EPÍSTOLA (Rm 6, 3-4; 8-11)
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
O BATISMO: Ou ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus para a morte dele fomos batizados?(3). An ignoratis quia quicumque baptizati sumus in Christo Iesu in morte ipsius baptizati sumus. BATIZADOS [ebaptisthëmen<907>=baptizti sumus] aoristo passivo do verbo baptizö, cujo significado é mergulhar, submergir, afundar, inundar e cobrir com água. Não pode ser confundido com baptö<911> usado só 3 vezes no NT e significa molhar como em Lc 16,24 em que o rico pede que Lázaro molhe a ponta do dedo em água para o refrescar. Um outro uso de baptö é quando Jesus responde : aquele a quem eu der o pão molhado esse é o traidor (Jo 13, 26). Um exemplo da literatura médica, tendo como autor Nicander (cerca 200 aC) que diz que para fazer um picles, o vegetal deve primeiro ser lavado [uso do baptö] em água fervendo e logo afundado [uso do baptizö] numa solução de vinagre. De modo que baptizö não é uma simples imersão ou lavado, mas uma permanente submersão. No batismo, o fiel recebe o Espírito de Jesus, como era inicialmente chamado o Espírito Santo. Os primitivos batismos eram feitos em nome de Jesus, tal e como Paulo diz neste trecho e lemos em At 2, 38: E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. Mais tarde foram feitos com a fórmula trinitária como lemos em Mt 28, 19: batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. O resultado do batismo era a inhabitação do Espírito de Jesus que transformava cada fiel em membro de Cristo, como sarmento inserido na videira, recebendo a seiva do tronco comum. Desta total imersão continuada, deduzimos os seguintes pontos: A inhabitação do Espírito Santo permanente; e, portanto, o sinal definitivo, chamado de caráter que consagra o cristão para servir o Senhor como participante na Liturgia, exercendo seu sacerdócio batismal. O selo do Senhor [Dominicus character] é o selo com o qual fomos selados para o dia da redenção (Ef 4, 30). Ungidos por Deus, o qual nos selou e deu o penhor do Espírito em nossos corações (2 Cor 1, 21-22). Como diz S. Irineu, o batismo é o selo da vida eterna. De modo que o batizado deve viver imerso no Espírito Santo que toma posse de seu espírito e o penetra de modo a ser admitido dentro da família de Deus como filho, para poder dizer abbá e ser co-herdeiro com Cristo. Como verdadeira imersão ou afundamento é a morte ao pecado, associados de uma maneira mística, mas real à morte de Cristo, ficando despido do homem velho do pecado (Cl 3,9) para se revestir do novo homem (Ef 4, 24) coisa que Paulo compara com morte e ressurreição, ao modo de Cristo. Paulo assinala duas mortes como reais entre os batizados: Uma primeira morte por causa da morte de Cristo por todos: logo todos estavam mortos (2 Cor 5, 14). Uma segunda morte por causa de que somos, ao sermos batizados, mortos ao pecado que em nós foi perdoado (Rm 6,2 e Ef 2, 1). Logo o batismo é morte e morte com Cristo. E que o batismo é vida nova e ressurreição, Paulo explica nos seguintes versículos: Deus, riquíssimo em misericórdia, nos vivificou juntamente com Cristo (Ef 2, 4-5). Uma morte que foi um sepultamento como simboliza o batismo e realiza ao mesmo tempo [próprio de um sacramento, sinal e realidade], pois sepultados juntamente com ele [Cristo] no batismo, fomos ressuscitados também pela fé da operação de Deus, que o levantou dos mortos (Cl 2, 12). Portanto, -resumirá Paulo- para que como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também nós andemos em novidade de vida (Rm 6,4).
