Comentário Exegético – XXIX Domingo do Tempo Comum – Ano A

EPÍSTOLA (1Ts 1,1-5b)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

 

 

INTRODUÇÃO: Paulo e Silvano e Timóteo à Igreja dos tessalonicenses em Deus Pai e Senhor de Jesus Cristo: Graça para vós e paz da parte de Deus Pai e de(o) Senhor Jesus cristo (1). Paulus et Silvanus et Timotheus ecclesiae Thessalonicensium in Deo Patre et Domino Iesu Christo gratia vobis et pax.SILVANO [Silouanos<4610>=Silvanus] Silvanus, de origem latina significava o espírito tutelar dos bosques. Já o nome de Silas parece semítico com o significado de pequeno Saul ou lobo. Com o nome de Silas sai 12 vezes nos Atos. Em 15, 22 é junto com Barsabás [ou Judas] o escolhido para acompanhar Paulo e Barnabé a Antioquia e declarar o acordado  no concílio de Jerusalém. Tanto Barsabás como Silas eram profetas, ou tinham o carisma da profecia (Idem 15, 32). O profeta neotestamentário tinha como função principal a de exortar os fiéis e algumas vezes como no caso de Ágabo prediziam o futuro (At 11, 27-28). Numa segunda atuação, Silas foi escolhido por Paulo ao se separar de Barnabé para a segunda viagem a Síria e Cilícia (At 15, 40). Nessa viagem, em Listra, uniu-se a eles Timóteo. Em Filipos são vítimas de uma demonstração hostil por ter curado uma escrava possessa que, com suas adivinhações, dava enormes ambições a seus amos (At 16, 19). Em Tessalônica são perseguidos pelos judeus locais e também em Berea. Paulo deixa Silas e Timóteo e marcha só a Atenas e daí a Corinto (At 17, 15), onde parece uniram-se os três (2 Cor 1, 19). Aqui desaparece Silas do livro dos Atos. Mas é de Corinto que com o nome de Silvano aparece como co-autor da epístola aos Tessalonicenses (1 Ts 1,1). Finalmente na primeira epístola de Pedro aparece Silvano como companheiro e irmão fiel que é o seu amanuense e escritor material da carta (1 Pd 5, 12). TIMÓTEO [Timotheos <5095>=Timotheus] nome grego que significa aquele que honra Deus, era filho de Eunice (2 Tm 1, 5), mulher judia de Listra, casada com um grego (At 16, 1), e neto de Loide, cristãs de início. Paulo o circuncidou para torná-lo aceitável aos judeus-cristãos que ainda praticavam o rito (At  16, 3). Acompanhou Paulo nas suas últimas viagens, mencionadas no ano 49 nos Atos. O interesse de Paulo era que Timóteo representava a primeira geração de cristãos que não tinham conhecido Jesus e que passavam da era judaica messiânica à universal dos gregos e pagãos. TESSALÔNICA [<2331>] atualmente Salônica é a segunda cidade da Grécia,  capital da Macedônia e importante porto do norte do mar Egeu, com uma população de 1 milhão de habitantes. Fundada em 315 aC pelo rei Casandro de Macedônia, casado com Tessalonike, meia-irmã de Alexandre, o Grande. Ela recebeu o nome devido a vitória  do Pai, Filipo,  pelo triunfo sobre Tessália. Em 146 Tessalônica passou a formar parte do Império romano como capital das quatro províncias de Macedônia e se transformou num importante centro comercial sobre a via Egnacia, calçada romana que unia Bizâncio com Durazzo no Adriático. DEUS PAI: É um título que Paulo sempre atribui a Deus em relação com o homem Jesus, que não tem pai humano e que assim confirma as palavras de Gabriel:o espírito de Deus [agios] descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus. E como Pai, é Senhor segundo a natureza e a lei. GRAÇA [charis <5489>= gratia] e PAZ [eirënë<1515>=pax]: a frase substitui o chaire [<5463> = alegra-te] grego e o salve [= saúde] latino. É a introdução cristã das cartas de Paulo, em que charis expressa o desejo de que a boa vontade de Deus encha  de alegria e paz, ou conforto, as almas dos ouvintes com as palavras da carta. É o início da carta aos gálatas, romanos, coríntios etc. Nas pastorais, ainda temos misericórdia [éleos] intercalada entre a graça e a paz. A graça corresponde, pois, ao chaire ou chairein [plural] grego e a paz ao shalon hebraico. Graça está no lugar de favor, amabilidade; e fala da bondade de Deus  que provém  todas as necessidades e desejos dos ouvintes, especialmente as do tipo espiritual, das quais Cristo é o intercessor. A paz, que era a saudação hebraica por excelência, agora se torna, em palavras de Paulo, como reconciliação mais do que conjunto de bens para aqueles aos quais a carta está dirigida. A reconciliação é uma das ideias primordiais de Paulo, como efeito da cruz: E tudo isto provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação (2 Cor 5, 18). Pois havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliou consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus (Cl 1, 20)..

