Comentário Exegético – III Domingo do Advento (Ano A)

EPÍSTOLA (Tg 5, 7-10)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: Este trecho é parte das exortações finais da carta de Santiago. O tempo de espera é pouco; logo a melhor maneira de sofrer contradições e perseguições, pelo fato de serem cristãos, é armar-se de paciência e resignação, tomando como exemplo as perseguições dos antigos profetas. O próprio apóstolo sofreu o martírio da parte dos judeus, servindo assim de exemplo e não só de palavras de estímulo que como diz o provérbio verba ducunt, exempla movent [as palavras guiam; os exemplos movem].

PERSEVERÂNCIA: Perseverai, pois, irmãos até a parousia do Senhor: Eis o agricultor aguarda o precioso fruto da terra, perseverando por causa dele, até que receba a primeira e última chuva(7). Patientes igitur estote fratres usque ad adventum Domini ecce agricola expectat pretiosum fructum terrae patienter ferens donec accipiat temporivum et serotinum. PERSEVERAI [makrothymësate<3114>=patientes estote] imperativo do verbo makrothymeö, cujo significado é ser constante, perseverar pacientemente, ser paciente frente às ofensas, manso e lento na vingança e na ira, e paciente e resignado diante das adversidades. Escolhemos perseverar, pois a parousia implica uma constância na fé e uma fortaleza diante das perseguições. Jesus profetizou dizendo: Sereis odiados de todos por causa de meu nome; aquele, porém, que perseverar até o fim, esse será salvo (Mt 10, 22). PAROUSIA [<3952>=adventum] é o termo técnico para designar a  vinda gloriosa de Jesus ao fim da história humana. A primeira comunidade não distinguia entre proximidade teológica e proximidade cronológica; por isso, durante algum tempo esperou a parousia como coisa iminente, como vemos em Paulo: a nossa salvação está agora mais perto do que quando no princípio cremos (Rm 13, 11). Uma outra ideia é que a parousia era o fim do templo e da era mosaica, e a primitiva Igreja pensou que as imagens apocalípticas eram  mais reais do que o estilo permitia. De fato, unicamente Mateus (24, 3) fala da consumação do século [ou da era], como deve ser traduzido synteleia tou aiönos [=consummatiónis saéculi], e não como certas traduções fim do mundo (espanhola, italiana). Logo, em boa lógica, até Mateus fala unicamente da destruição de Jerusalém, do templo e do fim [consumação] da era pré-messiânica. Por ser o dia do Senhor, supunha-se ser um dia de ira como foi a destruição de Jerusalém. Porém, em Lucas, temos uma clara referência de que Jesus não falava do fim do mundo ao escrever: Ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei a vossa cabeça porque a vossa redenção está próxima (21, 28). Alude, sem dúvida, ao costume dos vencidos de se prostrarem no chão de bruços para os vencedores pisarem sobre suas costas (Is 10, 6 e Dn 8, 7 e Sl 91, 13 ). Pelo contrário, o vencedor devia olhar para o alto, com diz Lucas. Mas a principal razão para não pensar em um final absoluto é a frase de Jesus: Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça (Mt 24, 34; Mc 13, 30 e Lc  21, 32). Daí a insistência na iminência dessa parousia que se traduziu na ruína do templo e no aniquilamento do AT como vemos em Paulo e agora em Tiago. Precisamente, este último parece esperar que a parousia seja para bem e felicidade dos cristãos, pois os compara com o agricultor que espera as duas CHUVAS necessárias para uma boa ceifa: a de outono [primeira] e a de abril [última]. É uma esperança de triunfo após um tempo de trabalhos e sofrimentos.

ÂNIMO: Perseverai também vós, fortalecei vossos corações porque a parousia do Senhor se aproximou (8). Patientes estote et vos confirmate corda vestra quoniam adventus Domini adpropinquavit. Escrita esta carta entre os anos 50 e 62, com razão pode o apóstolo afirmar que a Parouia está próxima, pois tal e como temos antes afirmado, esta aconteceria realmente no ano 70. E exorta logicamente a FORTALECER [stërizö <4741>=confirmare] com o significado de firmar, fixar, fortalecer e no caso da mente será segurar, confirmar a  mesma  ou os corações, como se dizia na época.