A RESSURREIÇÃO: Fomos, pois, consepultados por meio do batismo para a morte, de modo que como se levantou Cristo dentre os mortos para a glória do Pai, assim também nós em novidade de vida andemos (4). Consepulti enim sumus cum illo per baptismum in mortem ut quomodo surrexit Christus a mortuis per gloriam Patris ita et nos in novitate vitae ambulemus. Paulo continua com a analogia entre o batismo e a morte e ressurreição de Cristo, que, se neste último foi historicamente real, em nós é misticamente realidade como evento interior que relembra o acontecimento histórico de Cristo. No batismo morre o homem velho, descendente do pecador Adão e nasce o homem novo, como surgindo da morte e agora semente nova do novo Adão, Cristo, porque assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo (1Cor 15, 22). Pois se o primeiro adão [Adão= homem] foi feito em alma vivente, o último adão [homem-Cristo] em espírito vivificante (1Cor 15, 45). E segundo este último, serão feitos todos os que nele são batizados, segundo Rm 6,5: porque fomos plantados na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua ressurreição. E esta nova vida e realidade é para A GLÓRIA DO PAI [dia<1223> tës doxes<1391> tou patros=per gloriam patris] Na realidade o grego diz mediante, ou melhor, como instrumento da glória do Pai. De modo que a morte e ressurreição do fiel batizado servem como instrumento para maior glória de Deus. De fato, como diz Paulo, tudo foi e é feito para maior glória de Deus, porque dele e por ele são todas as coisas, glória, pois, a ele eternamente. Amém (Rm 11, 36). Em Gl 1, 5 repete ao qual seja dada glória para todo o sempre. Amém. E em Ef 3, 21: A esse [Deus] glória na Igreja por Jesus Cristo em todas as gerações para todo o sempre . Amém. Nisto, Paulo segue a sua norma que aconselha aos de Corinto: quer comais quer bebais, ou façais outra coisa, fazei tudo para glória de Deus (1 Cor 10, 31). De modo que a norma eterna e motivo de ação da divindade se transformam agora em regra e teor de vida da humanidade, tanto de Cristo, que foi perfeita, como de seus discípulos: Ad maiorem Dei Gloriam, que dirá S. Ignácio. Se antes do batismo foi a necessidade ou o prazer, especialmente do corpo, que dirigia nossos impulsos, agora será a glória de Deus o motivo de nossas intenções. Por isso termina: Assim também nós em novidade de vida andemos.
A MORTE VENCIDA: Pois se somos mortos com Cristo, cremos que também com ele viveremos (8). Si autem mortui sumus cum Christo credimus quia simul etiam vivemus cum Christo. Sabedores de que tendo Cristo surgido dentre os mortos, nunca morre: (a) morte nunca o domina (9). Scientes quod Christus surgens ex mortuis iam non moritur mors illi ultra non dominabitur. Paulo continua a alegoria da morte e ressurreição de Cristo comparando-os com o batismo dos seus fieis. A realidade mística do batismo imita o fato da morte e ressurreição de Cristo. O fim da morte é a ressurreição em ambos os casos. Pois o poder da morte fica anulado uma vez que a vida surge como vitoriosa. Paulo, neste versículo, glosa as palavras de Jesus: Quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á (Mt 10, 39). Morrer com Cristo é optar pela ressurreição com ele para uma vida em que a morte não terá seu principado, mas vencida, dará lugar a uma vida sem fim. Esta ideia de que a vida do cristão é uma imitação da vida de Cristo é dominante na vida do próprio Paulo, que afirma claramente em Gl 2, 20: Estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim. Fato que ele transfere a todo autêntico cristão: Estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestes, em Cristo Jesus (Ef 2, 5-6). E sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos (Cl 2, 12).
A VIDA PARA DEUS: Pois o que morreu, morreu uma vez ao pecado; mas o que vive, vive para Deus (10). Quod enim mortuus est peccato mortuus est semel quod autem vivit vivit Deo. O QUE [o <3739>=quod] é o neutro do relativo os, ë, o; e indica o fato de que, a coisa que, aquilo que; e que poderíamos traduzir por todo aquele que morreu. A Vulgata com o quod sustenta nossa tradução. A tradução direta em espanhol diz: o que morreu para o pecado, coincidindo com a Vulgata. Já as traduções modernas referem tudo a Cristo, seguindo o versículo anterior, e dizem pela sua morte, Cristo morreu para o pecado duma vez (Bible Works). Pois morrendo é para o pecado que ele morreu uma vez por todas (TEB). Pois quanto a ter morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado (Ferreira). For in that he died, he died into sin once (KJV). For the death that He died, He died to sin, once for all (NAS). Que quer dizer Paulo neste versículo? A morte é única: ninguém morre duas vezes. Assim foi com Cristo e assim será conosco. Mas a nova vida é a vida de Deus e esta não tem fim. Esse foi o destino de Cristo e esse será o destino do verdadeiro cristão. Isso o veremos no versículo 11 com mais detalhes.