AÇÃO DE GRAÇAS: Damos graças ao Deus sempre, por todos vós, fazendo memória vossa em nossas orações (2). Gratias agimus Deo semper pro omnibus vobis memoriam facientes in orationibus nostris sine intermissione. DAMOS GRAÇAS [eucharistoumen<2168>=gratias agimus] do verbo eucharisteö, com o significado de dar graças, agradecer. Essa é também uma das prioridades de Paulo nas orações: Dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo (Ef 5, 20). Em tudo vê Paulo a bondade de Deus e por isso a ação de graças é a coisa mais natural. Devemos a vida e devemos a justificação como mercês do Bom Deus que dizia Teresa de Lisieux, e estamos no caminho da glorificação. Não por méritos, mas por pura mercê que unicamente exige nessa linha de salvação a cooperação, o não se opor à obra de Deus criador, Redentor, Santificador e Glorificador. Mas especialmente, Paulo tem um motivo particular: a fé dos tessalonicenses é motivo de ação de graças e por isso termina FAZENDO MEMÓRIA [mneian <3417> poioumenoi <4106>=memoriam facientes] que tanto pode ser traduzido por recordando-vos como por mencionando-vos. Esta última parece mais apropriada; pois usando o plural nossas indica que as orações [proseuchai] eram as recitadas em voz alta nas assembleias religiosas da comunidade.

A MEMÓRIA: Sem interrupção, recordando de vossa obra de fé, e do trabalho do amor, e da perseverança da esperança de nosso Senhor Jesus Cristo diante do Deus e Pai nosso (3). Memores operis fidei vestrae et laboris et caritatis et sustinentiae spei Domini nostri Iesu Christi ante Deum et Patrem nostrum. SEM INTERRUPÇÃO [adialeiptös <89>= sine intermissione]: o grego é um advérbio com o significado de sem interrupção, assiduamente, incessantemente. Tendo na memória a OBRA [ergon<2041>=opus] de vossa [pistis <4102>=fides]. Ergon é obra ou ação, também prática. Parece que os tessalonicenses foram submetidos, como Paulo, às diversas perseguições, pelo fato da sua fé em Cristo, como Messias, Filho de Deus, morto para a Redenção dos homens. Inicialmente, pistis era fidelidade. Asim fala a Septuaginta da fidelidade [emunah] de Deus em Hab 2, 4: ‘o de díkaios ek pisteös mou zësetai [=viverá por minha fidelidade]; mas que no hebraico será a fidelidade dele, do justo [por sua fidelidade =emunatu] Porém, esta última acepção do hebraico parece ilógica diante do contexto. Não obstante, o massorético foi o texto usado por Paulo em Rm 1, 17 com a tradução de fé  do justo: Mas o justo viverá da fé [‘o de díkaios ek písteös zësetai]. Obra esta da fé, talvez como diz João, mais por parte de Deus do que do homem: A obra de Deus é esta: Que creiais naquele que ele enviou (Jo 6, 29). TRABALHO <kopus<2873>=labor] DO AMOR [agapë <26> =caritas] Kopus inicialmente designava um batido do coração em pena (Jr 51, 3 na Septuaginta),  para depois significar trabalho, labuta, unido à fadiga; daí aflição. Como em Lc 11, 7: Se ele, respondendo de dentro, disser: Não me importunes; já está a porta fechada, e os meus filhos estão comigo na cama; não posso levantar-me para te dar. Paulo usa-o com o significado de fadigas e 2 Cor 6, 5: espancamentos, prisões, tumultos, fadigas [kopois], vigílias e fome. Assim, como um resumo dessa vida sofrida dos tessalonicenses, Paulo escreve um pouco mais adiante: Vindo, porém, agora Timóteo de vós para nós, e trazendo-nos boas novas da vossa fé e amor, e de como sempre tendes boa lembrança de nós, desejando muito ver-nos, como nós também a vós (3, 6). E em Hebreus 6:10 Porque Deus não é injusto para se esquecer da vossa obra, e do trabalho do amor que para com o seu nome mostrastes, enquanto servistes aos santos; e ainda servis. A isso chamará Paulo cooperação no evangelho (Fp 1, 5). Finalmente PERSEVERANÇA [ypomonë <5281>=sustinentia] DA ESPERANÇA [elpis<1680>=spes]. Ypomonë é constância, firmeza, perseverança, traduzida muitas vezes por paciência como virtude passiva. E entra agora a terceira virtude cristã: a esperança. Se em Fp 4, 8 Paulo diz que as virtudes humanas devem ser a base de todo cristão, agora louva as virtudes cristãs por excelência, nos tessalonicenses, já que como diz em Rm 8, 6: A inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Trata-se da esperança, essa da que vos está reservada nos céus, da qual já antes ouvistes pela palavra da verdade do evangelho. Realmente a vida cristã se identifica com essas três virtudes teologais. Dirá Paulo em 1 Cor 13:13: Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.

