O Distintivo do Cristão!
No Evangelho (Lc 4,21-30), encontramos Jesus na Sinagoga, onde disse: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabais de ouvir. Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam de sua boca” (Lc 4,22). Mas, os nazarenos logo se deixaram envolver em considerações demasiadamente humanas: E diziam: “Não é este o filho de José? E se era realmente o Messias, porque não fazia ali os mesmos milagres que tinha feito em outros lugares? Não tinham igual direito os seus conterrâneos?
Pressentindo os seus protestos, Jesus responde: “Nenhum profeta é bem recebido em sua pátria” (Lc 4,24). Mas, nem por isso muda de atitude. Pelo contrário, procura demonstrar-lhes que o homem não pode ditar leis a Deus e que Deus tem a liberdade de distribuir os seus dons a quem quer. Recorda o caso da viúva de Sarepta, a quem foi enviado o profeta Elias, com preferência a todas as viúvas de Israel; e do estrangeiro Naaman, único leproso curado por Eliseu. Jesus quer fazer compreender aos seus conterrâneos que veio trazer a salvação, não a uma cidade ou a um povo concreto, mas a todos os homens, e que a graça divina não se vincula a uma pátria, a uma raça, ou a méritos pessoais, mas é totalmente gratuita. A oposição dos nazarenos torna-se violenta. Cegos pela pequenez de suas mentes e despeitados por não conseguirem o que pretendiam, “levantaram-se e o expulsaram da cidade”. Levaram-no até alto do monte…, com a intenção de lança-lo no precipício (Lc 4,29).
Tal é a sorte que o mundo guarda para aqueles que, como Cristo, têm por missão o anúncio da verdade. Confirma-o o episódio bíblico da Vocação de Jeremias (Jr 1,4-5. 17-19). Deus tinha escolhido Jeremias como profeta, antes de nascer, mas, ao tomar conhecimento, por revelação divina, quando jovem, desta eleição, treme e, pressentindo futuras contrariedades, quer recusar. Mas Deus anima-o: “Não temas porque estarei contigo para te livrar” (Jr 1,8). O homem escolhido por Deus, para ser porta-voz da Sua Palavra, pode contar com a graça de Deus que se lhe antecipa e o acompanhará em todas as situações. Não lhe faltarão contrariedades, perigos e riscos, tal como não faltaram aos profetas e ao próprio Jesus. Apesar disso, Deus também o anima, tal como aconteceu a Jeremias: “eles farão guerra contra ti, mas não te vencerão, porque eu estou contigo para te livrar” (Jr 1,19).
Numa das mais belas páginas do Novo Testamento e de toda a Bíblia: o chamado “hino à caridade” do Apóstolo Paulo (cf. 1 Cor 12,30 – 13,13), o Espírito Santo fala-nos de umas relações entre os homens completamente desconhecidas do mundo pagão, pois têm um fundamento totalmente novo: o amor a Cristo. Todas as vezes que fizestes isso a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes (Mt 25,40).
A virtude sobrenatural da caridade não é um mero humanitarismo. “O nosso amor não se confunde com a atitude sentimental, nem com a simples camaradagem, nem com o propósito pouco claro de ajudar os outros para provarmos a nós mesmos que somos superiores. É conviver com o próximo, venerar […] a imagem de Deus que há em cada homem, procurando que também ele a contemple, para que saiba dirigir-se a Cristo” (São Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, 230).
O Senhor deu um conteúdo inédito e incomparavelmente mais alto ao amor ao próximo, destacando-o como mandamento novo e verdadeiro distintivo dos cristãos. A medida do amor que devemos ter pelos outros é o próprio amor divino: como eu vos amei; trata-se, portanto, de um amor sobrenatural, que o próprio Deus põe em nossos corações. É ao mesmo tempo um amor profundamente humano, enriquecido e fortalecido pela graça.
Sem caridade, a vida ficaria vazia… A eloquência mais sublime e todas as boas obras – se pudessem dar-se – seriam como o som de um sino ou de um címbalo, que dura um instante e desaparece. Sem caridade, diz-nos o Apóstolo, de pouco servem os dons mais preciosos: Se não tiver caridade, nada sou. Muitos doutores e escribas sabiam mais de Deus, imensamente mais, que a maioria daqueles que acompanhavam Jesus – gente que ignora a lei -, mas a sua ciência ficou sem fruto. Não entenderam o fundamental: a presença do Messias entre eles e a sua mensagem de compreensão, de respeito, de amor.
