Comentário Exegético – XXIX Domingo do Tempo Comum – Ano B

EPÍSTOLA Hb 4, 14-16

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

INTRODUÇÃO: O autor toma como base de seu argumento homilético a imagem de Cristo como Sumo Sacerdote. A diferença entre o antigo Sumo sacerdote e o Cristo da nova era está na natureza dos dois pontífices: o antigo era pecador e seu ato servia também para ele; a entrada era num templo material que representava, mas não constituía, a presença da divindade; sua função era anual e só podia ser exercitada durante uma vida humana, curta e temporal. O novo Pontífice entrava no verdadeiro templo, no santuário próprio da divindade. Sua entrada, única e atemporal, era uma presença sempre atual e sua intercessão era a máxima; pois, sendo sem pecado, era o justo que ofereceu sua vida em propiciação pelos homens. Seu sangue era o sangue do homem oferecido em preço pelas dívidas do pecado. E pelo que se refere aos homens, ele era o mais apropriado a se compadecer do homem caído, pois experimentou, como homem, todas as dificuldades e necessidades para poder apresentar as mesmas a Deus como um mendigo apresenta suas necessidades ao rico que o observa. Nele temos a confiança que a nossa fé aviva e proporciona.

SUMO SACERDOTE: Tendo, pois, um sumo sacerdote [archierea megan<749> <3173>=pontificem magnum] que atravessou [dielëluthota<1330>= penetravit] os céus, Jesus, o Filho de(o) Deus, seguremos [kratömen <2902> = teneamus] a confissão [omologias<3671>= confessionem] (14). Habentes ergo pontificem magnum qui penetraverit caelos Iesum Filium Dei teneamus confessionem. SUMO SACERDOTE: A palavra Archiereus <749> sai 123 vezes no NT. Em plural significa chefes sacerdotais [principes sacerdotum] e em singular chefe dos sacerdotes ou sumo sacerdote [princeps sacerdotum]. Os chefes sacerdotais eram além do Sumo Sacerdote ou Sumo Pontífice, todos os que tinham conseguido esse título que em tempos de Jesus não era vitalício, além dos chefes das principais famílias sacerdotais que tinham direito a estar no Supremo Tribunal, ou Sinédrio. Como exemplos do 1º significado temos Mt 26, 24 e do 2º significado temos Mt 26, 57, sendo que neste último caso se refere a Caifás. De modo especial em Hebreus a palavra archiereus sai 17 vezes das quais 15 em singular e sempre traduzidas por Pontifex na Vulgata e nas outras duas, em plural, por sacerdotes. Entre os romanos, Pontifex era o magistrado que presidia os ritos religiosos e os sacrifícios. O termo PONTIFEX literalmente significa construtor de pontes. Em Roma as pontes estavam sobre o rio Tibre [rio sacro, considerado uma deidade]. Por isso, unicamente as maiores autoridades estavam autorizadas a ir contra sua corrente ou vontade, não o atravessando a pé molhado; pelo contrário, interrompendo sua ação benéfica, como é a d’água no corpo. Assim, precisava-se de um sacerdote que aplacasse a ira do rio. Em Roma existia o Collegium Pontificum, ofício mais importante entre os sacerdotais, com o objeto de servir ao Rei como conselheiro em tudo o concernente à Religião [tempos de Numa]. O chefe do Colégio era o Pontifex Maximus de cargo vitalício. Antes de se fundar esta instituição todos os seus cargos e ofícios eram assumidos pelo rei. Durante a República os romanos criaram o Rex Sacrorum, para executar as tarefas religiosas que antigamente pertenciam ao rei. Mas este rei das coisas sacras não podia ter qualquer cargo político ou assento no senado. Este rei sacrorum foi logo subordinado ao Pontifex Maximus como garantia de que não pudesse optar à tirania. Durante a República, o Pontifex maximus escolhia os flamines [sacerdotes especiais vinculados a Júpiter, Marte