A ELEIÇÃO: Sabendo, irmãos diletos por Deus, a vossa eleição (4). Scientes fratres dilecti a Deo electionem vestram. DILETOS [ëgapëmonoi<25>=dilecti] é o particípio perfeito passivo do verbo agapaö, de significado amar, ter preferência por, estimar. Em parte sinônimo de fileö, mas tendo suas diferenças. Praticamente, é a mesma diferença entre os vocábulos latinos diligere e amare. Cícero escreve de um amigo: Ut scires illum a me non diligi solum, verum etiam amari. O amor implica uma entrega total ao amado. A dileção é predileção e confiança. De modo que o amor  é a dileção levado ao extremo de que o outro é mais importante do que o eu próprio. No nosso caso, o verbo agapaö é o preferido para as relações entre Deus, como Pai, e os homens, como seus filhos. Por isso, dirá João 3:16 Deus amou [ëgapësen] o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Fileö é mais próprio de uma eleição intelectual e amaö de uma escolha íntima e sentimental. Embora ambos os verbos podem ser usados como iguais em Jo cap 21 nas perguntas de Jesus a Pedro. ELEIÇÃO [eklogë<1589>=electio] é a eleição feita por Deus para a entrada na fé de determinadas pessoas como diz Jesus; Todo aquele o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora (Jo 6, 37). No cântico de Ef 1, 3-10 lemos: Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor; E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade. Para louvor da sua graça gloriosa que ele gratuitamente nos concedeu no seu amado Filho.

 

 

MÉTODO EVANGÉLICO: Porque o nosso evangelho não chegou a vós somente em palavra, mas também em poder e em Espírito de Deus e em muita garantia como soubestes como nos comportamos entre vós por vós (5). Quia evangelium nostrum non fuit ad vos in sermone tantum sed et in virtute et in Spiritu Sancto et in plenitudine multa sicut scitis quales fuerimus vobis propter vos. Paulo fala agora de seu ministério evangélico. Não foi a palavra só, mas as obras, como diz Paulo em Rm 15, 16. 18-19: Que seja ministro de Jesus Cristo para os gentios, ministrando o evangelho de Deus, para que seja agradável a oferta dos gentios, santificada pelo Espírito Santo. Porque não ousarei dizer coisa alguma, que Cristo por mim não tenha feito, para fazer obedientes os gentios, por palavra e por obras. Pelo poder dos sinais e prodígios, na virtude do Espírito de Deus; de maneira que desde Jerusalém e arredores até à Ilíria, tenho pregado o evangelho de Jesus Cristo. ESPÍRITO DE DEUS [pneumati<4151> agiou<40>=spirito sancto] Uma das acepções de Espírito [Pneuma] é a que diferencia Deus de toda entidade diferente do mesmo. É o Espírito de Deus ou do Senhor, como em Mt 3, 16: sendo Jesus batizado, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus [to Pneuma tou Theou] descendo como pomba e vindo sobre ele. Ou em Lc 4, 18: O Espírito do Senhor [pneuma kuriou] é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Espírito que também é chamado de sagrado [agios] e que tanto a Vulgata como as línguas vernáculas traduzem por santo, como testemunha o Batista: E eu, em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; cujas sandálias não sou digno de levar; ele vos batizará com o Espírito Santo [agiö], e com fogo (Mt 3, 11).Esse Espírito é PALAVRA de Deus e PODER de Deus: Porque aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus; pois não lhe dá Deus o Espírito por medida (Jo 3, 14). E em Rm 15, 19, Paulo fala do poder de Deus que acompanhou seu ministério: Pelo poder dos sinais e prodígios, na virtude do Espírito de Deus; de maneira que desde Jerusalém, e arredores, até à Ilíria, tenho pregado o evangelho de Jesus Cristo. GARANTIA [plërosofia<4136>=plenitudo multa] literalmente estar cheio que traduzem por total convicção, ou máxima garantia e certeza. Naturalmente, que o poder [dynamis] de Deus manifestado nos milagres, dava a Paulo essa garantia de que sua palavra era a palavra de Deus. E desses fatos os tessalonicenses foram testemunhas: como discutiu três sábados na sinagoga, e como ao se converterem vários cidadãos pela palavra de Paulo, foi este perseguido e teve que se ocultar em Berea  de onde também foi expulso (At cap 17). Mas foi em Filipos, onde milagrosamente as correntes de Paulo e Silas, após um terremoto, foram soltas. Sem dúvida, que estes atos eram também conhecidos pelos tessalonicenses, cuja cidade não distava muito de Filipos. E Paulo apela à sinceridade de sua palavra como um exemplo dado aos tessalonicenses enquanto esteve entre eles. Nos comportamos entre vós -escreve.