SEM CONTENDAS: Não vos queixeis uns aos outros, irmãos para não serdes condenados: eis o juiz está às portas (9). Mas existe uma outra interpretação: eram frequentes SEM QUEIXAS [stenazete <4727>=inemiscere] do verbo stenazö  com o significado de suspirar  (Mc 7, 34) ou gemer (Rm 8, 23), lamentar-se (Hb 13, 17). Escolhemos queixar com o significado de estar ofendido por um agravo ou afronta. Mostrar ressentimento ou desagrado mútuo, de modo a não evitar a condena pela conduta. É, pois, uma queixa judicial ou causa de litígio ou demanda judicial. CONDENADOS [katakrinö<2632>=iudicare] o verbo katakrinö é julgar com resultado condenatório, ou seja condenar, (Mt 12, 41), reprovar. Exemplo é Jesus dirigindo-se à mulher adúltera: ninguém te condenou? (Jo 8, 10). O próprio Jesus recomenda não condenar para não ser condenados (Mt 7, 1). Neste caso o juiz seria Jesus e a condena a da parousia. Mas existe uma outra interpretação: eram frequentes os litígios entre os cristãos e Paulo recomenda que não fossem levados aos tribunais civis mas que fossem caritativamente julgados pelos próprios irmãos (1 Cor 6, 1+). Por isso, Jesus dá o seguinte conselho: Entra em acordo com teu adversário enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão (Mt 5, 25). Tiago, pois, pede um basta já a todo litígio e contenda. A última frase o JUIZ ESTÁ ÀS PORTAS não deve ser interpretado necessariamente com o dia da parousia, comparado com o dia do Senhor do AT; mas pode ser interpretado no sentido de que em todo litígio quem condena é o juiz independentemente de se ter a razão.

O PARADIGMA: Tomai por modelo de sofrimento e de perseverança, meus irmãos, os profetas, os quais falaram em nome do Senhor (10). Exemplum accipite fratres laboris et patientiae prophetas qui locuti sunt in nomine Domini. MODELO [‘ypodeigma<5262>=exemplum] hypodeigma é signo, figura, cópia, exemplo, modelo. Ao falar de sofrimento e perseverança o autor toma como modelo os profetas do AT que falaram em nome do Senhor. O exemplo mais concreto é Jeremias; mas também Amós, Oseias, Elias, Isaías e Daniel sofreram perseguição por parte dos poderes públicos. Já Jesus, em Mt 5, 12, prenunciava a perseguição dos seus discípulos e trazia como exemplo as perseguições que sofreram os profetas. E assim dirá Jesus: todo o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias, a quem matastes entre o santuário e  o altar (Mt 25, 35). E é precisamente o serviço à palavra que merecerá a bênção do Senhor, como diz a última das bemaventuranças: Bemaventurados sois quando por minha causa vos injuriarem e vos perseguirem e, quando mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós (Mt 5, 12).

EVANGELHO (Mt 11, 2-11)

A PERGUNTA DE JOÃO

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)

INTRODUÇÃO: O evangelho de hoje contém três seções diferentes: Pergunta do Batista; resposta de Jesus; testemunho deste sobre João. Jesus responde à pergunta do Batista com fatos que confirmam a profecia de Isaías (cap 29 e 35) sobre a conduta do Messias. E, ao mesmo tempo, não deixa de louvar aquele que foi seu arauto e precursor. Uma questão que estava na mente dos seus contemporâneos, era o poder político do Messias. Jesus se desentende do mesmo e unicamente aponta a um messiado de salvação, em que a cura do corpo é a manifestação da cura interior. Toda doença era produto de um pecado (Jo 9, 2) e a libertação da doença era sinal do perdão do pecado (Jo 5, 14), condição que Jesus impõe a quem curou da cegueira ou, antes de curar, perdoa os pecados (Mt 9, 2); assim ele se acomoda ao pensamento dos seus contemporâneos. Um outro aspecto dessa profecia é a evangelização dos pobres que trataremos em seu devido lugar, tomando as citações, tanto do grego da Setenta como do hebraico original. Finalmente está o louvor do Batista, o maior entre os nascidos de mulher, mas inferior aos nascidos na água e no Espírito (Jo 3, 5), que formam parte do Reino de Deus e não do reino de Israel, ou da descendência de Abraão.