e Quirino] e as Vestais [virgens que cuidavam do fogo sagrado da Diosa Vesta no foro romano]. O Pontífice Máximo residia na Domus Pública  perto da casa das Vestais. Não podia usar a toga praetexta [com borda púrpura] e era reconhecido pela secespita [faca do sacrifício] a patera [copa] e um manto que cobria a cabeça. Escolhido entre os Pontífices (de 5 a 15, segundo a época) o Pontífice Máximo recebia o cargo por toda vida. Júlio César e seu sobrinho César Augusto chegaram a ser Pontífices Máximos. No caso dos judeus, existiam na prática dois Sumos Pontífices: O escolhido pelo procurador romano [no caso de Jesus naquele ano, era Caifás]  e o escolhido pelo grêmio sacerdotal a quem davam o nome de Sagan. O Sagan era o chefe [ou princeps=principal, caudilho, chefe, cabeça, primeiro, príncipe] dos sacerdotes e politicamente mais influente que o Sumo sacerdote anual, pois este dependia dos governadores romanos e aquele era praticamente vitalício e dependendo do colégio sacerdotal. À parte do Sagan, o Sumo Sacerdote era auxiliado por diversos funcionários, todos provenientes das famílias mais importantes: o comandante do Templo, os chefes das 24 equipes semanais, os sete vigilantes, três tesoureiros. Além do sacerdote supremo, existiam cerca de 7 mil outros sacerdotes divididos em 24 equipes que se revezavam nos serviços do Templo. Em média, cada sacerdote atuava cinco vezes por ano. Recebiam salário, que provinha dos sacrifícios e do dízimo. A função sacerdotal era hereditária. Por isso Lucas fala de sob os sumos pontífices Anás e Caifás (TEB), [epi archiereös = sub principibus sacerdotum] (3, 2). O ministério especial do Sumo Sacerdote [Kohen Gadol=sacerdote grande (o hebraico não tem superlativo] consistia, de modo especial,  em celebrar os ritos do Yom Kipppur [dia da expiação]. Somente ele entrava uma vez cada ano no santo dos santos, oferecendo o sangue do macho cabrito como expiação dos pecados do povo. O grego do versículo [archierea megan] parece uma tradução literal do nosso Kohen Gadol, talvez indicando que a carta foi escrita em aramaico, ou por um judeu cuja língua materna era essa mesma. ATRAVESSOU OS CÉUS: Jesus, como Cristo, se tornou Sumo Pontífice [Kohen Gadol] e teve que realizar esse ato de entrar no Santo dos santos [Kodesh Hakodashim ] para expiar os pecados do povo. Só que Cristo foi constituído Sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec (Hb 6, 9), ou seja, in aeternum e no lugar de entrar num templo feito por mãos humanas, entrou no templo que não foi desta criação (9, 11). Ofereceu-se a si mesmo, não para oferecer sangue alheio, mas seu próprio sangue (9, 25). E o fez uma só vez, não todos os anos (9, 11 e 25). Paulo dirá que Cristo foi proposto como propiciação [vítima expiatória] para obter por seu sangue o perdão dos pecados (Rm 3, 25). Neste versículo, o autor da carta explica qual foi o tabernáculo: os céus. E nesta entrada, junto ao trono de Deus, permanece eternamente nesse seu ofício de sacerdote,  intercedendo por seu povo (2, 17). SEGUREMOS A CONFISSÃO: O verbo grego Krateö<2902> significa ser forte, dominar, apanhar  ou agarrar, segurar, manter firme, que a Vulgata traduz por teneamus significando agarrar com a mão, distinto do habitual habeamus, que é um simples ter. Omologia<3671> é acordo, confissão, pacto, profissão de fé, crença. Poderíamos traduzir por mantenhamos firme nossa crença (nEle) ou talvez mantenhamos firme o Kerigma que a Igreja propunha como verdade revelada. A razão é que foi visto subir e os anjos deram testemunho de que ele estava no céu (At 1, 11)  e que essa subida é continuação do seu trabalho na terra, como veremos nos versículos seguintes.