 

 

EVANGELHO

Lugares paralelos: Mc 12, 13-17 e Lc 20, 20-26)

O TRIBUTO A CÉSAR

(Pe Ignácio, dos padres escolápios)

 

INTRODUÇÃO: Estamos na última semana da vida de Jesus. Ele atua como Rabi [mestre] no pórtico de Salomão ao oriente da esplanada do templo. Seus inimigos estão à espreita para ver como apanhá-lo em suas palavras e, por isso, propõem diversas questões, que eram discutidas na época, com o intuito de ver seus conhecimentos e até de poder acusá-lo diante das autoridades por sua discrepância da Lei, ou sua oposição às autoridades romanas. Um destes episódios é o de hoje, em que existe um acordo entre inimigos com o fim de poder apresentá-lo como inimigo do verdadeiro Israel e falso messias em consequência. A resposta tem servido para distinguir os dois poderes, o espiritual e o temporal, para não transformar em teocracias os governos das diversas nações. A solução não contrapõe os dois poderes, mas reconhece que ambos têm autonomia própria e implicitamente admite a superioridade do poder divino a quem devemos obediência e principalmente adoração. O cristão tem que ser um bom cidadão, cumprindo as leis civis e os compromissos sociais, mas deve, antes de tudo, obedecer aos mandatos de Deus, impressos na sua consciência.

A REUNIÃO (15): Então, tendo se retirado, os fariseus reuniram-se em conselho, como tender a ele (Jesus) uma cilada, de palavra (15). Tunc abeuntes Pharisaei consilium inierunt ut caperent eum in sermone. Após a parábola dos vinhateiros homicidas, os chefes sacerdotais, os escribas e os anciãos procuravam prender Jesus; mas tinham medo da multidão (Mc 12, 12). Ou seja, os componentes do grande Sinédrio declararam Jesus como inimigo, mas sabiam que era perigoso atuar contra ele, pois não encontravam um argumento válido para condená-lo, de modo que o povo concordasse com a ação repressiva. Segundo João, até reuniram o Sinédrio (sic) ou Conselho, como traduz a Vulgata, e que a bíblia de Jerusalém conserva. Na realidade, foi um conselho formado pelos componentes do Sinédrio.  Por isso Lucas pode afirmar que foi num symbolium [uma sessão deliberativa] em que se buscava precisamente prender Jesus numa armadilha [esse é o sentido de pagideuö], que, infelizmente, traduzem por surpreender algumas bíblias. O propósito era mostrar Jesus como inimigo da lei e, portanto, do povo. Nesta última semana, Jesus se manifestou extremamente prudente, por exemplo, quando não quis dizer com que autoridade ele tinha expulsado os vendedores do templo.

