Homilia do D. Anselmo Chagas de Paiva – I Domingo da Quaresma – Ano B

Caros irmãos e irmãs, 

Na última quarta-feira, com a imposição das cinzas, iniciou o tempo da quaresma que compreende um itinerário de quarenta dias que nos conduzirá ao Tríduo Pascal, memória da paixão, morte e ressurreição do Senhor.  É um tempo de conversão, isto é, de mudança interior, de arrependimento. O tempo da Quaresma é o momento propício para renovar e tornar mais sólida a nossa relação com Deus, através da oração quotidiana, dos gestos de penitência e das obras de caridade fraterna. 

Neste tempo, a Igreja nos chama novamente à conversão, que significa também um convite para transformar a nossa mentalidade e o nosso comportamento, assumir uma nova atitude e reformular os valores que orientam a nossa vida. E o tempo quaresmal também nos impele a confiar na misericórdia transformadora de Deus: “Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso, pronto a desistir dos castigos que promete” (Jl 2,13). 

O Evangelista São Marcos, que nos acompanha ao longo deste ano litúrgico, nos apresenta o texto evangélico onde narra o episódio da tentação de Jesus no deserto: “O Espírito levou Jesus para o deserto. E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás. Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam” (Mc 1,12-13).  Esta narração de São Marcos é concisa, desprovida dos pormenores que lemos nos outros dois Evangelhos, de São Mateus e São Lucas. 

Em conformidade com a teologia de Israel, o deserto é um lugar privilegiado de encontro com Deus; foi no deserto que o Povo experimentou o amor e a solicitude do Senhor, e foi no deserto que o Senhor Deus propôs a Israel uma Aliança. O deserto pode indicar a situação de abandono e de solidão, o lugar da debilidade do homem, onde não existem ajudas nem seguranças, onde a tentação se faz mais forte. Mas ele pode indicar também um lugar de refúgio e de amparo, como foi para o povo de Israel que se livrou da escravidão egípcia, onde se pode experimentar de modo particular a presença de Deus. Jesus.

Contudo, o deserto é, também, o lugar da prova, da tentação; foi no deserto que o povo de Israel foi confrontado com opções, e foi no deserto que também este mesmo povo de Israel sentiu várias vezes a tentação de escolher caminhos contrários aos propostos por Deus.  O deserto para onde Jesus é conduzido é, portanto, o lugar do encontro com Deus e do discernimento dos seus projetos; e é o lugar da prova, onde se é confrontado com a tentação de abandonar Deus e de seguir outros caminhos. 

Logo após receber o batismo de penitência no Rio Jordão, Jesus se refugia no deserto para estar quarenta dias em profunda união com o Pai, o que vai constituir uma constante na vida terrena de Jesus. Com frequência deparamos com alguma passagem bíblica onde nos mostra Jesus em um momento de oração, para, em seguida, retornar para o meio das pessoas. Mas neste tempo em que Jesus se encontra no deserto, ele está exposto ao perigo e é atingido pela tentação e pela sedução do Maligno, que propõe a Ele, como opção, o caminho do poder, do sucesso e do dinheiro.  Podemos lembrar que Jesus retira-se para o deserto por quarenta dias, sem comer, nem beber (cf. Mt 4,2), se nutre da Palavra de Deus, que usa como arma para vencer o diabo. As tentações de Jesus fazem referência àquelas que o povo hebraico enfrentou no deserto, mas que não soube vencer. 

O número “quarenta” é bastante frequente, tanto no Antigo como no Novo Testamento.  O número quarenta, é o número simbólico com o qual a Sagrada Escritura representa os momentos fortes da experiência de fé do Povo de Israel. É um número que exprime o tempo de espera, da purificação, do retorno ao Senhor, da consciência de que Deus é fiel às suas promessas. Este número não representa um tempo cronológico exato, mas indica uma paciente perseverança, uma longa prova, um período suficiente para ver as obras de Deus, um tempo no qual é necessário decidir-se e assumir as próprias responsabilidades. 