SEMELHANTE A NÓS: Pois não temos um Sumo Sacerdote sem poder [dunamenon<1410>=qui non possit] compadecer-se [sumpathësai<4843>=compati] com nossas fragilidades [astheneiais <769> =infirmitatibus]; pois tentado foi [pepeiramenon<3987>=temptatum] em tudo segundo nossa semelhança [omoiotëta <3665> = similitudine], fora de pecado [amartias<266>=peccato] (15). Non enim habemus pontificem qui non possit a conpati infirmitatibus nostris temptatum autem per omnia pro similitudine absque peccato. A palavra  grega Astheneia<769> originariamente significa falta de força ou energia. De onde fraqueza, deficiência, debilidade. Tudo que tem limitações e imperfeições foi também suportado por esse Sumo Sacerdote nosso. Uma única exceção na semelhança: O pecado. Já Paulo o afirmava: Em condição semelhante à de um homem pecador… para condenar o pecado em sua mesma natureza humana (Rm 6, 3). Porque, despojado de sua existência como Deus, tomou a figura de um escravo, tornando-se semelhante a um homem e reconhecido em figura humana (Fp 2, 7). Fato ressaltado pelo autor em 2, 7: Convinha que em todas as coisas se tornasse semelhante aos irmãos para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo. FORA DO PECADO: Paulo também fala a mesma linguagem quando diz: A  quem não conheceu o pecado Ele o identificou com o pecado por nós a fim de que por ele, nos tornemos justiça de Deus (2 Cor 5, 21).  E também: Deus enviando seu próprio Filho na condição da nossa carne de pecado, condenou o pecado na carne (Rm 8, 3). Sendo sem pecado, tomou como se fazia no AT, os pecados de todos e como bode expiatório o caper emissarius da Vulgata, bode emissário de Levítico 16, 8-10, ou bode expiatório, que recebe o nome de Azazel, palavra escura, que não aparece em nenhuma outra parte da Bíblia hebraica; este bode recebe os pecados do povo e é largado no deserto. O outro bode é morto em sacrifício e com o seu sangue, o sumo sacerdote entra no Santo dos Santos e faz aspersão sobre o propiciatório para o perdão dos pecados dele mesmo e do povo. É assim que Cristo entrou com seu próprio sangue no Santo dos Santos para se tornar propiciação pelos pecados do povo, obtendo uma libertação definitiva (Hb 9, 12).

COM CONFIANÇA: Portanto, aproximemo-nos com coragem [parrësias<3954>=fiducia] ao trono da mercê [charitos<5485=gratiae] para recebermos misericórdia [eleon<1656>=misericordiam], e graça [charin<5485>= gratiam] encontrarmos em favorável [eukarion<2121>=oportuno] auxílio [boëtheian <996>=auxilio] (16). Adeamus ergo cum fiducia ad thronum gratiae ut misericordiam consequamur et gratiam inveniamus in auxilio oportuno. CORAGEM: A parrësia<2121> grega que o latim traduz como fiducia, pode ser traduzido por sem medo, com atrevimento, com plena confiança. TRONO DA MERCÊ: Mercê é uma tradução do grego Charis <5485> que tem vários sentidos em grego. Neste caso, equivale ao dom de Deus, enquanto recebido pelo homem como amor, benevolência, misericórdia, fidelidade, favor, bênção, e, finalmente, salvação e vida eterna. Paulo diz em Rm 11, 6: Deus fêz-lo por pura generosidade [charis] e não por méritos humanos; pois se não fosse assim, não poderíamos falar da generosidade [charis] de Deus. Essa mercê é o perdão e por isso recebemos, em primeiro lugar misericórdia [eleos] e logo favores [charis]. AUXÍLIO FAVORÁVEL: Eukairos<2121> é um adjetivo que significa oportuno, favorável e boëtheia <996>  significa auxílio, ajuda, socorro. Que significa auxílio favorável? Pois que seja um auxílio necessário e conforme aos desígnios de Deus.