OS INTERROGADORES (16): Então enviaram-lhe seus discípulos com os herodianos, dizendo: Mestre, temos visto que és verdadeiro e  ensinas em verdade o caminho de Deus e não (te) importas por ninguém, pois não olhas as aparências dos homens (16). Et mittunt ei discipulos suos cum Herodianis dicentes magister scimus quia verax es et viam Dei in veritate doces et non est tibi cura de aliquo non enim respicis personam hominum DISCÍPULOS: Eram discípulos [mathetai] dos fariseus, segundo Lucas, junto com herodianos.  O que significa que os verdadeiros responsáveis não se atreveram a dar a cara. Já a coisa começa por ser maldosamente preparada. Sabemos que os fariseus, amantes e observantes da lei, eram os que tinham escrúpulos de dar o tributo a César porque era o mesmo que dá-lo ao deus [Júpiter Capitolino] do qual era representante. Era, pois, um ato de idolatria. Sabemos pela história que os generais [imperatores] romanos vitoriosos pintavam seus rostos de vermelho e coroados com um diadema de laurel representando o deus Marte, atravessavam a via sacra para subir ao Capitólio onde veneravam a tríada capitolina: Júpiter [Ótimo , Máximo] Juno [esposa e irmã de Júpiter] e Minerva [deusa da sabedoria e de Roma, assim como Atenea era de Atenas]. Como encarnação do deus Marte, o general vitorioso, vinha  oferecer seus respeitos a sua mãe Juno e seu pai Júpiter aos quais ele creditava a vitória. Desde Augusto, no ano 12, a C. o Príncipe, foi nomeado também Pontifex  Maximus, obtendo assim a suprema direção do Estado e do culto. Embora Tibério rejeitasse o culto ao Imperador por considerar a si mesmo um simples mortal, pagar o imposto a César era, segundo os fariseus, oposto ao primeiro mandamento. Os judeus reconheciam o protetorado romano mediante o juramento de fidelidade e o sacrifício diário no templo em nome do Imperador, ficando eximidos de qualquer outro culto. Por outra parte, entre os judeus no século I, se recitava o Shemá, junto com o primeiro mandamento e não se considerava válida a oração em que faltasse ao nome de Deus o título de rei. Pois era  Ele o único Senhor de Israel (Dt 6,5). Por isso, à instigação de Judas, apodado o galileu, houve uma revolta após a morte de Herodes o Grande, no ano 6 d.C.  Judas era  provavelmente um rabi, pois Josefo o declara sofista, a  quem seguiu uma parte dos fariseus da seita de Sammay que depois foram denominados de zelotas. Os romanos os trataram como ladrões ou malfeitores (ver  Lc 23, 33). Esse era provavelmente o espírito dos fariseus. A rebelião obrigou Públio Quintílio Varo, o legado da Síria, a uma luta contra os insurretos, terminando com a toma de Jerusalém e crucifixões em massa. As rebeliões na Palestina nos últimos 150 anos a.C. causaram 200 mil mortos em Israel. Já os herodianos eram partidários da união com Roma, da qual derivavam muitas vantagens para os tetrarcas herdeiros de Herodes, o Grande, e seus oficiais e servidores. Como vemos, os herodianos tinham uma política completamente contrária dos fariseus. Da resposta de Jesus, como veremos mais tarde, esperavam-se duas conclusões: duma delas se aproveitariam os fariseus para condená-lo como inimigo da lei e do povo. Da outra, os herodianos teriam argumento suficiente para denunciá-lo a seu tetrarca como subversivo, por negar o imposto devido a César, tal como pediam a Pôncio Pilatos, por Jesus se declarar como Ungido Rei (Lc 23, 2). Por essas razões, os judeus se opuseram aos recenseamentos romanos. Só Jahweh teria direito a fazer semelhante ato de total soberania. Já Davi teve um castigo por um recenseamento como vemos em 2 Sm 24, 1-14. Por isso houve duas revoltas por motivo dos recenseamentos romanos. O recenseamento romano estava dividido em duas partes: o REGISTRO [apografé] ou inventário de todas as pessoas e propriedades. Por causa destas últimas, o registro deveria ser feito no lugar onde estavam as mesmas. No caso de José, sabemos que foi em Belém. Em todo o império romano esse censo ficou registrado no ano 8 a.C, exceto no reino de Herodes, na Palestina, onde foi feito um ano mais tarde, no ano 7. a.C, ainda na época de Herodes em que os judeus deveriam prestar o juramento de fidelidade ao Imperador. Uma segunda parte era o  TRIBUTO ou arrecadação (apotimesis) feito durante 0 legado de Quirino no ano 6 d C, cessado o domínio de Arquelau na Judeia. Este foi o momento em que Judas o Galileu inicia a revolta e prega a doutrina dos Zelotas contra o tributo aos romanos, conquistando Séforis, a capital do Norte. Citamos Flávio Josefo: Em Séforis (a 7 km. de Nazaré) da Galileia, Judas, filho de Ezequías, o chefe dos bandidos que havia assolado antes a região até que foi dominado pelo rei Herodes, reuniu uma banda muito numerosa, rompeu as portas dos arsenais do rei e, distribuindo as armas a seus partidários, atacou os demais candidatos ao poder. Varo, então legado na Síria, tomou consigo as duas legiões que restavam com quatro regimentos de cavalaria e foi para Tolemaida…. Gaio, um dos seis generais, derrotou as tropas enviadas contra ele, tomou Séforis a incendiou e reduziu seus habitantes à escravidão. …Varo subiu com o grosso do exército em direção à Samaria, mas respeitou a cidade ao saber que seus habitantes não tinham tomado parte nos distúrbios provocados por outras cidades. …Dali chegou a Jerusalém e bastou que aparecesse com o exército para que se dispersassem os judeus no campo. Os que estavam na cidade acolheram Varo, que por meio do exército buscou os responsáveis da sedição. Os menos turbulentos foram encarcerados e os mais culpáveis em número de dois mil foram crucificados. Jesus morava em Nazaré e teria na ocasião 13 anos. A contemplação das ruínas de Séforis foi um espetáculo triste de sua juventude. A ideia da revolta foi, sem dúvida, a razão pela qual Caifás afirmou: é de interesse [dos judeus] que um só homem morra pelo povo e não perca a nação toda (Jo 11, 50). Outro momento de rebelião foi na morte de Herodes, o Grande. Um tal Atrongeo, pastor que se intitulou rei e assolou a Pereia com seus homens armados. Tudo demonstra que havia uma síndrome de temor diante da repercussão que um messianismo político/militar poderia  acarretar ao povo com a violenta resposta romana. MESTRE: O título de didaskalos (o magister latino) responde, sem dúvida, ao rabi hebraico, um mestre da Lei que tinha discípulos. A palavra RABI  significa meu grande (mestre). O título, assim como o ditirâmbico subsequente, é pura adulação. Diante de um juízo, a imparcialidade é a principal qualidade de um juiz  e, além disso, para um judeu, era importante que o ensino estivesse em conformidade com a vontade divina, mostrada em seus preceitos [caminhos] como colunas da verdade. Jesus era um mestre que não tinha precedentes e seguia seu próprio critério. Por isso podiam afirmar que não olhava a face [prosopon] de ninguém, que podemos traduzir por: que não tinha uma linha determinada e ensinava segundo o que sentia verdadeiro e justo. Queriam saber sua opinião, que, sem dúvida, seria particular e distinta.

