Prefácio do Cardeal Cañizares à edição espanhola de “A Reforma de Bento XVI”

Desde a publicação deste livro até a presente edição espanhola não passaram mais que uns poucos meses. Todavia, a transcendência de certos fatos ocorridos neste lapso de tempo modificou enormemente o “clima” em torno de sua temática, especialmente pelo ambiente de controvérsia que se criou em razão do levantamento das excomunhões dos quatro bispos ordenados há vinte anos por Dom Lefebvre. Este gesto de misericórdia gratuita do Santo Padre para tornar possível a sua plena inserção eclesial, que demonstra com fatos que a Igreja não renega sua tradição, fez com que a “Missa Tradicional” acabe ligada a um problema disciplinar e, pior ainda, político.

Como consequência, existe o risco de uma desfiguração do sentido profundo do Motu Proprio de 7 de julho de 2007; um gesto de extraordinário sentido comum eclesial pelo qual se reconheceu o valor pleno de um rito que nutriu espiritualmente a Igreja Ocidental durante séculos.

Não há dúvida de que um aprofundamento e uma renovação da liturgia eram necessários. Porém, com frequência, está não foi uma realização perfeitamente alcançada. A primeira parte da constituição Sacrosanctum Concilium não entrou no coração do povo cristão. Houve uma mudança nas formas, uma reforma, não, porém uma verdadeira renovação, tal e como pediam os Padres conciliares. Às vezes, mudou-se pelo simples gosto de mudar um passado percebido como totalmente negativo e superado, concebendo a reforma como uma ruptura e não como um desenvolvimento orgânico da tradição. Isto criou reações e resistências desde o princípio, que em alguns casos se concretizaram em posições e atitudes que levaram a soluções extremas, inclusive a ações concretas que implicavam penas canônicas. É urgente, entretanto, distinguir o problema disciplinar surgido de atitudes de desobediência de um grupo, do problema doutrinal e litúrgico.

Se cremos de verdade que a Eucaristia é realmente a “fonte e o ápice da vida cristã” – como nos recorda o Concílio Vaticano II – não podemos admitir que seja celebrada de um modo indigno. Para muitos, aceitar a reforma conciliar significou celebrar uma Missa que de um modo ou de outro devia ser “dessacralizada”. Quantos sacerdotes vimos ser tratados como “retrógrados” ou “anticonciliares” pelo simples fato de celebrarem de maneira solene, piedosa ou simplesmente por obedecerem cabalmente às rubricas! É peremptório sair desta dialética.

A reforma foi aplicada e principalmente vivida como uma mudança absoluta, como se se devesse criar um abismo entre o pré e o pós Concílio, em um contexto em que o termo “pré-conciliar” era usado como um insulto. Aqui também se deu o fenômeno que o Papa observa em sua recente carta aos bispos de 10 de março de 2009: “Às vezes se tem a impressão de que nossa sociedade tenha necessidade de um grupo, ao menos, com o qual não tenha tolerância alguma, o qual se pode atacar com ódio”. Durante este ano foi o caso, em boa medida, dos sacerdotes e fiéis ligados à forma de Missa herdada através dos séculos, tratados muitas vezes como “leprosos”, como dizia de forma contundente o então cardeal Ratzinger.

Hoje em dia, graças ao Motu Proprio, esta situação está mudando notavelmente. E em grande medida está acontecendo porque a vontade do Papa não foi unicamente satisfazer aos seguidores de Dom Lefebvre, nem limitar-se a responder aos justos desejos dos fiéis que se sentem ligados, por diversos motivos, à herança litúrgica representada pelo rito romano, MAS TAMBÉM, E DE MANEIRA ESPECIAL, ABRIR A RIQUEZA LITÚRGICA DA IGREJA A TODOS OS FIÉIS, TORNANDO POSSÍVEL ASSIM A DESCOBERTA DOS TESOUROS DO PATRIMÔNIO LITÚRGICO DA IGREJA A QUEM AINDA O IGNORA. Quantas vezes a atitude dos que os menosprezam não é devida a outra coisa senão a este desconhecimento! Por isso, considerado a partir deste último aspecto, o Motu Proprio tem sentido transcendente à existência ou não de conflitos: ainda quando não houvesse nenhum “tradicionalista” a quem satisfazer, este “descobrimento” teria sido suficiente para justificar as disposições do Papa.

Foi dito também que tais prescrições seriam um “atentado” contra o Concílio, isto, porém mostra um desconhecimento do mesmo Concílio, cuja intenção de dar a todos os fiéis a ocasião de conhecer e apreciar os múltiplos tesouros da liturgia da Igreja é precisamente o que desejou ardentemente esta magna assembleia: “O Sacrossanto Concílio, apegando-se fielmente à tradição, declara que a Santa Mãe Igreja atribui igual direito e honra a todos os ritos legitimamente reconhecidos e quer que no futuro sejam conservados e fomentados por todos os meios” (SC 4).

Por outro lado, estas disposições não são uma novidade; a Igreja sempre as manteve, e quando ocasionalmente não foi assim, as consequências foram trágicas. Não apenas foram respeitados os ritos do Oriente, mas também no Ocidente dioceses como Milão, Lyon, Colônia, Braga e diversas ordens religiosas conservaram pacificamente seus diversos ritos através dos séculos. Porém, o antecedente mais claro da situação atual é, sem dúvida, a Arquidiocese de Toledo. O Cardeal Cisneros usou de todos os meios para conservar como “extraordinário” na arquidiocese o rito moçárabe que estava em vias de extinção; não somente fez imprimir o Missal e o Breviário, como criou uma capela especial na Igreja Catedral, onde se celebra ainda hoje cotidianamente neste rito.

