A concupiscência, inerente à natureza humana?

É frequente os autores espirituais referirem-se à concupiscência que existe em todo o homem como algo inerente à sua natureza, mas impedido por Deus ao criar o homem e colocá-lo no paraíso terrestre: seria a imunidade da concupiscência, à semelhança da imunidade da morte, do sofrimento e do erro, como dons preternaturais, que Adão perderia para toda a humanidade com o seu primeiro pecado [1].

Será de facto a imunidade da concupiscência – de que gozavam Adão e Eva – um dom preternatural? Os outros dons preternaturais enumerados perderam-se para a humanidade depois do pecado original, pois não correspondiam à natureza humana: por sua natureza, o homem está destinado a errar, a sofrer e a morrer, pois o erro, o sofrimento e a morte são inerentes à natureza humana. Se a concupiscência fosse inerente à natureza humana, não significaria que Deus criara a natureza do homem com a inclinação para o mal? O erro, o sofrimento e a morte são limitações da natureza humana, em si não têm razão de culpa pessoal; mas a concupiscência, embora não seja pecado depois do baptismo, inclina a pecar.

Por isso, Deus omnipotente e infinitamente bom não pode ser causa de criar o homem com inclinações que o levem ao pecado [2]; estas inclinações provêm do pecado. Assim o diz o Concílio Vaticano II: “O que a Revelação divina nos dá a conhecer, concorda com os dados da experiência. Quando o homem olha para dentro do seu próprio coração, descobre-se inclinado também para o mal, e imerso em muitos males, que não podem provir do seu Criador, que é bom” (Gaudium et spes, 13).

A inclinação para o mal é sempre originada por um pecado [3], assim como um acto virtuoso supõe algum travão a essa inclinação: é um dado da nossa experiência diária. Daí, podemos dizer por analogia que a forte inclinação para o mal conhecida por fomes peccati será devida a um pecado de especial gravidade, como é o pecado original; este pecado é perdoado no baptismo, mas a concupiscência sua consequência permanece, embora de algum modo atenuada [4].

Vejamos como o Catecismo da Igreja Católica nos apresenta a concupiscência, ao tratar do 9.º e do 10.º mandamentos.

“Em sentido etimológico, «concupiscência» pode designar todas as formas veementes do desejo humano. A teologia cristã deu-lhe o sentido particular de impulso do apetite sensível, contrário aos ditames da razão humana. O apóstolo São Paulo identifica-a com a revolta que a «carne» instiga contra o «espírito» (cf. Gal 5, 16. 17. 24; Ef 2, 3). Procede da desobediência do primeiro pecado (cf. Gen 3, 11). Desregra [perturbat] as faculdades morais do homem e, sem ser nenhuma falta em si mesma, inclina o homem para cometer pecado (cf. Concílio de Trento, Decreto sobre o pecado original, c. 5: DS 1515)” (n. 2515).

O movimento do apetite sensitivo (paixão) pode ser concupiscível (desejo de algo agradável aos sentidos) ou irascível (aversão a algo desagradável aos sentidos).

Neste sentido psicológico, a concupiscência seria o movimento do apetite sensitivo, concupiscível ou irascível, o qual pode ser conforme ou não à razão, portanto, uma inclinação moralmente boa ou má [5].

Em sentido teológico, num primeiro momento, a concupiscência passou a designar o movimento do apetite sensitivo contrário à recta razão. Posteriormente, a concupiscência já não se refere apenas ao movimento do apetite sensitivo, mas a todo o apetite, sensitivo ou volitivo, contrário à recta razão. É assim que refere o Concílio de Trento, declarando que essa inclinação para o mal provém do pecado original e inclina a cometer pecado (cf. DS 1515).

S. Paulo, ao opor «carne» a «espírito» não se refere apenas aos pecados sensíveis, mas a todos os pecados que se opõem à vida segundo o Espírito.

Vemo-lo numa citação de S. João Paulo II: “Para o Apóstolo, não se trata de desprezar e condenar o corpo que, com a alma espiritual, constitui a natureza do homem e a sua personalidade de sujeito; pelo contrário, ele fala das obras, ou antes, das disposições estáveis, virtudes e vícios, moralmente boas ou más, que são o fruto da submissão (no primeiro caso) ou, pelo contrário, da resistência (no segundo caso) à acção salvadora do Espírito Santo. É por isso que o Apóstolo escreve: «Se vivemos pelo Espírito, caminhemos também segundo o Espírito» (Gal 5, 25)” [6].

“São João distingue três espécies de cupidez ou concupiscência: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida (cf. 1 Jo 2, 16). Segundo a tradição catequética católica, o nono mandamento proíbe a concupiscência carnal; e o décimo, a cobiça dos bens alheios” (n. 2514).

Na realidade, a tripla concupiscência referida por S. João corresponde ao sentido teológico da concupiscência, como inclinação para o mal derivada do pecado original. Por concupiscência da carne entende-se a busca desordenada do que agrada ao apetite sensitivo (cf. nn. 2517, 2529 e 2530); por concupiscência dos olhos, a busca desordenada dos bens terrenos, alheios ou próprios (cf. n. 2536); e por soberba da vida, a busca desordenada do amor próprio.