A PERGUNTA: Dize-nos, portanto, que te parece? É lícito dar tributo a César ou não? (17). Dic ergo nobis quid tibi videatur licet censum dare Caesari an non. LÍCITO: O grego usa o verbo impessoal exestin que propriamente significa estar conforme à lei, ou seja, ser lícito. O TRIBUTO: Distinguia-se o FOROS, ou tributo direto anual sobre casas, terras e  até pessoas (ver Lc 20,22) e o KENSOS (Mt e Mc) ou imposto per cápita, a capitatio romana, chamada também tributum, diferente das taxas alfandegárias, chamados TELOS, impostos indiretos daí a palavra telônion. Assim como o tributo ou didracma do templo, parece que o censo era pago em moeda, logicamente a moeda romana, o denário de prata. Moedas de cobre eram cunhadas nas províncias, mas a prata e o ouro eram todas feitas em Roma. Com isso, a dependência do poder central era evidente. Os denários tinham a efígie do imperador com a inscrição correspondente. Já as moedas hebraicas não tinham efígies, mas somente inscrições como Davi e Salomão de um lado e Jerusalém de outro. Na moeda romana havia uma palavra que podia também ter uma interpretação duvidosa: o cognome de augustus, palavra de origem cultual que denotava uma elevação sagrada de um personagem e era derivada de augere e augur traduzida em grego por Sebastós, venerável ou adorável. Entre os romanos, os impostos diretos eram de três classes: Tributum soli,(= imposto sobre a terra) sobre todas as propriedades salvo as beneficiadas pelo ius italicum (=direito itálico), Tributum capitis sobre todas as rendas mobiliárias; e o simples Capitatio (= capitação), imposto direto anual, que recaia sobre todos que fossem peregrinos ou não cidadãos romanos: Trata-se do imposto pessoal, que todos as pessoas deveriam pagar: os homens desde os 14 anos e as mulheres desde os 12 até a idade de 65 anos. Nos impostos indiretos poderiam ser incluídos todos os demais impostos territoriais e alfandegários. Como vemos, a questão era especialmente sobre o imposto pessoal. Logo  provavelmente se trata do capitatio. Por outra parte, estava o didracma, tributo pessoal, dado ao templo, também anual, equivalente a dois denários (= ou salários de dois dias) que obrigava a todos os judeus varões maiores de vinte anos, tanto da Palestina como da Diáspora, excluindo mulheres, crianças e escravos. Sobre este imposto capital, romano, vejamos AS DUAS MENTALIDADES tradicionais na época: 1) A teoria dos zelotas,  seguida pelos fariseus discípulos de Shammay, cujo chefe Sadduk lutou com Judas, era de que o único rei de Israel era Jahweh, de modo que não consideravam válida uma oração em que faltasse a Deus o título de rei. Os romanos mantinham o princípio de que, com a conquista, as terras de um país passavam a ser propriedade do Estado, mas cujo usufruto era deixado aos nativos. Neste princípio jurídico fundamentavam a exigência dos impostos. Em contra estava a posição israelita de que as terras eram uma herança dada a  Israel por Deus, a título inalterável. A obediência a Deus proibia, pois, aceitar o princípio jurídico romano e, como contrária a esse mandamento, interpretavam a participação nos tributos. Uma outra questão era o culto ao Imperador que aparecia nas imagens das moedas. As imagens do imperador eram, pelo culto dado ao mesmo, as que produziam maior escândalo. Hipólito dirá que alguns exageram os preceitos de modo a não tocar as moedas afirmando que não é lícito nem tocar, nem olhar, nem fabricar imagens. Também não entram nas cidades cujas portas estão adornadas com imagens, pois consideram esse caminho como pecaminoso. 2) A outra maneira de considerar os impostos era a dos herodianos, que outrora viram em Herodes o Messias de Israel. Os impostos eram uma maneira de ter os romanos como amigos e realizar uma política de paz que, em definitivo, seria de bem-estar para o povo. Não existia mal algum em se deixar influir por culturas modernas e progressistas. Para estes, a recusa do pagamento de tributos era voltar a uma era obscurantista e  se expor a represálias por parte da potência dominadora. Não podemos pensar que estes tivessem o pensamento de Paulo de que toda autoridade procede de Deus (Rm 13, 1). A PERGUNTA: É lícito significa se está de acordo com a lei. Pagar o tributo a César seria, segundo os zelotas e os fariseus, dar dinheiro a um representante de um deus pagão. Seria manter o princípio de propriedade do Estado Romano sobre terras que Jahvé-Deus tinha dado a Israel a título inalienável. Segundo os juristas romanos, os indígenas tinham unicamente o usufruto das mesmas. Por isso a taxação era uma escravidão evidente, segundo os radicais palestinos. Diante deste fato, a resposta, se fosse favorável aos romanos, atrairia o desprezo do povo sobre Jesus. Mas se a resposta de Jesus fosse contrária ao pagamento do tributo, poderia ser causa suficiente para tratar Jesus como revoltoso e os herodianos acusá-lo-iam às autoridades, como realmente o fizeram, de impedir de pagar tributo [foros] a César (Lc 23,2).