VIVER PARA DEUS: Assim também vós considerai mortos certamente ao pecado, vivos porém para Deus em Cristo Jesus, o vosso Senhor (11). Ita et vos existimate vos mortuos quidem esse peccato viventes autem Deo in Christo Iesu. Da consideração da morte como uma única vez e da vida como eterna por ser a participação da vida divina, Paulo agora tira as consequências: Pelo batismo nós estamos mortos ao pecado, o que obriga a uma vida de santidade em termos modernos, sendo a figura de Cristo, obediente até a morte e se necessário morte de cruz, modelo e paradigma da vida de todo cristão. Assim se cumprirá o que diz Paulo em Rm 6, 6-8: O nosso homem velho foi com ele crucificado,para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado. Porque aquele que está morto está livre do pecado. Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos.
EVANGELHO (Mt 10, 37-42)
ÚLTIMAS RECOMENDAÇÕES AOS APÓSTOLOS.
(Pe. Ignácio dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: o discurso apostólico termina com dois itens principais: seguimento de Cristo e recompensa aos que ajudarem os que acreditam nele e são seus mensageiros. Respondem ao que muitos pensam o que seja a essência do verdadeiro discípulo: uma doação dupla. A doação de si mesmo a Deus/Pai e a doação de si mesmo aos irmãos. Produto de um amor que se torna base da vida mesma.
O AMOR: Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama filho ou filha mais do que a mim não é digno de mim (37). Qui amat patrem aut matrem plus quam me non est me dignus et qui amat filium aut filiam super me non est me dignus. AMAR [filëö<5368>=amare]. O verbo usado é filëö, da mesma raiz que filos que significa amigo. Em grego temos também Agapáo, que também é usado nas Escrituras, mas com significado um pouco diferente. O primeiro é usado para gostar de, mostrar uma predileção por alguém, amor de amizade. Na setenta fileo aparece 30 vezes, enquanto agapáo 263 vezes e geralmente traduz o hebraico aheb. Deus ama os homens, especialmente o seu povo (Dt 4, 37). No NT o verbo Filëö ocorre 5 vezes em Mateus e 13 vezes em João. No restante do NT só 7 vezes. O substantivo Filos ou Filë se emprega para amigos. Um exemplo do significado original de filëö está em Mt 6, 3: os hipócritas gostam [filousin] de orarem de pé nas sinagogas. Também em Mt 23, 6: Gostam [filousin] do primeiro lugar nos banquetes e nas primeiras cadeiras nas sinagogas, que é usado por Lucas no lugar paralelo em 20, 46. Voltando ao nosso caso, no trecho de hoje traduziríamos: Quem prefere seu pai ou sua mãe a mim, ou talvez no lugar de preferir poderíamos traduzir por estimar. No lugar paralelo Lucas usará o verbo miseö [odiar], traduzindo literalmente o aramaico que não tendo comparativo [mais, melhor] tem que usar um vocábulo contrário como é odiar. Logicamente ao traduzir devemos optar não pelo sentido literal da palavra, mas pelo sentido real dos fatos: preferir ou gostar mais. Jesus mesmo teve que fazer uma opção em sua vida: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? Para terminar quem são seus discípulos. Eles são a nova família porque eles fazem a vontade do Pai, exatamente como Jesus a cumpria (Mt 12, 48-50). Por isso os primeiros discípulos abandonaram tudo, rede, barco e pai (Mt 4, 20-22). Mas esta situação não vai contra ao primeiro mandato da segunda tábua da lei: Honra teu pai e tua mãe (Êx 20, 12), em que a LXX traduz por Tima do verbo timaö [respeitar]. O versículo que estamos comentando está na ordem de Gn 2, 24: Um homem deixa seu pai e sua mãe e se une à sua mulher. Os comentaristas destacam que hoje o cristianismo entre os paises ocidentais é motivo de união entre os membros da família e que nos tempos dos apóstolos era, pelo contrário, motivo de desunião. O versículo 37 sugere que se existe um conflito entre seguimento de Cristo e fidelidade à família, temos que optar por Cristo. Já o filósofo Epicteto afirmava: o bem deve estimar-se mais do que qualquer parentesco. A exegese deste versículo segue a lógica do amor segundo a escritura: Deus, pai, mãe, filhos com base nas duas tábuas da Torá. Miquéias afirma: O filho insulta o pai, a filha levanta-se contra a mãe, a nora contra a sogra, os inimigos do homem são as pessoas e sua casa (Mq 7, 6). Por isso dirá Mateus que o amor a Deus é o maior mandato e o amor ao próximo [logicamente o primeiro próximo são os pais] é o segundo preceito (22, 28). Calvino encontra aqui um argumento para propor uma ética de atitudes no lugar de uma ética de ação. Neste versículo os católicos encontram a razão do monacato e, como consequência, a do celibato sacerdotal. Evidentemente em ambos os casos a escolha de Cristo colocou em segundo termo o amor natural humano. O abandono da família é sinal do caminho perfeito; permanecer com os pais é sinal da simples vereda. Assim o expressou Jesus ao dizer ao rico: se queres ser perfeito [escolher o melhor caminho], vem e segue-me (Mt 19, 21). Jesus se coloca no lugar de Jahvé. Somente o Criador poderia exigir de um judeu semelhante devoção excludente de todo amor humano, até o mais sublime.
