho, isso nas decisões, tarefas diárias e fatos agradáveis ou não para ver se a vontade divina é realmente aquela, se é esse o modo como Ele quer que façamos as coisas. “Sentido sobrenatural” é habituar-se a descobrir Deus através das criaturas, adivinhá-Lo por trás daquilo que o mundo chama “acaso”, é perceber seus sinais, avisos e pegadas por toda a parte.
Em cada momento, quem tem fé, ouve o Senhor que lhe diz: estende a tua mão, faz a tua parte. No dia a dia da nossa vida, o Senhor pede honestidade, que não aceitemos perder tempo, que rejeitemos a preguiça, que sejamos mais humildes, que rejeitemos a indecência e a moralidade, quer que façamos apostolado e nos dediquemos a obras de misericórdia. O casamento, a vida familiar, o namoro, a diversão, as férias, o trabalho, o estudo, a vida em comunidade, os projetos e interesses, enfim toda a vida tem que ser vista e vivida a partir de Deus. Ensinou o Papa Bento XVl: “A fé não só olha para Jesus, mas também a partir da perspectiva de Jesus e com os seus olhos: é uma participação no seu modo de ver”.
Deus pede que o sirvamos com a vida, com as obras, com todas as forças do corpo e da alma. A vida deve ser um desdobramento da fé, um viver de acordo com o conteúdo da fé, com aquilo que se sabe ser o querer de Deus para a nossa vida.
A alegria que embargou a alma da Santíssima Virgem, no Domingo da Ressurreição, será também nossa, se soubermos pôr o Senhor no centro da nossa vida, dedicando-lhe os domingos com toda a generosidade.
Que a alegria do Senhor, que gozamos neste dia de festa, seja, de verdade, nossa força para toda a semana!
Mons. José Maria Pereira