A falta de caridade embota a inteligência para o conhecimento de Deus e da dignidade do homem. O amor pelo contrário, desperta, afina e aguça as potências. Somente a caridade – amor a Deus e ao próximo por Deus – nos prepara e dispões para entender Deus e o que a Deus se refere, até onde uma criatura pode fazê-lo. Quem não ama não conhece a Deus – ensina São João -, porque Deus é amor. A virtude da esperança também se torna estéril, sem a caridade, “pois é impossível alcançar aquilo que não se ama”, diz Santo Agostinho; e todas as obras são vãs sem a caridade, mesmo as mais custosas e as que comportam sacrifícios: Se eu repartir todos os meus bens e entregar o meu corpo ao fogo, mas não tiver a caridade, isso de nada me aproveita. A caridade não pode ser substituída por nada. A caridade é o dom “maior”, que dá valor a todos os outros, mas “não se ufana, não se ensoberbece”, mas “rejubila-se com a verdade” e com o bem do próximo. Quem ama verdadeiramente “não procura o próprio interesse”, “não se irrita”, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13, 4-7). No final, quando nos encontrarmos face a face com Deus, os outros dons faltarão; o único que permanecerá eternamente será a caridade, porque Deus é amor e nós seremos semelhantes a Ele, em comunhão perfeita com Ele.
Entretanto, enquanto estamos neste mundo, a caridade é o distintivo do cristão. É a síntese de toda a sua vida: daquilo em que crê e do que faz.
São Paulo aponta as qualidades que adornam a caridade e diz, em primeiro lugar, que a caridade é paciente. Para fazer o bem, deve-se antes de mais nada saber suportar o mal.
A paciência denota uma grande fortaleza! É necessária para nos fazer aceitar com serenidade os possíveis defeitos, as suscetibilidades ou o mau-humor das pessoas com quem convivemos. É uma virtude que nos levará a esperar o momento adequado para corrigir; a dar resposta afável, que muitas vezes será o único meio de conseguir que as nossas palavras calem fundo no coração da pessoa a quem nos dirigimos. É uma grande virtude para a convivência. Por meio dela imitamos a Deus, que é paciente com os nossos inúmeros erros e sempre tardo em irar-se; imitamos Jesus Cristo que, conhecendo bem a malícia dos fariseus, “condescendeu com eles para ganhá-los, à semelhança dos bons médicos, que dão os melhores remédios aos doentes mais graves,” ensina São Cirilo.
A caridade é benigna, isto é, está disposta, de antemão, a acolher a todos com benevolência. A benignidade só se enraíza num coração grande e generoso; o melhor de nós mesmos deve ser para os outros.
A caridade não é invejosa. Da inveja nascem inúmeros pecados contra a caridade; a murmuração, a detração, a satisfação perante a adversidade do próximo e a tristeza perante a sua prosperidade. A inveja é, frequentemente, a causa de que se abale a confiança entre amigos e a fraternidade entre irmãos. É como câncer que corrói a convivência e a paz. São Tomás de Aquino chama-a “mãe do ódio”.
A caridade não é soberba. Sem humildade, não pode haver nenhuma outra virtude, e particularmente houve previamente outras de vaidade e orgulho, de egoísmo, de vontade de aparecer. “O horizonte do orgulhoso é terrivelmente limitado: esgota-se em si mesmo. O orgulhoso não consegue olhar para além da sua pessoa, das suas qualidades, das suas virtudes, do seu talento. É um horizonte sem Deus. E neste panorama tão mesquinho, nunca aparecem os outros, não há lugar para eles”.
A caridade não é interesseira. Não pede nada para a própria pessoa; dá sem calcular o que pode receber de volta. Sabe que ama a Jesus nos outros e isso lhe basta. Não só não é interesseira, mas nem sequer anda à busca do que lhe é devido: busca Jesus.
A caridade não guarda rancor, não conserva listas de agravos pessoais; tudo desculpa. Não somente nos leva a pedir ajuda ao Senhor para desculpar a palha que possa haver no olho alheio, mas nos faz sentir o peso da trave no nosso, as nossas muitas infidelidades.
A caridade tudo crê, tudo espera, tudo tolera. Tudo, sem nenhuma exceção. Ensinava São João da Cruz: “no entardecer da vida, seremos julgados sobre o amor”.
Podemos dar muito aos outros: fé, alegria, um pequeno elogio, carinho… Nunca esperemos nada em troca, nem sequer um olhar de agradecimento. Não nos incomodemos se não somos correspondidos; a caridade não busca o seu, aquilo que, considerando humanamente, poderia parecer que lhe é devido. Não busquemos nada e teremos encontrado Jesus. Crer em Deus significa renunciar aos próprios preconceitos e acolher o rosto concreto no qual Ele se revelou: o Homem Jesus de Nazaré. E este caminho leva também a reconhece-Lo e a serví-Lo nos outros.
Nisto é iluminante a atitude de Maria. Quem mais do que Ela teve familiaridade com a humanidade de Jesus? Mas nunca ficou escandalizada como os concidadãos de Nazaré. Ela guardou no seu coração o Mistério e soube acolhê-lo cada vez mais e sempre de novo, no caminho da fé, até à noite da Cruz e à plena luz da Ressurreição. Maria nos ajude, também a nós, a percorrer este caminho com fidelidade e alegria.
Mons. José Maria Pereira