NO CÁRCERE: Porém, o João, tendo ouvido no cárcere as obras do Cristo, tendo enviado dois dos seus discípulos (2), disse-lhe: tu és o que vem, ou esperamos outro?(3). Ioánnes autem, cum audísset in vínculis ópera Christi, mittens duos de discípulis suis ait illi: Tu es qui ventúrus es, an álium exspectámus?
POR QUE ESTAVA PRESO?  Herodes, o Grande, teve cinco mulheres e onze filhos. Dois deles tinham o mesmo nome Filipos: Um  deles, filho de Mariamne II, de nome Herodes Filipe e o outro, filho de Cleópatra cujo nome era simplesmente Filipe. Das filhas de Herodes pouco sabemos. Mas um dos filhos de Herodes chamado Aristóbulo, teve uma filha que seria célebre: HERODÍADES. Era esta, pois, neta de Herodes, o Grande, e, portanto, sobrinha de  seu futuro esposo Herodes Filipe. Tinha nascido entre os anos 15-8 aC. Herodes Filipe era filho de Mariamne II, filha do Sumo sacerdote Simão. À morte de Herodes o Grande, Herodes Filipe fica à margem do governo e vive em Roma com sua mulher Herodíades. Ambos os esposos viviam em Roma quando Herodes Antipas,  meio irmão de Herodes Filipe  e tio também de Herodíades, viajou a Roma e se hospedou na casa do seu meio irmão. Herodíades, mulher ambiciosa, não se contenta com a vida particular, fora do fausto régio. É por isso que abandona seu marido e se une a Antipas. Ambos, Herodíades e Antipas,  enamoraram-se e, como consequência, Antipas repudia sua esposa legítima, filha do rei dos nabateus, Aretas IV. Ao voltar de Roma, Antipas levou consigo Herodíades e esta, sua filha Salomé. A mulher legítima pediu por carta licença para se retirar à fortaleza de Maqueronte, o que lhe foi concedido. Reuniu-se com seu pai, Aretas, que desde esse instante se tornou inimigo de Antipas. Alguns anos mais tarde Aretas declarou guerra a Antipas. Era o ano 36. Antipas foi ajudado pelo legado da Síria,  Vitélio; mas com a morte de Tibério, o legado retirou suas tropas. Calígula, o novo imperador, que tinha grande amizade com Herodes Agripa, irmão de Herodíades, deu a este último a tetrarquia de Filipe e depois a de Antipas. Agripa é constituido rei. Agripa acusou seu tio e cunhado [Antipas] de estar em tratos com os partos. Calígula  desterrou Antipas às Gálias no 39 dC. No desterro, perto de Lião, foi acompanhado por Herodíades. E pouco tempo depois morre no desterro. Filipe o tetrarca, era filho de Cleópatra, esta de Jerusalém. Seus domínios estavam na região nordeste do lago de Genesaré que compreendia os territórios de Auranítide, Bataneia, Gaulanítide e Traconítide, e, segundo Lucas, também a Itureia. Esta parte da Palestina era a menos povoada por judeus, mas cujo domínio era de suma importância para Roma por controlar o comércio e vias de comunicação, constituindo um sério contraforte contra persas e nabateus. Governou de 4 ac até 34 dC. Foi um governador pacífico e se deixou querer pelos seus súditos. Na sua morte os domínios passaram a ser controlados pelo delegado da Síria. Mas, três anos mais tarde, Calígula os concedeu a Agripa. Nosso Herodes Filipe casou-se com Salomé, a filha de Herodíades, a que dançou na festa de Antipas e pediu a cabeça do Batista. O INCESTO: Nos comentários, geralmente ouvimos falar de adultério, mas na realidade casar com a mulher do irmão enquanto este estava vivo, era caso de incesto, segundo Lv 18, 1: Não descobrirás a nudez da mulher de teu irmão, pois é a própria nudez de teu irmão. E o homem que toma por esposa a mulher de seu irmão comete uma torpeza, pois descobriu a nudez de seu irmão e morrerão sem filhos (Lv 20, 21). Segundo o sentir dos mestres da lei, quando homem e mulher se unem em matrimônio, formam uma só carne (Gn 2, 24). Considerava-se, pois, que a mulher era como se fosse o irmão, exceto o caso de morte em que ela era considerada livre (I Cor  7, 39). Por isso, se acostar [descobrir a nudez] era como se se acostasse com seu irmão: uma torpeza, um incesto. Por outra parte a lei permitia o divórcio; mas a mulher divorciada não poderia se casar com um irmão do seu antigo marido enquanto este estivesse vivo. O caso, pois, de Antipas com Herodíades era um incesto e não um adultério. A lei, como temos visto, estava clara e por isso o Batista clamava: Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão (Mc 6, 18). MAQUERONTE: Era uma fortaleza na ribeira do mar Morto onde, segundo Flávio Josefo, Herodes Antipas encarcerou e executou  João, o Batista. Foi construída por Alexandre Janeu no ano 88 aC a 8 Km ao leste do mar Morto e 13 ao norte do Arnon, pequeno riacho que desemboca no mar Morto, como defesa conta os nabateus. No mesmo período, foi defesa contra os romanos que a arrasaram em 56 aC. Foi reedificada entre 25 e 13 aC por Herodes o Grande. Numa colina estava a cidadela, a segunda em importância dos judeus segundo Plínio, que era também fastuoso palácio e prisão do reino. Embaixo, construiu a cidade. Era parte da Pereia, correspondente a Herodes Antipas. Nele ficou preso e foi degolado o Batista. Em 72 dC, a conquistaram os romanos de Lucílio Basso. Suas imponentes ruínas ainda não foram escavadas. Os cárceres da época eram completamente escuros, os prisioneiros estavam seguros às paredes por meio de correntes como vemos em At 6, 10. Isso não impedia que recebessem algumas visitas, muitas vezes pagas a preço de ouro. O ENVIO: Desde a prisão, ou como traduz a vulgata, in vinculis, estando atado ou preso, João escuta as obras de Jesus. João sente que alguma coisa está faltando na atuação de Jesus. Ele esperava outra coisa do Messias que tinha apontado como iniciador de um reino que não acabava de se tornar visível e efetivo. Talvez ele pensasse que Jesus deveria formar um exército e tentar libertá-lo, pois o Messias era a grande justiça de Javé. Justo e vitorioso é apelidado por Zacarias (9, 9-10). Um reino firmado e consolidado sobre o direito e a justiça. Porém, a conduta de Jesus nada disto fazia supor. Daí a dúvida e a pergunta: és tu o que vem ou esperamos outro?