EVANGELHO  (Mc 10, 35-45)

(lugar paralelo Mt 20, 20-28)

OS FILHOS DE ZEBEDEU

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

O PROTAGONISTA: Em Mateus 20, 20-28, temos uma relação paralela com uma diferença: quem pede os postos de honra no novo Reino é a mãe dos dois apóstolos, Tiago e João, junto com seus dois filhos. O nome dela era Salomé [=perfeita], mulher do Zebedeu, forma grega de Zebadias ou Zabdiel [= Jahvé deu]. Zebedeu era um pescador da Galileia com bens suficientes para ter serventes ou jornaleiros a seu serviço (Mc 1, 20) e suficientemente rico, para um dos filhos, João, ser conhecido pelo Pontífice (Jo 18, 15), quem ao mesmo tempo podia, sem dificuldades, tomar em sua casa a mãe de Jesus (Jo 19, 27). Salomé era uma das mulheres que servia o colégio apostólico e que estava subindo com Jesus a Jerusalém (Mt 27, 55-56). O silêncio que os evangelistas guardam sobre o pai, Zebedeu, seria talvez devido à sua morte pouco depois do encontro com Jesus na Galileia quando este teria feito o chamado a seus dois filhos (Lc 5, 10). Os antigos pensavam que Salomé estava aparentada com Jesus através de Zacarias, o esposo de Isabel, esta por sua vez parenta de Maria (Lc 1,36). Se isso for verdade, explicaria algumas das coisas que veremos na continuação.

     O PEDIDO: Então aproximam-se dele Jacob [Iaköbos<2385>=Iacobus] e João [Iöannës <2491> Iohannes], os filhos de Zebedeu [Zebedaiou<2199>Zebedaei] dizendo: Mestre, queremos que faças por nós tudo o que vamos pedir (35). Et accedunt ad illum Iacobus et Iohannes filii Zebedaei dicentes magister volumus ut quodcumque petierimus facias nobis. Assim como a Pedro, Jesus mudou o nome do pai dos dois irmãos e deu a eles o sobrenome de filhos do Trovão, ou Boanerges, que correspondia a filhos da voz de Deus, ou seja, da sua vingança (1 Sm 2, 10). Pelo que respeita ao nome de Jacob este filho do Zebedeu é chamado de Jacobo, o maior, para distingui-lo do outro Jacobo, o menor, filho de Alfeu. Jacob é de origem hebraica  e de significado suplantador, como foi chamado o segundo filho de Rebeca e Isaac, gêmeo de Esau. Jacobo seria sua tradução direta ao espanhol; porém têm muitas variantes, como Giacomo, Jacme em provençal do qual se deriva James em inglês, Jaime em espanhol. Da pronúncia Santi Jacobi, no latim adulterado da Idade Média temos Santiago nome que deu origem a Tiago ou Diago e daí Diego. Iöannes: do hebraico Iochanan [Jahveh favoreceu] era o nome de um sacerdote durante o Pontificado de Joaquin, que voltou junto com Zorobabel. O nosso João era irmão menor de Tiago, e como este filho do Zebedeu e segundo a tradição, o autor do quarto Evangelho Segundo Mateus, foi precisamente a mãe, de nome Salomé (Mt 27, 56, comparado com Mc 15, 40) quem, no lugar de seus filhos, prostrou-se em reverência para o pedido (Mt 20, 20).