A CRUZ: E quem não toma a sua cruz e vem após mim, não é digno de mim (38). Et qui non accipit crucem suam et sequitur me non est me dignus. CRUZ [staurós<4716>=crux] em grego se emprega a palavra Xilon originariamente madeira, para logo tomar o significado de poste, árvore e cruz. E também Staurós com o significado de estaca, que era o madeiro vertical do que chamamos cruz. Como aqui a palavra usada é staurós, vejamos seu significado próprio. Da palavra temos o verbo stauróö que significa pendurar numa cruz ou crucificar. O significado original de staurós é, pois, estaca; porém mais especificamente a palavra foi usada para significar o castigo de empalar um réu, quer fosse atravessando-o numa estaca, quer pendurando-o num madeiro que poderia ser uma árvore ou um poste, afincado no lugar do suplício. Este poste recebia o nome de Stipes em latim. Na cultura romana o stipes estava sempre no lugar escolhido para o castigo dos réus. Além disso, existia um madeiro ao qual estavam atadas as mãos e era denominado Patibulum que era colocado transversalmente ao stipes formando uma T e recebia o nome de crux commissa [sobre posta], ou em forma de + como crux immisa [encaixada]. Nos tempos de Jesus a cruz era um tormento especialmente utilizado para punir crimes de Estado, como rebelião ou insurreição. O condenado carregava o patibulum amarrado aos seus braços sobre os ombros. Daí a expressão TOMAR ou agarrar a cruz [lambano ton stauron] que no latim era traduzido por tollere crucem [carregar a cruz]. No caminho da crucificação, o réu principal era acompanhado por outros que o seguiam, carregando sua cruz [seu patíbulo] e amarrados ao líder numa procissão macabra. Quando chegavam ao lugar em que estavam as estacas dos estipes, os patíbulos eram levantados, até encaixar as duas estacas, formando a cruz. A morte vinha devagar após horas ou dias de agonia extrema, provavelmente por exaustão ou sufocação. Entre os judeus foi Alexandre Janeu (103-76 aC.) quem ordenou uma execução em massa, pendurando homens vivos em estacas. Mas não era o costume judaico. Por isso, para a crucifixão Jesus será entregue nas mãos dos pecadores [gentios] (Mc 14, 41 e Lc 24, 7). O que Jesus significa com a expressão quem não tomar a cruz é que quem não está disposto a receber a máxima vergonha e a receber o mais cruel dos castigos, acompanhando o seu Mestre no caminho do suplício, não é digno de ser verdadeiro discípulo. A cruz era o maximum et crudelissimum suplicium [máximo e o mais cruel dos suplícios]. A cruz serve para ditar uma renúncia ainda mais radical: a de si mesmo. É o que Mateus afirma em 16, 24 referindo-o a todo discípulo: negue-se a si mesmo. Era o início dos escândalos que acompanhariam os primitivos cristãos.