O número quarenta aparece antes de tudo na história de Noé, um homem justo, que por causa do dilúvio, permanece por quarenta dias e quarenta noites na arca, junto com a sua família e os animais que estavam com ele na arca.  Noé também espera outros quarenta dias, depois do dilúvio, para tocar na terra firme, que foi salva da destruição (cf. Gn 7,4.12;8,6). Também a Sagrada Escritura nos diz que Moisés permaneceu no Monte Sinai, diante da presença do Senhor, quarenta dias e quarenta noites, em jejum, para acolher a Lei (cf. Ex 24,18). 

Podemos ainda salientar o número quarenta como o tempo da viagem do povo hebreu, do Egito à Terra prometida: “Recorda-te de todo o caminho que o Senhor, teu Deus, te fez percorrer nestes quarenta anos. O teu manto não se rasgou pelo seu uso nem os pés se incharam nestes quarenta anos” (Dt 8,2.4).  Ainda no Antigo Testamento temos o profeta Elias que leva quarenta dias para atingir o Monte Oreb e lá encontra Deus (cf. 1Rs 19,8). 

Quarenta são os dias durante os quais os cidadãos de Nínive fazem penitência para obterem o perdão de Deus. Jonas, profeta que viveu no século VII antes de Cristo, recebeu de Deus a missão de pregar em Nínive, capital do império assírio, cidade tão grande que “eram precisos três dias para percorrê-la” (Jn 3, 3). Seus habitantes viviam na iniquidade e Deus ordenou a Jonas que para lá se dirigisse a fim de anunciar-lhes a destruição da cidade. Jonas percorreu a cidade durante todo um dia, pregando: “Daqui a 40 dias Nínive será destruída!” (Jn 3,4). 

Ouvindo essas palavras, os ninivitas começaram a fazer penitência, e o próprio rei “levantou-se do seu trono, tirou o manto, cobriu-se de saco e sentou-se sobre a cinza” (Jn 3,6). Significativo gesto de humildade, que bem expressava seu arrependimento.  E publicou ele um decreto dizendo: “Todos clamem a Deus em alta voz; deixe cada um o seu mau caminho e converta-se” (Jn 3,8). Diante dessa sincera conversão dos ninivitas, mudou o Senhor seus desígnios e não os castigou. 

Quarenta são os dias durante os quais Jesus Ressuscitado instruiu os seus discípulos, antes de ascender ao Céu e enviar o Espírito Santo (cf. At 1,3).  E, nestes quarenta dias da quaresma, a Liturgia tem como objetivo, favorecer um caminho de renovação espiritual, à luz desta longa experiência bíblica e, sobretudo, para aprender a imitar Jesus, que nos quarenta dias transcorridos no deserto ensinou a vencer a tentação do demônio com a Palavra de Deus. 

A história nos mostra que também muitos homens e mulheres imitaram Jesus nesta sua retirada ao deserto. No Oriente, começando por Santo Antão, muitos foram aqueles que se retiram aos desertos do Egito ou da Palestina, ou para lugares solitários, montes e vales remotos ou grutas, como fez também São Bento, deixando o mundo para se encontrar com Deus no silêncio e na solidão. Também nós, nesta quaresma, somos chamados a fazer esta experiência do deserto. Passar um tempo de deserto significa subtrair-se do alvoroço e dos chamados exteriores para entrar em contato com as fontes mais profundas de nosso ser. 

Assim como aconteceu com Cristo, também nós, ao nos preparar para a Páscoa, peçamos ao Espírito Santo que nos conduza e nos assista ao longo do nosso caminho quaresmal, através do deserto da oração e da penitência, para nos alimentarmos intensamente com a Palavra de Deus. Que o Espírito Santo também nos auxilie na luta contra o mal e nos faça progredir sempre mais na fé, para que sejamos capazes de imprimir no nosso coração e na nossa vida as palavras de Jesus Cristo e nos convertermos a Ele todos os dias.  Assim Seja. 

  1. Anselmo Chagas de Paiva, OSB

Mosteiro de São Bento/RJ.

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