PRIMEIRA RESPOSTA: Tendo conhecido Jesus a maldade deles, disse: por que estais me tentando, hipócritas? (18). Cognita autem Iesus nequitia eorum ait quid me temptatis hypocritae. Jesus conhece de imediato o laço e a intenção, totalmente maldosa, dos interlocutores. É uma cilada. E a sua ignorância e as suas palavras de louvor ao Mestre eram completamente falsas. Daí o título de hipócritas.

PETIÇÃO E SEGUNDA RESPOSTA: Mostrai-me a moeda do censo. Eles, então, lhe trouxeram um denário (19). Assim, lhes diz: De quem esta imagem e a inscrição? (20). Dizem-lhe: de César. Então lhes diz: restitui, pois, as (coisas) de César a César e as do Deus ao Deus (21) (sic). Ostendite mihi nomisma census at illi obtulerunt ei denarium. et ait illis Iesus cuius est imago haec et suprascriptio. dicunt ei Caesaris. Tunc ait illis reddite ergo quae sunt Caesaris Caesari et quae sunt Dei Deo. Quis traduzir literalmente o grego que tem uma especial força na sua simplicidade. A palavra essencial é apodote <591> [o reddite latino] que não é um simples dar, mas devolver, restituir, retribuir, pagar um débito. A Vulgata, como quase sempre é a melhor tradução do grego, pois o reddite significa devolver. A moeda que eles usavam pertencia ao César, pois foi cunhada em Roma (vide 17). Quais os bens que deveriam pagar ao César? Logicamente a paz, a segurança e os diversos benefícios e utilidades que de um bom governo obtêm os cidadãos, que eles aceitavam com o juramento de fidelidade e o sacrifício diário no templo. Sobre o censo, e o denário vede o comentário aos versículos 16 e especialmente o 17. Uma outra tradução do reddite é pagar, no sentido de pagar  uma dívida ou um benefício, que, no caso, vemos completamente coerente com os benefícios obtidos sob a dominação romana. Jesus pede a moeda onde estava escrita ao redor da efígie do César: César Tibério, do divino Augusto filho, ele mesmo Augusto, Pontifice Máximo. A moeda estava cunhada em Roma, como todas as moedas em ouro ou prata. Todos, tanto fariseus como herodianos, usavam a moeda, o que era de fato aceitar o domínio do César. A tradução mais exata da resposta  de Jesus seria: Devolvei [pagai] a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Sem dúvida, que Jesus aponta para uma dívida que temos, tanto com as autoridades civis como para com Deus. 1o) Ele estabelece uma clara distinção entre os deveres cívicos e os religiosos, não confundindo as áreas, mas separando-as. 2o) Toda autoridade da qual nos servimos, como se serviam do denário os judeus, tem origem divina, como ele respondeu a Pilatos: Nenhuma autoridade terias sobre mim se de cima não te fosse dada (Jo 19,11). 3º) Devemos pagar o tributo a César. 4º) Assim como pagamos o tributo a Deus, pois ambos são autoridades legítimas, que contribuem para o bem-estar de nossas vidas.