A RESPOSTA DE JESUS: Então Jesus lhes disse: Indo, anunciai a João as coisas que ouvis e vedes (4): cegos veem, e  coxos andam, e leprosos são limpos e surdos ouvem; mortos ressuscitam e pobres são evangelizados (5). Et respondens Iesus ait illis euntes renuntiate Iohanni quae auditis et videtis caeci vident claudi ambulant leprosi mundantur surdi audiunt mortui resurgunt pauperes evangelizantur.  Marchai e anunciai a João o que ouvis e vedes: A resposta de Jesus está na pergunta de João sobre suas obras. Estas são milagres e, portanto, apontam a uma presença substancial divina. Cegos, coxos, leprosos, surdos e mortos. É uma citação implícita de Isaías 35,5-6: Então, abrir-se-ão os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos ouvirão. Pulará o coxo como um cervo e a língua do mudo cantará canções alegres. Uma segunda parte que é a evangelização dos pobres, como base intelectual e objetiva do processo, está também no terceiro Isaías 61, 1: O espírito do Senhor Javé está sobre mim, porque Javé me ungiu: enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres [lebasar anawim; em grego evanggelisasthai ptöchois, que a Vulgata traduz por ad anuntiandum mansuetis =a anunciar aos mansos; e a nova Vulgata ad anuntiandum laeta mansuetis], a curar os quebrantados de coração, e proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão presos, a proclamar um ano aceitável a Javé, e um dia de vingança do nosso Deus. Jesus agora apela ao grande profeta que anuncia a era messiânica para reafirmar seu modo de proceder. Jesus não dá uma resposta clara sobre quem ele é, mas sobre a era messiânica por todos esperada. Ela estava à vista e ele, o Batista, era o escolhido para anunciá-la como predisseram os profetas. O judaísmo dos tempos de Jesus esperava que, na nova era messiânica, as doenças e o mal em geral, desapareceriam. Deus, o médico de Israel, erradicaria as doenças; assim mesmo, esperava a repetição da época do Êxodo e seus milagres, mas não particularmente curas. Os discípulos de João perguntam pela pessoa e Jesus responde assinalando o tempo, que tem como marca essencial a evangelização dos pobres os ptochoi gregos, ou pauperes latinos. Em outra ocasião explicamos o significado da palavra ptochós [domingo XXII em presbiteros.org.br] que traduz o anawim do texto hebraico e que significa humilde [humble], baixo [lowly], manso ou pobre. A palavra original do hebraico é anawim que não pode ser traduzido por simples pobre econômico, mas, como vemos pelas duas Vulgatas, significam os desprotegidos, os que se encontram desamparados, como eram os exilados na Babilônia do terceiro Isaías. Fundamentar sobre o grego uma visão liberacionista do evangelho de Jesus é uma solução com pouco fundamento no evangelho. Especialmente quando a frase seguinte nos diz quais eram esses pobres: os cativos, aos quais promete a liberdade e aos encarcerados a abertura da prisão [to proclaim liberty to the captives, and the opening of the prison to them that are bound, da JK inglesa].  NOTA 1: Outra questão é que na lista de Jesus: cegos, surdos, coxos e mudos temos realmente uma lista dos mendigos da época e por isso Jesus pode terminar sua dissertação com a conclusão de que os pobres [ptochoi] são evangelizados. Fato que, sem dúvida, tanto Mateus aqui, como Lucas em 4, 18 usam a palavra grega para um fato real que se deu na vida de Jesus. Eles, os mendigos, foram os primeiros nos quais era clara a salvação e o ano aceitável a Javé, que Lucas traduz como ano de graça e conscientemente retira a coleta final: dia de vingança de nosso Deus. NOTA 2: Na lista de Jesus, segundo Mateus, vemos uma extrapolação, que provavelmente tem levado os exegetas a uma interpretação errônea. É o caso dos leprosos que são limpos, dos mortos que ressuscitam. Mateus não é cuidadoso na narração dos fatos nem na citação dos profetas. Duplica os endemoninhados de Gadara (8, 28) os cegos em Jericó (20, 30), e são dois os malfeitores que blasfemam na cruz (27, 44). E sobre citações: acrescenta meu povo ao Israel final de Mq 5, 1 [provavelmente um parêntese explicativo que na época formava parte do texto].  A citação mais questionada é, será chamado Nazaraeus (Mt 2, 23), que não existe em nenhum dos profetas. Estes são só alguns exemplos. O mais importante é em espírito que Mateus (5, 3) acrescenta possivelmente como explicação ao pobres original que Lucas traz no seu evangelho (Lc  6, 20). A inclusão, pois, dos dois grupos é uma redundância do evangelista que objetiva mais a salvação do que a pobreza dos indivíduos. E como era frequente na época, nesta citação implícita de Jesus como reposta, se incluem duas passagens de dois profetas diferentes: 1º e 3º Isaías, que não eram diferenciados como autores diferentes.