Esta variedade ritual não significou nunca, nem pode significar, diferença doutrinal, mas pelo contrário, põe em relevo uma profunda identidade de fundo. Entre os ritos atualmente em uso é necessário que se dê também esta mesma unidade. A tarefa atual, tal e como nos indica o presente livro de don Nicola Bux, é pôr em evidência a identidade teológica entre a liturgia dos diversos ritos que foram celebrados através dos séculos e a nova liturgia fruto da reforma, ou ainda, se esta identidade se houvesse desfigurado, recuperá-la.

A Reforma de Bento XVI é, pois, um livro rico em dados, reflexões e ideias, e dentre os múltiplos assuntos nele tratados gostaria de ressaltar alguns pontos:

O primeiro é acerca do nome com o qual chamar a esta Missa. O autor propões chamá-la, ao estilo oriental, “liturgia de São Gregório Magno”. É talvez melhor que dizer simplesmente “gregoriana”, pois pode prestar-se a um duplo equívoco (que poderia em todo caso evitar-se com a denominação “dâmaso-gregoriana”). Também é mais conveniente que “Missa tradicional”, onde o adjetivo corre o perigo de contaminar-se com uma carga ou bem polêmica ou bem “folclórica”; ou que “modo extraordinário”, que é uma denominação demasiadamente extrínseca. “Usus antiquior” tem o defeito de ser uma referência meramente cronológica.

Por outro lado, “usus receptus” seria muito técnico. “Missal de São Pio V” ou “do Beato João XXIII” são termos demasiadamente limitados. O único inconveniente é que no rito bizantino já há uma liturgia de São Gregório, Papa de Roma; a dos dons pré-santificados usado na quaresma.

Em segundo lugar, o fato de que o uso seja “extraordinário” não deve significar que deva ser usado somente por sacerdotes e fiéis que se ligam ao modo extraordinário. Como propõe o padre Bux, seria muito positivo que quem celebra habitualmente no modo “ordinário”, o faça também, extraordinariamente, no “extraordinário”. Trata-se de um tesouro que é herança de todos e ao qual, de uma maneira ou de outra, todos deveriam ter acesso. Por isso, poder-se-ia propor especialmente para ocasiões em que há alguma riqueza peculiar do antigo missal que se pode aproveitar (sobretudo se no outro calendário não há nada especialmente previsto): por exemplo, para o tempo da Septuagésima, para as quatro Têmporas ou para a Vigília de Pentecostes e, talvez, até no caso de certas comunidades especiais, tanto de vida consagrada como confrarias ou irmandades. A celebração “extraordinária” também seria de grande utilidade para os ofícios da Semana Santa, ao menos em alguns deles, pois todos os ritos conservam no Tríduo Sagrado cerimônias e orações que remontam a épocas mais antigas da Igreja.

Outro ponto que é necessário destacar é a atitude de Bento XVI; não constitui tanto uma novidade nem câmbio de rumo de governo, mas sim leva à sua concretização o que já João Paulo II havia empreendido como iniciativas tais como o documento papal Quattuor abhinc annos, a consulta à comissão de Cardeais, o Motu Proprio Ecclesia Dei e a criação da Comissão de mesmo nome, ou as palavras dirigidas à Congregação do Culto Divino (2003).

Algo que se deve urgentemente ter em conta é a repercussão ecumênica destas discussões; as críticas dirigidas ao rito recebido da tradição romana alcançam também a outras tradições e sobretudo a dos irmãos ortodoxos. Quase todos os ataques dos que se opõem à reintrodução do missal antigo são precisamente ataque aos lugares que temos em comum com os orientais! Um sinal que confirma este fato são as expressões positivas do recentemente falecido Patriarca de Moscou ao publicar-se o Motu Proprio.

Não é um dos aspectos menos importantes deste livro o fato de que nos ajude a tomar consciência dos diversos aspectos da situação em que nos encontramos atualmente. Nossa geração enfrenta grandes desafios em matéria litúrgica: ajudar toda a Igreja a seguir plenamente o que indicou o Concílio Vaticano II na constituição Sacrosanctum Concilium e o que o Catecismo da Igreja Católica diz sobre a liturgia, aproveitar o que o Santo Padre – quando ainda era o cardeal Joseph Ratzinger – escreveu sobre o tema, especialmente em seu belíssimo livro Introdução ao Espírito da Liturgia, enriquecer-se com o modo com que o Santo Padre – assistido pela Oficina das celebrações litúrgicas presidida pelo Mons. Guido Marini, e da qual é consultor o autor deste livro – celebra a liturgia. Estas liturgias pontifícias são exemplares para todo o orbe católico.

Por último, acrescento que seria de grande importância que tudo isto se expusesse com profundidade nos seminários como parte integrante da formação para o sacerdócio, para proporcionar um conhecimento teórico-prático das riquezas litúrgicas, não somente do rito romano, mas também, na medida do possível, dos diversos ritos do Oriente e do Ocidente, e assim criar uma nova geração de sacerdotes livres de preconceitos dialéticos.

Oxalá este valioso livro de don Nicola Bux sirva para conhecer melhor as intenções do Santo Padre e descobrir as riquezas da herança recebida e, desse modo, para iluminar-nos em nossa ação. Para isto, peçamos ao Senhor saber interpretar, como dizia Paulo VI, os “sinais dos tempos”.

+ Antonio, cardeal Cañizares

Prefeito da Sagrada Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos

Administrador Apostólico de Toledo

8 de abril de 2009

Fonte: Subsídios Litúrgicos Summorum Pontificum

Tradução e grifos: OBLATVS

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