A VIDA: Quem encontrou sua vida perdê-la-á. E quem perdeu sua vida por mim encontrá-la-á (39). Qui invenit animam suam perdet illam et qui perdiderit animam suam propter me inveniet eam. A cruz era o termo de uma vida que acabava em maldição (Dt 21, 23) essa maldição que Javé propunha em Dt 30, 15-20: a vida ou a morte, a bênção ou a maldição, dependendo de guardar os mandamentos, ou de servir outros deuses, em cujo caso a perdição era o resultado dessa deserção de Jahvé. A esta proposta de Jahvé responde a proposta de Jesus. Aparentemente a vida é perdida na morte de cruz, mas na realidade ela é salva para a eternidade. A tradução do versículo segundo o grego é: Quem encontrou sua ALMA [vida na realidade] a perderá; quem perdeu sua alma por minha causa, a encontrará (39). Colocamos os verbos no tempo aoristo [passado pontual] ao contrário das traduções em vernáculo: acha e perde em presente. O latim conserva o verbo nos tempos originais: invenit e perdiderit. Somente o inglês de tradução direta [has found e has lost] e o italiano [avrá trovato e avrá perduto] parecem respeitar os tempos do grego original. O espanhol moderno usa o subjuntivo encuentre e pierda que aponta a um futuro e não a um passado. A tradução psychë por vida é unânime em todas as traduções a exceção do latim que usa anima. Mas já vimos em nosso comentário do domingo anterior que essa tradução de psychë por vida é a mais apropriada. Consequentemente o significado mais lógico é: Quem encontrou sua vida a perderá e quem perdeu sua vida por mim a encontrará. A explicação é possível pelo que temos dito no parágrafo anterior. Outra coisa é o lugar paralelo de Mt 16, 24-25. Neste caso a negação a si mesmo é a base da posterior explicação e não a cruz que é consequência do seguimento de Jesus. E nesta ocasião, também é o querer salvar a vida ou perder a mesma, um presente visando um futuro talvez escatológico. Esta mesma conclusão é a de Lucas em 17, 33 em que emprega o aoristo na forma subjuntiva: quem tivesse querido seria a tradução, que a tradução latina conserva [quaesierit e perdiderit]. Como conclusão final, vamos traduzir de um modo mais concreto a frase de Jesus: Todo aquele que pretende ou tem a intenção de viver sua vida conforme suas conveniências, caprichos, desejos e apetites, ou seja, colocando seu ego como meta e objetivo, está perdendo o tempo, está esbanjando a vida. Porém, aquele que, abandonando sua própria escolha como última opção deixa o controle de sua vida em minhas mãos [de Jesus], esse está vivendo a verdadeira vida e aproveitando seu tempo. Especialmente nos tempos apostólicos a vida era a escolha entre os que materialmente a perdiam como mártires e os que renegavam a fé para poder viver. Era uma escolha entre a vida temporal e a vida eterna.
O RECEBIMENTO: Quem vos recebe, a mim recebe; e quem me recebe, recebe a quem me enviou (40). Qui recipit vos me recipit et qui me recipit recipit eum qui me misit. Quem recebe um profeta na índole de (porque) profeta, receberá a recompensa de um profeta; e quem recebe um justo na qualidade de justo receberá a recompensa de um justo(41). Qui recipit prophetam in nomine prophetae mercedem prophetae accipiet et qui recipit iustum in nomine iusti mercedem iusti accipiet. Se até agora o discurso era dirigido a seus enviados ou apóstolos, agora Jesus dirige suas palavras aos conterrâneos em forma geral: O objeto porém de suas palavras são os discípulos e sua categoria como enviados, de modo que os compara com profetas e homens santos [justos] ou amados de Deus. Jesus enumera atos que merecem uma recompensa segundo o sentir de seus conterrâneos. Receber tem o significado de acolher. Receber e hospedar um profeta, porque se acredita nas suas palavras, e fazer outro tanto com um homem santo, porque nele vemos o exemplo do que deve ser a nossa vida, tem uma recompensa. Os que tal fazem recebem o prêmio devido a um profeta ou a um homem de Deus. No AT temos os exemplos de Elias e Eliseu que receberam ajuda de duas mulheres às quais logo ajudaram (1 Rs 17, 10 e 2 Rs 4, 6). Jesus diz que quem recebesse a um dos seus apóstolos é como se recebesse a ele mesmo e através de Jesus a quem o enviou [o Pai].