    JESUS PERGUNTA: Jesus, pois, disse-lhes: Que quereis que eu vos faça? (36). Eles então lhe disseram: dá-nos que um à direita e um à esquerda tua estejamos sentados [kathisömen <2523>=sedeamus] na tua glória [doxë <1391>=gloria] (37). At ille dixit eis quid vultis ut faciam vobis. Et dixerunt da nobis ut unus ad dexteram   tuam et alius ad sinistram tuam sedeamus in gloria tua. Segundo Mateus, é a mãe que pede para seus dois filhos e no lugar da glória [doxa] é o Reino. Quer seja diretamente, quer através e junto com a mãe, o que é mais natural, os dois pediram os postos de maior relevância no Reino que pensavam Jesus ia instaurar em Jerusalém, para onde se dirigiam. O seu modo de julgar, tanto da mãe como dos filhos, era totalmente humano, como se o novo reino fosse um Reino temporal e geográfico ao modo dos reinos que eles conheciam. Por isso dirá Jesus: “sabeis que os que são considerados príncipes dos gentios os dominam” (42). Sua maneira de pensar era a dos judeus da época que pretendiam um reino davídico de dominação, ao estilo romano. Se realmente Salomé fosse parenta indireta de Jesus, como dizem certos comentaristas, seu pedido e sua atuação não seriam tão inusitados e desmedidos. O parentesco, nos tempos de Jesus, era motivo e razão de prerrogativas especiais por parte dos que Jesus chama grandes da política e da sociedade (42). Objetar-se-á que Pedro tinha sido louvado e preferido como chefe da comunidade (Mt 16, 16). Porém em Marcos (8, 27-30) existe a confissão de Pedro mas não o prêmio pela mesma como em Mateus (16, 17-18), ou Lucas (9, 18-21). Somente Mateus parece incorrer em certa falta de lógica ao permitir que a mãe e filhos peçam um lugar que já foi destinado por Jesus como sendo de Pedro. Porém, a recusa de Jesus diante da tentação de Pedro, a quem chama de Satanás, no capítulo 16, parecia indicar que o primado de Pedro tinha sido rebaixado. A transfiguração, chamando os três discípulos, mostrava uma certa predileção sobre os dois irmãos até o ponto deles, os filhos do trovão (Boanerges em Mc 3, 17), pedirem ao Senhor licença para lançar sobre uma aldeia samaritana fogo do céu (Lc 9, 54) nessa última viagem a Jerusalém, como Elias em 2 Rs 1, 10-12. Tinham, pois, motivos aparentes e suficientes para o pedido que estavam fazendo a Jesus: Assentar-se um à direita e outro à esquerda do trono de Jesus quando este estivesse na sua glória, isto é, como Messias triunfante. A ele se dirigem como o novo rei de Israel que em Jerusalém vai iniciar o Reino. De Ciro, rei da Pérsia, se conta que preferia colocar seus hóspedes mais honrados à esquerda, pois era o lugar do coração. Não eram só privilégios (ver 1 Rs 2,19). Eram também verdadeiros ofícios em que o poder real era exercido através dos ministros. O Salmo 110, 1 fala do Messias como convidado por Jahvé, para se assentar à direita do trono divino. Isso significava participar do poder e da dignidade de quem o honrava. O Messias era assim solicitado para compartir do poder e da dignidade de Jahvé. Jesus utiliza o salmo davídico com interpretações messiânicas para confundir a ciência dos fariseus que não souberam responder por que Davi chama Senhor ao messias sendo que este era filho ou descendente dele e, portanto, inferior a ele próprio (Mc 12,35-37). Já o título de Boanerges, que Jesus deu aos dois irmãos indica que eram caracteres fortes, inclinados a comandar. Pediam, pois, o que naturalmente sentiam como vocação.