“No homem (…) trava-se uma certa luta de tendências entre o «espírito» e a «carne» [ou seja, a concupiscência]. Mas esta luta, de facto, faz parte da herança do pecado [original], é uma consequência dele e, ao mesmo tempo, uma sua confirmação. Faz parte da experiência quotidiana do combate espiritual” (n. 2516).

Isto é, a concupiscência que existe em todo o homem confirma a existência do pecado original, uma vez que ela não podia existir no momento da criação, já que Deus criou o homem bom e não inclinado para o pecado [7].

Como o Baptismo, embora perdoe o pecado original, não elimina a concupiscência – ainda que a atenue –, “o baptizado tem de continuar a lutar contra a concupiscência da carne e os desejos desordenados”, isto é, toda a inclinação para o mal (n. 2520).

O nono mandamento “tem por objecto a concupiscência da carne” (desejo desordenado do apetite sensitivo)”, enquanto “o décimo mandamento proíbe cobiçar o bem de outrem” [8].

 Dissemos que a “concupiscência dos olhos” não se reduz ao bem de outrem, mas se refere a todos os bens terrenos.

A «concupiscência dos olhos» aparece retratada no Catecismo da Igreja Católica:

“(…) O Deus das promessas desde sempre pôs o homem de prevenção contra a sedução daquilo que, desde as origens, aparece como «bom para comer, […] de atraente aspecto e precioso para esclarecer a inteligência» (Gen 3, 6)” (n. 2541).

A concupiscência ou inclinação para o mal também está retratada no mesmo Catecismo:

“(…)A inadequação entre o querer e o fazer (cf. Rom 7, 15) manifesta o conflito entre a Lei de Deus, que é a «lei da razão», e uma outra lei «que me retém cativo na lei do pecado, que se encontra nos meus membros» (Rom 7, 23)” (n. 2542).

Retomemos a questão inicial de a concupiscência ser ou não inerente à natureza humana, segundo o Catecismo da Igreja Católica.

“O primeiro homem não só foi criado bom, como também foi constituído num estado de amizade com o seu Criador, e de harmonia consigo mesmo e com a criação que o rodeava; (…)” (n. 374).

“A Igreja (…) ensina que os nossos primeiros pais, Adão e Eva, foram constituídos num estado de santidade e de justiça originais. Esta graça da santidade original era uma participação na vida divina” (n. 375).

Trata-se de um dom sobrenatural.

“Todas as dimensões da vida do homem eram fortalecidas pela irradiação desta graça. Enquanto permanecesse na intimidade divina, o homem não devia nem morrer (cf. Gen 2, 17; 3, 19), nem sofrer (cf. Gen 3, 16). A harmonia interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher (cf. Gen 2, 25), enfim, a harmonia entre o primeiro casal e toda a criação, constituía o estado dito «de justiça original»” (n. 376).

Tratar-se-ia de dons preternaturais, isto é, não exigíveis pela natureza humana criada, como reflexo da graça santificante na alma?

Sem dúvida, não morrer e não sofrer não são exigíveis pela natureza humana. E a harmonia entre homem e mulher, não obstante a diferença entre eles, não é própria da natureza humana? Portanto, esta harmonia não seria um dom preternatural, mas um dom natural, conforme com a bondade da natureza humana criada por Deus infinitamente bom. O mesmo se poderia dizer da harmonia interior da pessoa humana (e talvez da harmonia entre o homem e o resto da criação).

“O «domínio» do mundo, que Deus tinha concedido ao homem desde o princípio, realizava-se, antes de mais, no próprio homem como domínio de si. O homem era íntegro (intactus) e ordenado em todo o seu ser, porque livre da tríplice concupiscência (cf. 1 Jo 2, 16), que o sujeita aos prazeres dos sentidos, à ambição dos bens terrenos e à afirmação de si contra os imperativos da razão” (n. 377).

Aqui se ilustra bem a harmonia interior da pessoa humana, como efeito da bondade da criação e não como dom preternatural. Seria rebuscado dizer que Deus tinha criado o homem com inclinação para o mal e, logo a seguir, lhe comunicara o dom preternatural do domínio de si! [9]

A tripla concupiscência a que se refere 1 Jo 2, 16 (concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida) está bem explicada neste ponto n. 377: inclinação desordenada do apetite sensitivo, inclinação desordenada da vontade de possuir bens terrenos e inclinação desordenada do amor próprio.

E o trabalho prazenteiro no Paraíso terreno (n. 378)? Segundo a natureza humana, o trabalho causaria umas vezes prazer, outras sofrimento. Se o trabalho era sempre prazenteiro, seria dom preternatural, o da imunidade do sofrimento.

Consequências dramáticas do primeiro pecado: Adão e Eva perdem imediatamente a graça da santidade original; passam a ter medo de Deus (n. 399).

Fica destruída a harmonia da justiça original (n. 400): o domínio da alma sobre o corpo; a união do homem e da mulher; a relação com a criação.

Quer dizer: perdem o dom sobrenatural da graça e os dons preternaturais; desperta a concupiscência e os outros dons naturais são gravemente afectados.