O ESCÂNDALO: Portanto, ditoso é quem não encontra escândalo em mim (6). Et beatus est qui non fuerit scandalizatus in me. O MAKARISMO: Temos explicado no XII Domingo o significado de makários, ou beatus em latim com motivo das bemaventuranças. Tanto em Mateus como Lucas, Jesus termina sua resposta com uma frase surpreendente: Portanto, está abençoado [por Deus] aquele que não se tenha escandalizado em mim [na minha pessoa e atuação]. Temos traduzido o Kai grego, que corresponde ao Vau hebraico, tendo este significado de consequência, causa e outros, além de simples conjunção. Que quer dizer Jesus com a palavra escândalo? A raiz é skandalon que significa armadilha, laço, obstáculo, impedimento. Jesus quer dizer que existirão muitos que verão na sua pessoa  um impedimento para entrar na nova era e, portanto neles se realizará a profecia de João: serão batizados com o fogo da destruição à semelhança como uma cidade assediada, que não quis se render inicialmente ao sitiador. Ela era condenada ao fogo e à destruição, sem misericórdia.

ELOGIO DO BATISTA: Saindo, pois, estes, começou Jesus a dizer às turbas acerca de João: Que saístes ao descampado ver? Um caniço, sendo agitado pelo vento? (7). Pelo contrário, que saístes a ver? Um homem em (roupas) finas vestido? Vede, os que vestem (roupas) finas estão nas casas dos reis (8). Illis autem abeuntibus coepit Iesus dicere ad turbas de Iohanne quid existis in desertum videre harundinem vento agitatam Sed quid existis videre hominem mollibus vestitum ecce qui mollibus vestiuntur in domibus regum sunt. O DESERTO: Uma vez idos os enviados de João, Jesus começou um panegírico de João com a pergunta: Que saístes a ver no deserto? Porque não era um caminho natural nem um lugar apropriado para passar a noite ou o dia. O deserto era um lugar estéril amaldiçoado por Deus, terra temível e espantosa, onde moravam os demônios (Mt 12, 43). Por outra parte, era do deserto que se esperava, como no Êxodo, uma ação divina salvífica. Então o deserto –dirá Isaías- se transformará em vergel e o vergel será tido como floresta (35, 15). A CANA: Contrariamente ao que temos ouvido que uma cana é frágil e por sua moleza pode se bambolear, na realidade, entre os eruditos hebreus da época, ela era símbolo de firmeza. Seja um homem sempre delicado como uma cana e não duro e obstinado como um cedro. Quando os 4 ventos da terra sopram, a cana vai e vem com os ventos e quando eles cessam a cana lá está em seu lugar. Consistência e delicadeza é a representação de uma cana perante os golpes rudes da vida. O contraste do parágrafo seguinte dá pé para afirmar também que nestas primeiras frases não está a figura de João. AS ROUPAS FINAS: Hoje os novos exegetas falam de que não é o Batista nestas duas primeiras perguntas o atingido, mas as margens do Jordão e Herodes Antipas. O deserto da Judeia, perto do rio Jordão, era um campo de canaviais de rio em abundância e, por outra parte, nele existiam os palácios de inverno de Herodes como eram Jericó, Maqueronte e Massada. Antipas e os seus cortesãos gostavam de vestidos luxuosos. Portanto, as duas perguntas primeiras de Jesus estavam dirigidas ao tetrarca e seu ambiente: Fostes ver um canavial perto do deserto ou um  homem luxuosamente vestido como era Antipas, ou era um profeta?