RESPOSTA DE JESUS: Jesus, então, lhes disse: Não conheceis que pedis. Podeis beber a copa [potërion <4221>=calicem] que eu bebo e o batismo [baptisma <908>=baptismum] (em) que eu sou batizado, ser batizados? (38). Iesus autem ait eis nescitis quid petatis potestis bibere calicem quem ego bibo aut baptismum quo ego baptizor baptizari. Jesus responde de maneira fina, sem indignar-se por um pedido aparentemente desmedido e imprudente. “Não sabeis o que estais pedindo”. E explica na continuação como ele deve adquirir isso que eles chamam de glória do Reino: um sacrifício de amargura e sangue. Um cálice que deve beber e um batismo em que deve ser submergido. O COPO: Poterion<4221>. Era o cálice da vingança divina frequentemente apresentado pelos profetas. O Senhor tem uma copa na mão. Nela derrama um vinho fermentado e bem misturado e obriga a bebê-lo a todos os malvados da terra até a última gota (Sl 75, 9-10). Em Is 51, 17 lemos: Desperta. Desperta, levanta-te ó Jerusalém que da mão do Senhor bebeste o cálice da sua ira, o cálice do atordoamento e o esgotaste. Em Jeremias 25, 15: Porque assim me disse o Senhor, o Deus de Israel: Toma de minha mão este cálice do vinho de meu furor e darás a beber dele a todas as nações às quais eu te enviar. Ou Ezequiel 23, 31-33: Seguiste (Jerusalém) o caminho de tua irmã (Samaria). Por isso entregarei o seu copo na tua mão… beberás o copo de tua irmã, copo fundo e largo.. copo de espanto e desolação. Era, pois, o cálice de vingança, cólera e indignação. Esse era o cálice que por três vezes Jesus rogou ao Pai para não bebê-lo (Mc 14, 36). Jesus sabia que ele seria tratado como inimigo pela ira do Pai. O BATISMO: Baptisma<908>. Só Marcos traz esta comparação. Era uma submersão ou imersão na água, ou no fogo do Espírito Santo (Mt 3, 11). Mas Jesus toma essa figura para designar o seu batismo de sangue, imerso no seu próprio sangue, como o guerreiro que vem de Edom (figura do país inimigo por excelência) com a veste manchada do sangue dos inimigos, como quem sai do lagar após pisar as uvas. Porque era o dia da vingança e chegava o ano dos meus redimidos (Is 63, 1-4). Só que esse sangue era o próprio de Jesus em que a justiça divina tinha determinado castigar o pecador e por isso ele, Jesus, dirá: tenho que ser batizado num batismo (de dores) e como me angustio até ser consumado (Lc 12, 50). E a Pedro: Mete a espada na bainha; não beberei porventura, o cálice que o Pai me deu?  (Jo 18, 11). Jesus convida, pois, os seus dois pedintes a se unirem a Ele na hora de sua paixão e morte. A morte de Jesus não era um ato de rancor e vingança dos dirigentes de Israel, nem provinha de uma decisão iníqua da justiça romana, nem demonstrava um triunfo do mal demoníaco, mas um ato de amor do Pai que mostrava sua misericórdia salvando o pecador e revelava sua justiça punindo o justo, para indicar a gravidade  do pecado e a necessidade da conversão.