“(…) a Igreja sempre ensinou que a imensa miséria que oprime os homens, e a sua inclinação para o mal e para a morte não se compreendem sem a ligação com o pecado de Adão e o facto de ele nos ter transmitido um pecado de que todos nascemos infectados e que é «morte da alma» (Concílio de Trento, Decreto sobre o pecado original, c. 2: DS 1512). (…)” (n. 403).

Adão e Eva transmitem a todos a natureza humana num estado decaído, privada da santidade e justiça originais (n. 404).

“(…), mas a natureza humana não se encontra totalmente corrompida: está ferida nas suas próprias forças naturais, sujeita à ignorância, ao sofrimento e ao império da morte, e inclinada ao pecado (inclinação para o mal, que se chama concupiscência). (…)” (n. 405).

Conclusão: Embora pouco estudado este tema, parece que se pode concluir que a harmonia interior do homem ao ser criado era inerente à sua natureza humana, um dom natural e não preternatural, que Adão e Eva perderam com o pecado original.

Daí que a existência actual no homem da concupiscência (desordenada) pode ser uma prova da existência do pecado original transmitido por Adão e Eva.

Como se sabe, a Virgem Maria, por Deus omnipotente “preservada intacta de toda a mancha do pecado original no primeiro instante da sua conceição” (Pio IX, Bula Innefabilis DeusDS 2803) [10], estava cheia de graça e imune da concupiscência, mas submetida ao erro, à tentação de fora, ao sofrimento e à morte.

Jesus Cristo, Verbo de Deus feito homem, ao assumir a natureza humana transmitida por Adão e Eva, excepto o pecado, a concupiscência e o erro por serem incompatíveis com a sua divindade, esteve submetido à tentação de fora, ao sofrimento e à morte [11].


[1] Cf., por exemplo, F. FERNÁNDEZ CARVAJAL na sua difundida obra Hablar con Dios. Meditaciones para cada día: “Dios enriqueció además la naturaleza de Adán con los dones, también gratuitos, de la inmunidad de la muerte, de la concupiscencia y de la ignorancia, llamados dones preternaturales” (vol. III, Madrid 1987, n. 80, p. 642, 2º).

[2] “Deus é infinitamente bom e todas as suas obras são boas” (Catecismo da Igreja Católica, n. 385). “Saída da bondade divina, a criação partilha dessa bondade: «E Deus viu que isto era bom […] muito bom» (Gen 1, 4. 10, 12, 18, 21, 31)” (Catecismo da Igreja Católica, n. 299). De modo particular, a criação do homem partilha da infinita bondade de Deus: «E Deus viu que era muito bom» (Gen 1, 31).

[3] “O pecado [parece referir-se sobretudo ao pecado mortal] arrasta ao pecado; gera o vício, pela repetição dos mesmos actos. Daí resultam as inclinações perversas, que obscurecem a consciência e corrompem a apreciação concreta do bem e do mal. Assim, o pecado tende a reproduzir-se e reforçar-se, embora não possa destruir radicalmente o sentido moral” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1865).

[4] “No baptizado permanecem, no entanto, certas consequências temporais do pecado, como os sofrimentos, a doença, a morte, ou as fragilidades inerentes à vida, como as fraquezas de carácter, etc., assim como uma inclinação para o pecado a que a Tradição chama concupiscência ou, metaforicamente, a «isca» ou «aguilhão» do pecado («fomes peccati»): «Deixada para os nossos combates, a concupiscência não pode fazer mal àqueles que, não consentindo nela, resistem corajosamente pela graça de Cristo. (…)» (Concílio de Trento, Decreto sobre o pecado original, c. 5: DS 1515)” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1264).

[5] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2535: “O apetite sensível leva-nos a desejar as coisas agradáveis que não possuímos. Exemplo disso é desejar comer quando se tem fome ou aquecer-se quando se tem frio. Estes desejos são bons em si mesmos; muitas vezes, porém, não respeitam os limites da razão e levam-nos a cobiçar injustamente o que não é nosso e que pertence, ou é devido, a outrem”.

[6] JOÃO PAULO II, Enc. Dominum et vivificantem, 55. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2516.

[7] Esta constatação corresponde ao que alguns autores apelidam de indícios de um pecado original (cf., por exemplo, S. TOMÁS DE AQUINO, Contra gentes, IV, 52).

Mais recentemente, encontramos uma afirmação clara em JOSÉ ANTONIO SAYÉS, Teología de la creación, Madrid 2002, p. 487: “Por lo que se refiere a la concupiscencia, entendida como desarreglo global de la persona humana (y no como tendencia sexual física), no se puede decir que sea una dimensión propia de la naturaleza, pues entonces resultaría que Dios habría creado al hombre con una inclinación al pecado”.

[8] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2534.

[9] O apóstolo S. Tiago dirá claramente que Deus não induz ninguém a pecar: “Ninguém, quando é tentado, diga que é tentado por Deus; pois Deus não tenta ninguém para fazer o mal” (Tgo 1, 11).

[10] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 491.

[11] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 612.

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