UM PROFETA: Mas que saístes para ver? Um profeta? Sim, digo-vos e muito melhor que profeta (9). Esse, pois, é acerca de quem está escrito: Eu envio meu mensageiro diante de tua face, o qual disporá teu caminho diante de ti (10). Sed quid existis videre prophetam etiam dico vobis et plus quam prophetam. hic enim est de quo scriptum est ecce ego mitto angelum meum ante faciem tuam qui praeparabit viam tuam ante te. O PROFETA: Aqui, sim, que Jesus dá a razão a seus ouvintes. Antipas e seus palacianos não mereciam a pena. Eram verdadeiros farsantes da vida, mas que sempre ocupam infelizmente as páginas do coração. À pergunta de: se foram ver um profeta, Jesus afirma que João era mais do que um simples profeta. O ofício destes era apontar o futuro de Israel, ou seja, a escatologia que inaugurasse o novo eón messiânico, desde Isaías até Malaquias. Os novos tempos já estavam às portas e aquele que indicava, como último sinaleiro, a nova era, era precisamente João. Por isso era mais do que um profeta. Era o enviado especial de quem estava escrito: envio meu mensageiro diante de tua face de modo a preparar teu caminho diante de ti. Mas quem é o profeta que predisse esse anjo precursor? 1º) Isaías, do qual temos os textos: Uma voz clama: no deserto abri um caminho para Iahveh; na estepe aplainai uma vereda para o nosso Deus (40, 3). E: De todos os meus montes farei caminhos, as minhas entradas serão elevadas (49, 11). 2º) Malaquias, em quem podemos ler: Eis que vou enviar o meu mensageiro para que prepare um caminho diante de mim. Então, de repente, entrará em seu templo o Senhor que vós procurais, o Anjo da Aliança que vós desejais, eis que ele vem, disse Iahveh dos exércitos (3,1). E em 3, 23-24,  segundo as bíblias católicas, ou 4, 5-6 na JK: Eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o dia de Iahveh grande e terrível. Ele fará voltar o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais para que eu não venha ferir a terra com anátema [herém, ou exterminação, no hebraico original]. Como vemos em ambos os profetas o caminho é preparado DIANTE DO SENHOR. Já  os textos do NT falam DIANTE DE TI. Em outros contextos, mas se referindo ao mesmo João, temos Marcos 1,3: Voz que grita no deserto: Preparai o caminho do Senhor. Aplainai suas sendas. Em Lucas temos: E tu menino, serás chamado profeta do Altíssimo, pois irás diante do Senhor para preparar seus caminhos (1, 76), Como está escrito no livro do profeta Isaías: Voz que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor. Aplainai suas sendas (3, 4). O ANJO DO SENHOR: A) CRISTO: Uma interpretação de uma nota (?) da bíblia evangélica JK diz que existe uma forte evidência de que as manifestações do anjo do Senhor são, de fato, manifestações de Cristo, o Filho de Deus. As coisas ditas do anjo do Senhor estão além da categoria dos anjos e unicamente são aplicáveis a Cristo. Agar o chama com o nome de Deus: tu és El Roi [Deus que vê](Gn 16, 13). Quando o anjo do Senhor apareceu através da sarça ardente a Moisés, tanto o anjo como Moisés afirmam ser ele Deus: Elohim [Deus] o chamou do meio da sarça (Êx 3, 2-6). No capítulo 23, 21, o anjo do Senhor tem o poder de perdoar os pecados e se apropria do nome de Deus em si mesmo: Nele está o meu Shem [nome]. Quem é esse anjo do Senhor em definitivo? Segundo esta nota da JK seria o próprio Cristo – Jesus. B) MOISÉS, como tipo do Batista. Em Êxodo 23, 20-21 o anjo poderia ser o próprio Moisés falando em terceira pessoa? Não existe objeção séria a essa identificação no texto do