O COPO D’ÁGUA: E quem der a beber a um destes pequenos só um copo d’água fria, porque discípulo, certamente vos digo: não perderá a sua recompensa (42). Et quicumque potum dederit uni ex minimis istis calicem aquae frigidae tantum in nomine discipuli amen dico vobis non perdet mercedem suam. E que é receber um discípulo de Jesus? Basta ter dado um copo d’água fresca, que não era nunca negado a um visitante no Oriente. Jesus fala do copo d’água fresca que foi o pedido feito por Elias à viúva de Sarepta (1Rs 17, 10). Em Mateus encontramos lugares paralelos como quem recebe uma criança em seu nome é a ele [Jesus] que recebe (Mt 18, 5). Receber tem o significado de ajudar como se faz com uma criança ou com um necessitado (Mt 25, 40). Modernamente esta frase devia ser causa de profunda reflexão para muitos pais que preferem o aborto ou a pílula, para ficarem livres dos compromissos que uma vida nova traz a toda família que, de receber a mesma, ver-se-ia obrigada a aceitar. PEQUENOS [mikroi <3398> =minimi.] Os rabinos judeus chamavam a seus discípulos de filhos, porque estes chamavam seus mestres de pais (Mt 23, 9). E como filhos, também recebiam o nome de pequenos ou pequeninos, nome dado pelo mestre correspondente. Vemos como Jesus fala dos pequenos [mikroi] que creem nele (Mt 18, 6) e que afirma ser a vontade do Pai que nenhum desses pequenos [mikroi] se perca (Mt 18 14). Jesus mesmo dirá que os seus seguidores devem se tornar como crianças [paidiai] (Mt 18, 3) para entrarem no Reino, ou seja, como aqueles que nada têm nem sabem e estão dispostos a escutar e obedecer a voz do mestre. Todo discípulo, pois, do Senhor é verdadeira criança, um pequenino para ele; e assim Jesus o ama e o ensina e guarda (Mt 18, 14). RECOMPENSA [misthos<3408>=merces]. Deste parágrafo autores católicos derivam o mérito como recompensa sempre que os atos se realizarem em nome de Cristo a quem representam seus enviados, as crianças e os necessitados. Pois de ambos disse Jesus: quando fizestes a um destes meus pequeninos [elachistos] irmãos, a mim o fizestes (Mt 18,5 e 25, 40; 45). Embora muitos dos comentários dizem serem os necessitados os pequeninos do capítulo 25, parece ser mais conforme ao sentir de Jesus que eles sejam os discípulos socorridos em tal estado de necessidade.
PISTAS: 1) Podemos dizer que o evangelho de hoje é uma espécie de discurso de formatura para os apóstolos. São mandatos e conselhos dados aos mesmos antes de sua primeira missão em vida de Jesus. A maioria era válida nos tempos apostólicos e são eternos por sua absoluta vigência, que os torna sempre atuais. Tais o amor exigido, a renúncia, a cruz, o desprendimento da vida, o prêmio dado a quem ajuda e acolhe os enviados do Reino.
2) É lógico que Jesus exige a obrigatoriedade do quarto mandamento que ele diz ser mandamento de Deus (Mc 7, 9-10). Porém quando existe uma contradição entre o mandato de obedecer a Deus e a honra devida aos pais, Jesus declara que aquele é prioritário. Na hierarquia de valores Deus é o valor supremo.
3) A cruz devia ser entendida como verdadeira na vida de Jesus, mas como uma forma simbólica de sofrimento e humilhação para a maioria de seus discípulos. Especialmente o sofrimento de serem tratados como a vergonha da humanidade, que Paulo denominou de lixo do mundo e escória do universo (1 Cor 4, 13). Hoje será a ciência e o progresso que nos julgam de semelhante maneira, e ante os quais devemos afirmar que é nessa fragilidade onde se encontra a fortaleza de Deus (2 Cor 12, 10).
4) Segundo os neoplatônicos todo homem está formado de três partes essenciais: soma [corpo], psychë [alma] e nous [mente ou espírito].O soma mais a psychë é o composto próprio dos seres vivos[animais] e seria também a base da vida de uma criança que se distingue do adulto porque neste opera também o nous ou espírito. Daí que no mundo judaico da época de Jesus se podia falar de uma vida [psychë] temporária e de uma vida eterna. O corpo que naquela predomina nesta última não aparece. Perder aquela para salvar a última é a coisa mais razoável que Jesus propõe como necessária aos seus discípulos.
5) O versículo 42 é a melhor refutação da crença evangélica que afirma não existir mérito e, portanto, não pode existir prêmio. Como explicam eles esta declaração de Jesus de que até o menor gesto como é de dar um copo d’água não perderá sua recompensa?