PODEMOS: Eles, portanto, disseram-lhe: Podemos. Jesus, pois, disse-lhes: O copo que eu bebo, bebereis e o batismo o qual eu sou batizado sereis batizados (39). Mas o estar sentado à direita de mim ou à esquerda de mim não está a mim dar, mas para os que estão preparados(40). At illi dixerunt ei possumus Iesus autem ait eis calicem quidem quem ego bibo bibetis et baptismum quo ego baptizor baptizabimini. Sedere autem ad dexteram meam vel ad sinistram non est meum dare sed quibus paratum est. Literalmente, traduzimos o grego como o batismo o qual eu sou batizado que o latim corrige com uma preposição implícita quo correspondente a no qual, que significa a imersão total em sua paixão e morte. Diante da resposta positiva e animosa dos discípulos, Jesus promete que realmente assim sucederá, mas que se assentar à direita e à esquerda é uma questão de previdência divina, preparada pelo Pai como diz Mateus (20, 23). Cumpriu-se a profecia? No caso de Jacob ou Tiago de modo material e totalmente, pois foi morto no ano 44 por ordem de Agripa (At 12, 2). De João diz Tertuliano que foi martirizado ante portam latinam submergido em azeite fervente do qual saiu ileso, para morrer de velho em Patmos, a ilha do Egeu. A segunda parte de Jesus, não dispor dos lugares preferidos no Reino, porque já estão predestinados ao usar a passiva, indica que é desígnio de Deus, ou do Pai como frequentemente Jesus afirma, para coisas que não correspondem a sua humanidade, mas aos planos divinos, não a ele como Mestre de um colégio apostólico, mas que já está determinado pela suprema autoridade de Deus, Criador e Senhor do Universo. Nada tem a ver com o mistério trinitário, completamente desconhecido dos apóstolos nesse momento. O Pai que eles conheciam era o celestial, do qual deviam se tornar filhos (Mt 5, 45), Senhor do céu e da terra [de todo o Universo] (Mt 11, 25), que é quem decide quem deve entrar no Reino (Jo 6, 44), que, portanto, reservava os melhores postos no Reino (Mt 20, 23) e de cujos planos futuros nem os anjos nem o Filho podiam saber com determinação o dia e a hora (Mt 24, 36 e Mc 13, 32). Próprio do Filho era o julgamento final (Mt 25, 34), como correspondia a um triunfador sobre seus inimigos. A suprema ironia é que no momento em que Jesus recebe o Reino, na cruz, estavam com ele dois homens um à direita e outro à esquerda e não eram precisamente seus mais íntimos discípulos.

REAÇÃO DOS OUTROS: Por isso, os dez começaram a estar indignados por causa de Jacob e João (41). Et audientes decem coeperunt indignari de Iacobo et Iohanne. A ambição humana estava fortemente arraigada no ânimo dos discípulos de Jesus. Daí a sua indignação com os dois irmãos que pretendiam a melhor parte num futuro Reino, que todos estavam esperando com a entrada de Jesus em Jerusalém.

A LIÇÃO: Então Jesus, tendo os convocado, diz-lhes: Tendes conhecido que, os que aparecem dominar as nações as subjugam e os grandes deles, exercem autoridade neles (42).  Não será, portanto, assim entre vocês, mas quem quiser se tornar grande entre vocês será servidor de vocês (43). E se alguém entre vocês quiser se tornar primeiro, será de todos, escravo (44). Iesus autem vocans eos ait illis scitis quia hii qui videntur principari gentibus dominantur eis et principes eorum potestatem habent ipsorum. Non ita est autem in vobis sed quicumque voluerit fieri maior erit vester minister. Et quicumque voluerit in vobis primus esse erit omnium servus. Jesus opõe seu Reino aos reinos em prática dos povos pagãos vizinhos. Nestes últimos, os chefes dos mesmos tiranizam os povos e os grandes dos mesmos exercem um poder opressor sobre os súditos. Bastava ser um adulto na época, para ter sofrido os abusos e vexações, ao menos tributárias, de Herodes, de Arquelau e de Antipas para não falar dos venais procuradores romanos. No reino de Cristo, do Messias, cuja semente eram eles, não podia acontecer isso: o que aspira a ser grande tinha que ser servidor, e o que almeja ser o primeiro deve ser o escravo de todos. Não devem existir ambições nem pretensões nas lideranças do Reino, já que não são para proveito próprio, senão um ministério, uma diakonia, exatamente como aquele que serve de livre vontade ou é escravo. Assim entendidos, quem deseja ambicionar postos que unicamente ofereçam serviço e trabalho escravo?