Êxodo. Nesse caso, Moisés seria a figura representativa do Batista. Mas esta interpretação está fora do lugar, pois Jesus fala diretamente do Batista como anjo do Senhor. E o Batista tem como figura tipo Elias. C) O BATISTA no lugar de Elias: Assim, a Bíblia de Jerusalém diz que esse anjo/mensageiro parece ser distinto de Deus, se bem que a sua ação seja a de Javé. Esse anjo está tão cercado do Senhor, que poderia ser confundido com Ele. No NT anuncia o nascimento de Jesus aos  pastores (Lc 2, 0-10). Jesus fala de que existem muitos nos céus e que os homens da ressurreição serão como eles (Mt 22, 30).  Neste caso, João seria o anjo e Jesus aquele a quem João prepara o caminho. O texto de Mateus: Esse, pois, é acerca de quem está escrito: Eu envio meu mensageiro diante de tua face, o qual disporá teu caminho diante de ti (11, 10), tem um lugar paralelo em Lucas: Ele é de quem está escrito: Eis que eu envio meu mensageiro à tua frente, ele preparará o teu caminho diante de ti (7, 27). Os dois textos coincidem exatamente palavra por palavra no grego original. DIANTE DE TI: Os textos proféticos, Isaías e Malaquias,  falam evidentemente dos caminhos do Senhor. Porém, os textos do NT falam diante de ti, que parece ser o Messias. O problema é que Malaquias (3,1), o único citado pelos comentaristas, não diz precisamente isso, mas: Eu enviarei meu mensageiro a preparar o caminho diante de mim, de Javé como protagonista, logicamente. Todavia, os dois evangelistas [Mt 11. 10 e Mc 1,2)] citam as palavras de Jesus como se referindo a ele mesmo. Para isso, misturam Malaquias com Êxodo 23, 20 em que Javé envia um anjo para que guarde Israel no caminho e o conduza ao lugar preparado para ele. Ou talvez seja só o Êxodo que devemos ter como citado, e esse anjo, que foi Moisés, agora se transforma em João que deve guiar o povo a uma nova terra prometida? A citação do Êxodo é: Eis que eu envio um anjo [malak, mensageiro] diante de ti para que te guarde pelo caminho e te leve ao lugar prometido. É claro que na passagem do Êxodo, o tu, diante do qual o anjo precede, era o povo de Israel. Podemos ter duas interpretações para esse diante de: A) Diante do povo de Israel, como vemos pelo texto do Êxodo 23, 20, que diz: Eis que te envio um anjo diante de ti para que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que tenho preparado para ti. Esse anjo ou guia tão perto do Senhor, que poderia ser confundido com Ele, era Moisés falando em terceira pessoa. É um anjo protetor (Gn 24, 7 e Nm 20, 16) que já anuncia o livro de Tobias (Tb 5, 4+). O Batista seria um novo Moisés que preparava o povo para a terra de salvação. B) Diante de Jesus: Esse tu diante de quem os caminhos são facilitados, poderia ser o próprio Jesus que, neste caso, toma o lugar de Iahveh e é por isso que conscientemente os evangelistas trocam expressamente o diante do Senhor por diante de ti, pois Jesus era o Senhor. Nesse caso, João seria o anjo e Jesus aquele a quem João prepara o caminho. Esta é a interpretação mais aceita pelos exegetas modernos. Porém, no nosso caso, mais parece que essa ação protetora e dirigente é a do Batista com respeito ao povo que o escutava para dirigi-lo ao terreno da salvação. Era uma missão muito próxima da que teve Moisés, que dirigiu o povo precisamente no deserto. Daí a pergunta que dirigiram ao Batista: És tu o Messias? (Lc 3, 15). E ele teve que responder que não era o Messias  (Jo 1,20). O importante é saber que João era o anjo do Senhor, tão importante como o do Gênesis ou o Moisés do Êxodo.