CONCLUSÃO: Deus quer ser representado na autoridade do homem, como diz Paulo, independentemente dessa autoridade ser boa ou má. Em Rm 3,1 afirma: Não há autoridade que não proceda de Deus e as autoridades que existem foram por Ele instauradas. Este princípio não pode ser interpretado como o fez Wycliffe (De Dominio Divino Libri Tres), afirmando que somente era real o domínio dos que não estavam em pecado mortal. E dele se serviu para desacreditar a autoridade eclesiástica, determinando como único princípio dominante a Bíblia, interpretada individualmente. Não o interpretavam assim Paulo e Pedro. O primeiro advertiu a Timóteo (1 Tm 2,2): “Se façam pedidos, orações, súplicas, ações de graças …pelos reis e todos os que detêm autoridade a fim de que levemos uma vida calma e tranquila, com toda a piedade e dignidade”. Pois os bandidos, os revolucionários da época tornavam a convivência cidadã em temor e insegurança contínuos, como sucede hoje pelo terrorismo e guerras revolucionárias. Por outra parte, Pedro em (1 Pd 2,18) atacará o princípio wycleffiano diretamente, já que escreve: “Sede submissos a qualquer instituição humana por causa do Senhor, quer ao rei, porque é soberano, quer aos governadores, delegados por ele para punir os malfeitores e louvar as pessoas de bem”. E aos escravos: “Sede submissos com profundo temor aos vossos senhores, não apenas aos bons e afáveis, mas também aos perversos (1 Pd 2,18)”.

PISTAS: 1) No mundo moderno, não interrogamos Jesus sobre o tributo a César, mas interrogamos a Igreja sobre o Jesus que está mostrando ao mundo: O homem oprimido tem adulterado a mensagem evangélica sobre o verdadeiro Jesus, Filho de Deus, Redentor e Salvador. Do evangelho tomamos unicamente a mensagem sobre a justiça e igualdade; e a fé, fundamento da vida cristã,  fica diluída em termos humanos. O Homem oprimido substitui o Deus encarnado.

2) Em Jesus queremos ver um revolucionário e, na revolução, um remédio universal, uma redenção necessária, embora dolorosa. Portanto, devemos favorecê-la e acompanhá-la com ilusão e até propagá-la como remédio dos males modernos. Da frase eu vim evangelizar os pobres, reduzimos o evangelho a uma simples consequência de semelhante afirmação. O resto da boa notícia não interessa.

3) É por isso, que os milagres de Jesus, ou são silenciados ou são negados e, entre eles, a Ressurreição. A vida eterna do evangelho é traduzida como vida melhor na terra, por uma divisão mais justa das riquezas. O sobrenatural é substituído pelo natural, o pão de cada dia desloca o Pão Eucarístico, necessário para a verdadeira vida. A política tem tomado o lugar da religião. Damos a César [o povo, ou melhor, o povinho é o César atual] o que é de César; mas não damos a Deus o que é de Deus, embora esse Deus moderno seja o Grande Arquiteto que anula o Cristo do qual temos recebido o nome. A fé se reduz a uma ideia mais conforme com a Filosofia natural do que com a dos versículos dos evangelhos.

4)Temos que nos perguntar se damos a Deus o que é de Deus. Porque, embora sabendo que ele é o verdadeiro Senhor de nossas vidas, o temos relegado a um segundo plano, quando nos declaramos independentes ou buscamos nosso próprio bem, no lugar da vontade que é absoluta no céu e que deveria ser também soberana na terra, como rezamos no Pai Nosso.

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