O EXEMPLO PRÓPRIO: Assim, pois, o Filho do Homem não veio (para) ser servido, mas servir e dar sua vida (como) resgate [lytron <3083>=redemptionem]  por muitos (45). Nam et Filius hominis non venit ut ministraretur ei sed ut ministraret et daret animam suam redemptionem pro multis. As palavras entre parênteses não estão no grego original, mas foram acrescentadas para completar a sintaxe em português. FILHO DO HOMEM: O Filho do homem tem vários sentidos. Um deles é o substituto do eu, assim como a gente o faz em português. A frase seria traduzida: “Assim como eu …”. Jesus, Rei e Chefe principal do novo Reino, teve não um momento, mas uma vida dedicada ao bem dos súditos, dando inclusive sua vida como resgate por muitos. LYTRON: A palavra grega Lytron<3083>, traduzida ao latim por Redemptio merece ser estudada. Só sai no NT em ambos os casos paralelos, os de Marcos e Mateus, que aqui tratamos de estudar. Significa resgate, ou preço pago pela liberdade ou alforria de um escravo. Geralmente usa-se a palavra Apolytrosis, que aparece em Lucas e nas cartas de Paulo (10 vezes), com um significado mais teológico e restritivo de resgate, ou pagamento, ao preço do sangue de Cristo (Ef 1,7), e que geralmente é traduzida por redenção. Era o preço pago pela mudança de escravos a libertos [no caso dos cristãos a filhos], o preço da liberdade segundo o que vemos em Jo 8, 33. De escravos do pecado, que segundo Paulo tem personalidade própria (Rm 6, 6), à liberdade de filhos ( Jo 8, 36). O preço foi o sangue que Jesus derramou até a última gota (Jo 19, 34). E como no sangue estava a vida, por isso ele afirma que deu sua vida pelos que eram até então pecadores e, portanto, escravos do pecado, mas que agora nele crêem (Jo 8, 31-32) e se tornaram amigos (Jo 15, 15) e filhos. Dará sua vida em resgate por muitos, que diz Jesus no parágrafo final de hoje (45).

PISTAS: 1) Na história da Igreja temos repetido esta atuação dos filhos do Zebedeu. O poder real era outrora ambicionado pelos representantes do clero. Numerosos antipapas especialmente no século X, litígios entre bispos desde o século III, são uma amostra cabal. Hoje esse desejo de mando, se trasladou ao laicato, disfarçado pelo aspecto de democratização e igualdade, ou sob a falácia de discriminação do sexo. Será que a razão última destas demandas é querer servir, ou melhor, pretender dominar?

 2) Existe uma necessidade de vocações ao sacerdócio, à vida religiosa, à dedicação missionária, porque falta o verdadeiro espírito do reino, o que o distingue de seus homônimos terrestres: é o espírito de serviço que implica o último lugar. Que posso fazer eu por minha pátria? – foi o slogan de Kennedy. Que posso fazer eu pelo Reino de Cristo, deve ser a pergunta de um cristão à qual devemos responder com sinceridade e generosidade.

3) Não sabemos o que pedimos quando esperamos e rogamos por um triunfo pessoal. Este será o do cálice que optamos por beber e o batismo de dor e sofrimento que escolhemos para ser submergidos nele como o Senhor Jesus foi submergido. Sem dor não existe nova criatura assim como não pode existir triunfo verdadeiro.

4) É de se ressaltar que após 2 mil anos estamos submergidos na mesma ignorância que oprimia os filhos do Zebedeu. Ainda sonhamos em coroas temporais e com recompensas terrenas. Vemos simples clérigos desejar títulos de monsenhor ou cônego, como se isso fosse um degrau para melhor espalhar e engrandecer o Reino. Existem poucos crentes que como Isabel da Hungria deixam a coroa terrena no banco da igreja para colocar em sua cabeça a coroa de espinhos de Jesus crucificado que estava no crucifixo da igreja. É, pois, através de muitas tribulações que devemos entrar no reino dos céus (At 14, 22).

5) O pior não é que encontremos Tiago e João dentro da Igreja. O pior é que, como os outros restantes apóstolos, dificilmente haverá quem não os condene; porém não por outro motivo que não seja a inveja. Nada façais por partidarismos ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo (Fp 2, 3). Bem-aventurado o homem que, com sinceridade, pode regozijar-se quando o outro é exaltado, embora ele mesmo seja esquecido e posto de lado! Escolhamos para fazer o bem, áreas nas quais outros não querem trabalhar, áreas – podemos assim chamá-las – de latrinas do Reino.

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