O ELOGIO: Certamente vos digo: Não têm surgido entre os nascidos de mulheres (sic) melhor do que João, o Batista; porém o mínimo no Reino dos céus é melhor do que ele (11), Amen dico vobis non surrexit inter natos mulierum maior Iohanne Baptista qui autem minor est in regno caelorum maior est illo. O MELHOR:  Entre os nascidos de mulher não existe melhor do que João. Jesus não tem paliativos em sua apologia do Batista. Ele estava até por cima de Moisés. A razão é que foi escolhido para o trabalho mais importante: apontar quem era aquele que todo Israel esperava como seu salvador. Porém, esta parte tem sua contrapartida: o menor do Reino será maior do que o maior da época anterior ao reino. Infelizmente, a teologia tem sido usada como intérprete numa situação em que a hermenêutica tem o labor fundamental. A exegese deve ter a primeira palavra e a teologia deve respeitar e interpretar a mesma e não deturpá-la.  Devemos partir do ponto de vista, não teológico, em que o batismo nos torna filhos de Deus, mas de que as ideias dos ouvintes devem ter prioridade na interpretação do texto. E essas ideias têm como base o conhecimento de que a presença do Messias era parte essencial do novo Reino. Como profeta, João anuncia o Messias que vem [está por vir]. Os que pertencem ao Reino aceitam o Messias que veem [estão vendo]. O reino já não é um futuro, mas uma presença real. Existe a diferença entre uma salvação em esperança e uma salvação de fato. Não é o fato de comparar os méritos de João com os méritos dos discípulos de Jesus. O caso é a eleição divina que compara um profeta de futuro com uma realidade presente que se tornou o cumprimento do vaticínio. Por isso qualquer presente é melhor que um passado obsoleto. Não é possível emendar um vestido velho com um pano novo (Mt 9, 16).

PISTAS: 1) A pergunta de João está na linha da esperança dos judeus por um mundo melhor. O que deve vir é o Messias em pessoa. A resposta de Jesus o identifica com um messiado especial com a esperança dos mais humildes, com um mundo novo diferente, em que o antigo, por mais excelente que fosse, seria sempre inferior ao mínimo novo.

2)Porém, neste Reino novo, a pessoa de Jesus era fundamental, de modo que a fé nele se tornava consequência da admissão de suas palavras. Por mais que estas parecessem difíceis e duras (Jo 6, 60), elas eram causa de vida eterna (idem 6, 68). Jesus, ou escandalizava, ou era fielmente seguido. Porque a razão de escândalo está em sua humilde aparência, em sua derrota como homem e como profeta. Em sua cruz (1 Cor 1, 23), quando poderia ter usado legiões de anjos em sua defesa, ele preferiu a morte que implicava a vitória aparente de seus inimigos. E precisamente nessa derrota está a base de seu triunfo final.

3)Paulo compreendeu bem a relação derrota/triunfo quando se propôs pregar unicamente Cristo e Cristo crucificado (1Cor 1, 23). Contrariamente a todas as grandes figuras da História, Jesus nasce na mais humilde das moradas e morre no mais odiado dos tormentos. Compreender isto e vivê-lo como norma de vida é entender o amor infinito de Jesus e a misericórdia sem limites do Pai.

Facebook
Twitter
LinkedIn

Biblioteca Presbíteros